Jornal de Negócios
Se nada for feito, em 2025 Portugal entrará em incumprimento no que diz respeito às metas de reciclagem de 65% impostas por Bruxelas, avisa a Sociedade Ponto Verde. A legislação que permitirá alguns avanços já foi aprovada pelo Governo, mas aguarda o sim de Belém.
Portugal está a cumprir as suas metas de reciclagem? A resposta a esta pergunta pode mudar radicalmente em função de quem a dá. De acordo com a Sociedade Ponto Verde (SPV), as embalagens continuam a cumprir as atuais metas de reciclagem. No entanto, “sem mudanças profundas, em 2025 o país estará em incumprimento”. Ou seja, já daqui a um ano. Manda Bruxelas que nessa altura todos os Estados-membros passem a reciclar, pelo menos 65% das embalagens que são colocadas no mercado. No ano passado, em Portugal, esta taxa manteve-se nos 60%, garante a SPV. O papel/cartão continua a ser um dos materiais com melhor desempenho, mas o vidro é o que levanta as maiores preocupações.
Do lado da Zero – Associação Sistema Terrestre Sustentável, o vice-diretor, Rui Berkemeier, avisa que “há embalagens colocadas no mercado em Portugal que não estão a pagar o devido ecovalor, o que altera as contas finais” e faz com que a taxa de reciclagem “real” seja muito inferior ao que é comunicado. “Temos uma subdeclaração brutal de embalagens, o que é uma fraude económica. Quando se diz que cumprimos as metas da reciclagem, é muito duvidoso”, acusa, em declarações ao Negócios. E explica: “A taxa de reciclagem é obtida dividindo o que é reciclado pelo número de embalagens que pagaram ecovalor. A questão é que há muitas embalagens que não pagam o ecovalor, logo não são contabilizadas. Só agora, e porque a UE vai obrigar Portugal a pagar uma taxa pelas embalagens que não são recicladas, as contas vão começar a ser feitas mais a sério e já começaram a admitir que a reciclagem só está a atingir 50% das embalagens”.
Do lado do Governo, que em dezembro aprovou o decreto-lei que altera os regimes da Gestão de Resíduos, de Deposição de Resíduos em Aterro e de gestão de fluxos específicos de resíduos sujeitos ao princípio da responsabilidade alargada do produtor, fica a garantia – dada ao Negócios por fonte oficial do Ministério do Ambiente e da Ação Climática – que “o diploma já seguiu para promulgação” do Presidente da República”. Enquanto isso não acontece, continuam por atualizar (em alguns casos para o dobro) os valores de contrapartida pagos pela recolha seletiva e triagem de embalagens para reciclagem.
Depois de sete anos sem qualquer atualização, estes valores de contrapartida pagos aos sistemas municipais e multimunicipais foram aumentados em 15% em outubro. Para janeiro era esperado um novo aumento, mas afinal os valores vão manter-se inalterados durante o primeiro semestre de 2024, confirma fonte do MAAC. Quanto às consequências deste adiamento, a mesma fonte diz que será “ao nível da tarifa de tratamento a praticar junto dos municípios, que continuará a refletir o défice de não poder incluir as receitas adicionais da aplicação dos novos valores de contrapartida”. Por exemplo: no que diz respeito ao vidro o valor de contrapartida deverá aumentar dos atuais 52 euros por tonelada para 125 euros: no papel e cartão o aumento será de 223 para 393 euros por tonelada; e no plástico de 684 para 1.046 euros por tonelada.
Já o ecovalor, diz o MAAC, “irá aumentar significativamente”, uma vez que a parcela que mais contribui para a sua definição é o valor de contrapartida a pagar pela retoma das embalagens. “O aumento do ecovalor está dependente da publicação do Unilex, que prevê maior cobertura de custos. Estamos também a prever o alargamento do âmbito das licenças das entidades gestoras de embalagens, para permitir que possam atuar junto dos grandes produtores (acima de 1.100 litros por dia), como é o caso do canal Horeca, com benefícios ao nível do aumento dos recicláveis recolhidos”, explica o Governo.
Para Berkemeier, a atualização dos valores de contrapartida feita em outubro “não resolve o problema”. “O sistema das embalagens sempre foi deficitário em termos de financiamento da recolha seletiva. Há um grande défice acumulado”. De acordo com os dados da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos, em 2021 os prejuízos dos municípios com a gestão de resíduos ascenderam a 106,4 milhões de euros (ainda mais do que os 95 milhões registados em 2020).
Do lado da SPV, a CEO Ana Trigo Morais, diz que a não atualização dos valores de contrapartida “tem sido altamente prejudicial para o desempenho e eficiência” do setor. “É o consumidor, nas suas decisões de consumo, que paga o ecovalor e que será refletido quando forem atualizados os custos da reciclagem das embalagens”, diz a responsável, garantindo que a SPV aguarda a publicação da nova legislação “com grande expectativa”. “É fundamental que se reforcem os mecanismos de fiscalização aos agentes económicos das vendas online. Preocupa-nos muito o ‘free-riding’, pois introduz uma grave distorção concorrencial no mercado. É ainda crítico que as autoridades, como a Agência Portuguesa do Ambiente, reforcem a capacidade de monitorização e validação dos dados”, disse ao Negócios Ana Trigo Morais.
Marcelo com dúvidas sobre nova lei dos Cirver
Para a associação Zero, a decisão de acabar com a exclusividade no tratamento dos resíduos perigosos foi acertada. Quanto às dúvidas de Belém, terão de ser respondidas pelo ministério do Ambiente.
Foi já há mais de três meses que o Governo decidiu acabar com a exclusividade das licenças atribuídas em 2004 à Ecodeal e à SISAV enquanto os únicos dois centros integrados de recuperação, valorização e eliminação de resíduos perigosos (Cirver) que existem em Portugal. O decreto-lei que altera este regime jurídico foi aprovado em Conselho de Ministros, a 12 de outubro de 2023, mas a sua publicação em Diário da República, nem vê-la. Antes disso, a legislação tem de ser promulgada por Marcelo Rebelo de Sousa, mas até agora não existe um fim à vista nas dúvidas levantadas pelo Presidente da República sobre a matéria.
“Neste momento já vai na terceira leva de pedidos de esclarecimento por parte do Presidente, o que não deixa de ser curioso porque é uma legislação que à partida seria bastante pacífica”, disse ao Negócios Rui Berkemeier, vice-diretor da Zero – Associação Sistema Terrestre Sustentável, elogiando a decisão de “compromisso” que acabou por ser tomada pelo Governo. “Para nós foi uma decisão salomónica, porque por um lado abre a porta à concorrência e permite a entrada de novos operadores no setor dos resíduos perigosos, mas por outro obriga-os às mesmas regras dos Cirver. Era um risco Portugal andar para trás e voltar a exportar este tipo de resíduos, ou o seu tratamento ficar espalhado por todo o país, sem grande controlo”, sublinha. Na visão do responsável da Zero, a abertura de um mercado como o dos resíduos perigosos nunca poderia ter sido feita “à balda”, sobretudo por causa da fiscalização.
Quanto aos sucessivos pedidos de esclarecimento de Belém, que já vão na terceira ronda, Berkemeier diz que é ao Ministério do Ambiente e Ação Climática (MAAC) que cabe responder. “Mas já passou muito tempo desde que a legislação foi aprovada em Conselho de Ministros e não se percebe porque é que ainda não está publicada, nem o que estará a travar a sua promulgação, porque era uma lei equilibrada: abre o mercado e ao mesmo tempo garante todas as exigências ambientais necessárias, sem baixar o seu nível”, frisa.
Contactados pelo Negócios sobre as causas do atraso na legislação, o MAAC disse não ter comentários a fazer, enquanto a Presidência da República não respondeu às questões colocadas. Entretanto, e com as licenças de exploração dos dois Cirver caducadas desde novembro, o Governo decidiu prolongar o seu prazo até que seja publicada a nova legislação. “Sendo imperioso manter a ininterruptibilidade das operações de gestão de resíduos perigosos e assegurar a regular atuação dos Cirver, as atuais licenças foram prorrogadas até dez dias após a conclusão do processo legislativo”, informou o MAAC nessa altura, permitindo à Ecodeal – Gestão Integral de Resíduos Industriais e à SISAV – Sistema Integrado de Tratamento e Eliminação de Resíduos continuarem a trabalhar normalmente.
Os dois Cirver foram criados há 20 anos para fazer face à carência de destinos adequados para resíduos industriais perigosos, o que obrigava à sua exportação. Face à decisão do Governo de abrir o mercado à concorrência, tanto a Ecodeal como a SISAV – que investiram nas suas instalações na Chamusca 50 e 40 milhões de euros, respetivamente – acusaram mesmo o ministro do Ambiente de usurpação de poderes. No entanto, Duarte Cordeiro já garantiu que os novos operadores vão ter de demonstrar capacidade económica, financeira e técnica e cumprir as mesmas exigências que os atuais. Terão ainda de comprovar a viabilidade do projeto e ter autorização prévia municipal.