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Especialistas estão preocupados e pedem mais ambição nas medidas de aproveitamento de água do Governo. Agricultura na região do Algarve está em situação delicada
Os anos sucessivos de seca no Algarve resultaram naquilo que veio a público recentemente. Haverá a necessidade de cortes no abastecimento de água nos vários sectores a partir de Fevereiro. A verdadeira dimensão desses cortes só será anunciada pelo Governo amanhã, após uma reunião interministerial sobre a seca. Mesmo assim, se a precipitação ao longo do ano for insuficiente, o Algarve arrisca-se a chegar ao fim de 2024 sem água disponível.
“Se considerarmos a água existente nas albufeiras, com algum reforço de captações subterrâneas e mesmo que chova muito abaixo da média dos últimos dez anos, [mesmo com] a redução das disponibilidades para os vários sectores, teremos água para o próximo ano”, lê-se numa resposta enviada pelo Ministério do Ambiente e da Acção Climática (MAAC) ao PÚBLICO.
Além da crise imediata, este horizonte curto de segurança deixa a região numa situação precária. Embora o Plano Regional de Eficiência Hídrica do Algarve esteja definido desde Julho de 2020, com um orçamento de 237 milhões de euros vindos do Plano de Recuperação e Resi-liência (PRR), prevê-se que as principais medidas estejam prontas apenas em 2025 e 2026 – ou seja, a adaptação necessária do Algarve a um clima mais seco e quente, que está a sofrer o efeito das alterações climáticas, ainda não ocorreu.
“No Algarve, temos uma ilusão de abundância de água que existia, mas já não existe, há escassez. A procura é maior do que a oferta. Como temos ilusão dessa abundância, não gerimos da forma como se exige – porque a abundância usufrui-se, a escassez tem de ser gerida”, afirma Joaquim Poças Martins, engenheiro da Universidade do Porto com uma vasta experiência na área dos recursos hídricos. “Tudo indica que 2024 poderá ser mais um ano seco. As reservas estão a aproxi-mar-se do limite. É uma situação muito preocupante.”
É esse o cenário de um país que vive duas realidades distintas em relação à disponibilidade de água. Enquanto a norte do rio Tejo há um regime de maior abundância de chuvas, mesmo que eventos de seca como os que ocorreram em 2022 possam atingir todo o continente, a sul do Tejo, principalmente nas bacias do Sado e do Mira, e nos rios e ribeiras do Algarve, a situação tornou-se muito mais grave, com a falta de água a prolongar-se ao longo de anos. Os episódios de chuvas intensas, que se tornaram mais frequentes e aos quais estão associados riscos de inundação, não têm chegado para encher os vários reservatórios.
“Nos últimos 20 anos, a precipitação média [no Algarve] diminuiu em mais de 15%. Na zona do Mediterrâneo, a temperatura média atmosférica já aumentou 1,5 graus Celsius”, refere, por sua vez, Manuela Moreira da Silva, bióloga e investigadora da Universidade do Algarve, que trabalha na área da água há mais de 30 anos e conhece a realidade da região. “Juntamente com o aumento de procura da água devido às actividades que temos na região, estes factores fazem com que a disponibilidade da água seja cada vez menor.”
Para o sector da agricultura, a limitação de água pode pôr em causa as plantações de regadio, como as dos citrinos e abacateiros. “O cenário que as autoridades apresentam coloca-nos perante uma emergência absoluta”, diz ao PÚBLICO Álvaro Mendonça e Moura, presidente da Confederação de Agricultores de Portugal (CAP). Em 2019, a superfície cultivada no Algarve era de 73.705 hectares, mais 17.520 do que em 2009, de acordo com os dados mais recentes do Ministério da Agricultura e da Alimentação. “Se eu tiver uma fábrica e não estiver a vender o produto, posso desligar a máquina. Mas não posso ‘desplantar’ a laranjeira”, diz. Parajá, são necessárias “medidas urgentes e imediatas, temos de evitar um colapso empresarial e social”.
Na semana passada, António Miguel Pina, presidente da Comunidade Intermunicipal do Algarve e da Câmara de Olhão, disse à comunicação social que o sector agrícola iria sofrer cortes na ordem dos 70% e o urbano iria ter um corte de 15%. Estes valores ainda não foram confirmados oficialmente. Mas os cortes são relativos ao ano de 2023 e são destinados apenas às águas superficiais e não às subterrâneas, que também estão em níveis muito baixos, mas já sofreram um corte no ano passado.
Para Álvaro Mendonça e Moura, estes valores são injustos para o sector agrícola. “Quaisquer que sejam as medidas, têm de ser equitativas e proporcionais para todos os sectores da actividade económica”, defende. Em 2022, entre águas superficiais e águas subterrâneas, o Algarve consumiu 237 hectómetros cúbicos de água (equivalente a 237 milhões de metros cúbicos de água). O sector agrícola consumiu 134 hectómetros cúbicos de água, 56% do total. A maioria dessa água, 74%, veio das águas subterrâneas. Já o sector urbano consumiu 80 hectómetros cúbicos de água, 33% da totalidade, em que 83% veio das águas superficiais.
O dilema da agricultura
A escolha dos cortes tem de ter em conta a região e os seus interesses como um todo. “Não podemos olhar para a água só concentrados num dos sectores, é fundamental uma visão global. Temos de olhar para a região e identificar quais são as possíveis origens de água que temos e as actividades que, de forma estratégica, a região deve considerar manter”, defende Manuela Moreira da Silva.
A visão do Governo é, até 2026, conseguir usar oito hectómetros cúbicos anuais da água residual tratada – principalmente para os campos de golfe, que em 2022 usaram 15 hectó-metros cúbicos, 61% vindos da água subterrânea -, obter 16 hectómetros cúbicos através da Central de Dessa-linização de Albufeira (que está programada para, no futuro, aumentar a capacidade para 24 hectómetros cúbicos), captar água do rio Guadiana para alimentar as ribeiras do Sotavento, reduzir as perdas de água na rede, requalificando 125 quilómetros de tubagens, entre outras. “No total, as medidas trarão à região um aumento da resiliência em mais 76 hectómetros cúbicos por ano”, avança o MAAC.
Mas os planos podem ser mais ambiciosos. “Estamos a descarregar no mar 40 hectómetros cúbicos por ano de água tratada, de elevada qualidade, que dava para regar campos de golfe, citrinos, abacates”, diz Joaquim Poças Martins. Por outro lado, os edifícios públicos deviam ter responsabilidade em não gastar água e as habitações deviam ter redutores de caudais nas torneiras, avança Manuela Moreira da Silva. Além disso, a urbanização das cidades poderia estar preparada para as grandes chuvadas, ajudando a evitar inundações. “Temos de preparar as cidades para funcionarem como esponjas que absorvem água que cai do céu para usos urbanos externos não potáveis”, diz a investigadora, dando como exemplos as bacias de retenção de água e espaços verdes. “A região tem de se adaptar, de se reajustar às alterações climáticas.”
De acordo com Álvaro Mendonça e Moura, os agricultores fizeram um esforço enorme para tornar o uso de água mais eficiente. Por isso, o responsável pede aos serviços municipais medidas imediatas “de correcção dos desperdícios”, diz. “As câmaras estão dispostas a fazer obras?”, questiona. O PÚBLICO tentou falar com António Miguel Pina sobre os planos dos municípios, sem sucesso.
Mas olhando para o futuro, o presidente da CAP acredita no crescimento da agricultura no Algarve. “O objectivo tem de ser crescer, ter valor acrescentado, atrair talento. Não é reduzir, é aumentar. Ao contrário da Espanha, o país tem água suficiente. Está mal distribuída e não está retida”, argumenta o responsável, referindo-se à ideia de ligar as bacias hidrográficas do Norte ao Sul de Portugal através de transvases.
Essa ideia é vista com reservas. “Na Europa, as águas naturais são geridas à escala da bacia hidrográfica. Não podemos olhar para um rio como se fosse um mero canal de água. É um ecossistema fundamental que suporta a economia local”, diz Manuela Moreira da Silva. Além disso, “se no Sul do país ainda se desperdiça muita água, que direito temos de ir buscar água a outra bacia”, questiona.
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É preciso terminar com o estado de negação
Opinião | Miguel Miranda
No final de um ano razoavelmente chuvoso, a disponibilidade de água na região algarvia e no Sul do Alentejo causa alarme. As reservas estão em mínimos e estamos sempre à espera de um pico quase milagroso de precipitação que traga alívio. Os meteorologistas seguem todos os dias os sistemas provenientes do Atlântico e desesperam quando a precipitação não passa a serra algarvia. Esta dependência do sistema natural é excessiva: conhecemos a situação, sabemos a origem do problema, nunca como agora tivemos à nossa disposição instrumentos de gestão e eficiência, mas o sentimento geral é o de que não estamos como coletivo a mostrar ação suficiente.
Fala-se de cortes de 70% para o setor agrícola e de 15% para o setor urbano no Algarve, se bem que estes números serão seguramente afinados pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA), mas o futuro só nos trará más notícias.
Não chegámos aqui de repente. Sabemos que o Sudoeste está em défice hídrico desde há muitos anos. Numa análise da APA de há cerca de dois anos, as previsões para o fim do século apontam, na mais gravosa das hipóteses, para uma redução da precipitação perto dos 30% e do volume disponível para os diferentes usos de quase 50%. Numa revisão de 2023, confirma-se uma redução da precipitação média, concentrada em períodos mais curtos.
Vamos mesmo imaginar por um instante que as previsões são exageradas. Imaginemos também que a lucidez humana nos vai levar a reduções significativas de emissões de gases de efeito de estufa na escala global. E que a racionalidade vai imperar no uso consciente da água e numa redução drástica do desperdício. Mesmo assim, estamos perante um cenário de grande dificuldade que, como coletivo, nos recusamos objetivamente a aceitar. Estamos todos em negação.
Se queremos ser simples – e muitas vezes temos de procurar na simplicidade a forma de compreender e atacar problemas complexos -, podemos dizer que estamos a viver num mundo mais quente, numa atmosfera mais energética, numa dinâmica mais intensa. Se queremos compatibilizar esta situação com a vida pendular e regular de que precisam as nossas comunidades, necessitamos de fazer “médias no tempo”, guardando água quando está disponível para utilização mais tarde e “médias no espaço”, transferindo recursos em água doce de onde existe em quantidade suficiente para onde é precisa. As escolhas a fazer são ainda limitadas pelos custos acrescidos no acesso a água de qualidade, e pela impossibilidade de restringir de forma significativa os fluxos da população.
É fácil demonizar os grandes utilizadores (a agricultura), os usos que parecem menos relevantes (os campos de golfe), os atrasos na materialização de sistemas de dessalinização (finalmente em curso), ou as discussões sempre controversas dos transvases entre bacias hidrográficas. Todas estas áreas têm de ser revisitadas com pragmatismo, consciência de que o clima está a mudar e, pior do que isso, de que não temos nenhum fator que nos indique que estejamos numa situação de estabilidade climática. Pelo contrário, os últimos anos, os últimos modelos, as últimas análises independentes, confirmam que a mudança climática irá prosseguir inexoravelmente.
Numa situação de seca histórica cuja previsão aponta para agravamento, o desperdício é equivalente a um crime. Temos de usar todos os mecanismos necessários para uma utilização eficiente, que deve ser monitorizada sem contemplações. Sou particularmente sensível à necessidade de evitar estratégias com potenciais consequências irreparáveis quer estejamos a falar de ecossistemas quer da circulação subterrânea da água e da sua interação com o oceano, mas todas as estratégias têm de ser consideradas, sendo a sua aplicação baseada na melhor ciência disponível. São necessárias soluções aplicadas de forma persistente e em tempo útil, que viabilizem a produção alimentar, a atividade económica da região e deem segurança às comunidades. A estratégia escolhida implicará escolhas todas elas difíceis. Mas temos, de uma vez por todas, que terminar com o estado de negação.
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Seca no Algarve: “Só um milagre nos pode salvar”
Os campos estão verdes, as laranjeiras carregadas de fruta, a água ainda corre nas torneiras – uma ilusão. As barragens algarvias estão a bater no fundo
Idálio Revez
As manchas amarelas da erva conhecida por trevo-azedo ou boas-noites B^H (Oxalispes-caprae) cobrem campos. As flores da planta, vinda da África do Sul, indiciam tempo primaveril, mas estamos em pleno Inverno, e chuva é coisa rara. O turismo agradece o sol e as altas temperaturas fora de época, desde que a água não deixe de correr nas torneiras. Mas o clima social é de ansiedade. “Só um milagre nos pode salvar”, desabafa João Garcia, presidente da Associação de Regantes da zona de Silves, a localidade que concentra 50% da produção da marca “laranja algarvia”.
Decorridos dois verões sem água, a exploração de Carlos Cabrita, em Paderne, morreu. As laranjeiras secaram, e os três hectares de terreno ficaram em prado natural. “Mudei de actividade; agora, dedico-me à restauração”, diz o agricultor, agrónomo de formação, ligado às causas ambientais. “O Algarve precisa de mudar o chip, não existe água para tudo.”
A alternativa económica, defende, passa por “acrescentar valor à produção agrícola, com a transformação dos produtos”, em vez de aumentar a escala. Em Silves, exemplifica, instalou-se uma fábrica que exporta “sumo a granel para os grandes centros de consumo a nível mundial, como se a laranja fosse produzida em qualquer outra região ou país”.
Repensar o futuro
A escassez dos recursos, alega, obriga a repensar um futuro que já é presente, por se ter esquecido as vicissitudes do clima mediterrânico. “Temos de nos adaptar, porque os citrinos e os abacates, com o modelo que está montado, exigem água o ano inteiro.” O furo que abastecia o pomar de Carlos Cabrita, há dois anos, baixou o nível da água em 40 metros. Queimou-se a bomba. “Esse foi o alerta para o que vinha a seguir: a água iria faltar, e não valia a pena estar a pôr mais dinheiro, sabendo que mais tarde ou mais cedo iria ter problemas.” As oliveiras antigas, adaptadas ao clima, “mesmo com pouca água da chuva, aguentaram-se”.
A situação ilustra o que se passa na franja do principal aquífero do Algarve – Querença/Silves, que regista no Sistema Nacional de Informação de Recursos Hídricos (SNIRH) os níveis mais baixos desde que há registos. Perto da fonte que alimenta este “rio” oculto, em Querença, foi autorizada a construção do campo de golfe Quinta da Ombria, regado a partir das águas subterrâneas. A seguir ao empreendimento turístico, a ribeira deixou de correr.
O amanho das terras
Num pomar de abacateiros, na Penina, Hélio Mourinho corta a erva entre as linhas de árvores, todas alinhadas como numa parada militar. O trabalho, executado de forma mecânica, tem um objectivo: “Manter, no solo, a humidade para preservar o ecossistema, evitando dar herbicida indiscriminadamente.”
O agricultor faz parte da geração formada na Universidade do Algarve, com origens no meio rural. Seguiu a tradição familiar do amanho das terras, com o olhar nos mercados europeus, mais exigentes no cumprimento de normas ambientais. Os insectos, exemplifica, “são importantes para defender os abacateiros das pragas”, daí, explica, a preocupação com a aplicação dos fitofármacos, que não matam só as ervas daninhas.
O pomar, de 27 hectares, na Penina (Portimão) foi plantado há três anos. A previsão é que possa dar fruta no próximo Verão. Na zona de Silves, explora mais 30 hectares de citrinos. Por experiência, há cerca de dez anos, refere, plantou dez hectares de romãzeiras, espécie mais resistente à seca. “Resultou, e já exportamos.”
A “pele” seca do chão
A barragem do Arade (principal fonte de abastecimento agrícola de Silves, Lagoa e Portimão), durante este Inverno, “subiu apenas dois centímetros”. O ano hidrológico vai a meio do calendário e as ribeiras não correm. No ar, de vez em quando, surgem sinais de que o céu vai desabar, carregado de água. Porém, as nuvens cinzentas, de passagem, apenas vão deixando cair uns pingos para matar a saudade.
Da pouca humidade que o solo consegue reter na epiderme do chão, nasce erva e pouco mais. As chamadas culturas de sequeiro, favas e ervilhas (regadas pela água da chuva), não se fizeram. E, a manter-se a presente situação crítica, avizinha-se um Verão a conta-gotas, com piscinas vazias e golfes de relva seca.
O Governo prepara-se, na próxima semana, para anunciar reduções de 70% no fornecimento de água ao sector agrícola e de 15% nos consumos domésticos. A medida, preventiva, é vista como uma inevitabilidade, embora alguns agricultores entendam que não é exequível. “Com um corte de 70%, os pomares não sobrevivem, não acredito que vá para a frente. “Não tínhamos possibilidade de produzir”, diz Rui Sousa, a transpirar. “Acabei de descarregar sacos de adubo”, justifica.
Por onde o braço parte
O jovem agricultor é um ex-aluno da Universidade do Algarve, produtor de citrinos, com 45 hectares, distribuídos por três parcelas de terra em Silves, Paderne e campinas de Faro. “Por acaso, não utilizo água da barragem, tenho furos, mas instalei contadores de rega”, esclarece. Até porque, justifica, “gosto de saber a água que gasto: cerca de 6 mil metros cúbicos, por hectare/ano”. Quanto ao facto de o plano de contingência colocar como prioridade o consumo urbano, exclama: “Prioridade, quanto baste!” A questão não se lhe afigura linear. “Até que ponto o consumo humano deve ter prioridade, sabendo dos gastos domésticos em excesso e fugas nas redes de abastecimento público?”, pergunta.
Rui Sousa faz a ressalva de que não é especialista em hidráulica, mas sugere a diversificação de fontes de abastecimento, para enfrentar a escassez de recursos. “Tem de haver um sistema de canais comunicantes entre as albufeiras e os rios. Uma obra que já devia ter sido feita há muito tempo.” Uma vez chegados ao ponto crítico, ilustra, o braço parte pelo lado mais fraco: “Os agricultores, que são uma minoria comparando com as milhares de pessoas [dos centros urbanos], é que são as vítimas.”
Chove ou não?
A previsão meteorológica é a notícia mais aguardada, quando se entra num café de Silves com televisão. Vai ou não chover, amanhã?, ouve-se. “Estamos tramados. Aqui, não chega nem pinga”, ralham, quando se anuncia: chuva a Norte, sol no Algarve. Não existem soluções de curto prazo.
Os presidentes de câmara e a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR), nos últimos meses, têm vindo a insistir na necessidade de avançar, sem mais demoras, com a execução do projecto da ligação das barragens ao Guadiana. “Uma obra necessária e prioritária”, sublinha, por seu lado, o agricultor João Garcia, em sintonia com a opinião manifestada por outros agentes económicos. Nas proximidades, a barragem do Arade vai ter 4,5 milhões de metros cúbicos destinados ao sector agrícola. “Não chega, precisamos de, pelo menos, mais um milhão de metros cúbicos”, reclama.
Pouca água, muita procura
Do lado dos beneficiários da barragem da Bravura, os “cortes” são uma inevitabilidade. “Para mim, já não é novidade”, diz o presidente da associação de regantes do perímetro de rega Alvor/Penina, António Marreiros, referindo-se às propostas do Ministério do Ambiente. Os pequenos agricultores “estão a abandonar a actividade”, empurrados pela seca. A Bravura “bateu no fundo”, sublinha António Marreiros. Desde há três anos, prossegue, “estamos nos limiares da sobrevivência”.
As culturas de Primavera e Verão deixaram de se fazer. Os pomares foram mantidos, por enquanto, com recurso à captação de águas subterrâneas. O perímetro de rega desta albufeira, criado há mais de 60 anos, recorda, chegou a ter 1800 hectares. A área actual está reduzida a pouco mais de metade. “Deverá rondar os mil hectares”. Uma parte significativa dessas parcelas agrícolas foi, entretanto, ocupada com urbanizações e o campo de golfe da Penina.
Em sentido inverso à agricultura, a monocultura turística, insuflada pelo negócio do imobiliário, cresceu e multiplicou-se como se os recursos naturais fossem inesgotáveis. O Algarve está a passar pela pior seca da última década, mas não faltam propostas de investimento em projectos nas áreas de turismo e agricultura, ignorando essa realidade. A empresa Águas do Algarve está a juntar à reserva das albufeiras, água extraída de furos que estavam desactivados, para reforçar o sistema de abastecimento público.
A crise é agora
A sustentabilidade da região, preconiza João Garcia, passa por olhar para o território de forma integrada. “O turismo deverá ter como complemento a agricultura e as pescas.” É nessa linha, de resto, que se inscrevem as propostas do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) – o instrumento financeiro que irá financiar a construção da central de dessalinização, e o transvase do rio Guadiana, a partir do Pomarão.
“São obras para daqui a três ou quatro anos, a crise da falta de água é o presente”, adverte o agricultor. No curto prazo, admite, pouco mais há a fazer do que poupar hoje para gastar amanhã. Nesse sentido, a associação de regantes pôs em marcha um plano de contingência, para tornar mais eficiente o sistema de rega: “Só vamos gastar o estritamente necessário para manter as plantas.”
O professor Amílcar Duarte, da Universidade do Algarve, considera que um corte de 70% no sector agrícola “deixa os pomares no limite da sobrevivência”. A construção de novas barragens “pode ser uma solução”, dada a necessidade de armazenar o máximo no Inverno, para gastar no Verão.
Os estudos relacionados com as alterações climáticas, justifica, “indicam que a pluviosidade vai ocorrer em períodos cada vez mais curtos, e de forma intensa”. Já em relação à construção da central de dessalinização, admite, “pode resolver o problema dos empreendimentos turísticos, construídos no litoral, mas não serve a agricultura”. Os custos de produção, avisa, seriam incomportáveis. “Quando custaria uma laranja, produzida no interior, com a água transportada do mar?”, questiona.
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O volume útil disponível, nas seis barragens da região, segundo a Agência Portuguesa do Ambiente (APA), fica-se pelos 51 milhões de metros cúbicos. A média do consumo doméstico anual é 75 milhões, dos quais 65 milhões de metros cúbicos provêem de águas superficiais. O resto vem de captações subterrâneas.
A Bravura dispõe de apenas 140 mil metros cúbicos de volume útil. “Está no fundo há três anos”, insiste António Marreiros, presidente da associação de regantes do perímetro de rega Alvor/ Penina. A título excepcional, afirma, a APA autorizou a abertura furos para manter os pomares de citrinos. “Ali ao lado, em Lagoa, já se está verificar a intrusão salina em algumas captações”, adverte.
A maior albufeira da região, Odelouca — com uma capacidade de armazenagem de 157 milhões de metros cúbicos —, dispõe só de 9,9 milhões de metros cúbicos de volume útil. Do lado de lá, no rio Guadiana, na vizinha Andaluzia, a seca dura há oito anos. Para fazer face às necessidades hídricas a região autonómica admite mesmo vir comprar água do Alqueva, transportada em navios-cisterna, para dar de beber às populações.
De saída do barrocal para a zona xistosa da serra, o verde da esteva — combustível para os incêndios — domina a paisagem, cada mais despida do montado de sobro e azinho. O ecossistema, pela aridez do solo, está ficar cada vez mais pobre, e a seca está a ferir de morte uma região que precisa de água como de pão para a boca.