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Há disparidades nos tarifários dos 308 municípios. Concelhos vizinhos chegam a diferenças de mais de 100%, o que leva os consumidores a pensar que pagam muito
A cadeia Physical tem oito ginásios espalhados pelo país, a maior parte no Norte, e mais quatro a caminho. Nenhum deles dispõe de piscina, mas alguns têm sauna e banho turco. Os gastos com água são uma parte considerável nos custos operacionais da empresa, indica Joaquim Vilas-Boas, contabilista que se ocupa de todos os Physical. O ginásio de Santa Maria da Feira, instalado num pavilhão com 1700 metros quadrados na Zona Industrial do Roligo, tem perto de 1700 sócios e, entre os oito Physical, é o segundo que paga o metro cúbico de água mais caro, a 2,77 euros.
Santa Maria da Feira é um dos municípios do país que têm as tarifas de água mais elevadas. Todos os anos, a Deco Proteste faz um estudo que inventaria os preços da água nos 308 concelhos portugueses. Relativamente a 2024, concluiu que o município da Feira era o 12.° com tarifas domésticas mais altas para um consumo anual até 120 metros cúbicos (448,60 euros) e o 3.° no escalão de consumo de 180 metros cúbicos (705,52 euros).
À boca cheia, comenta-se nas ruas do centro histórico que a “água é muito cara” na Feira. “Muito cara mesmo”, frisa Ana Costa, que vive na cidade há 16 anos e notou diferenças quando se mudou do vizinho concelho de Ovar. “É verdade que eu morava num apartamento e passei a morar numa moradia, mas o meu agregado familiar manteve-se. Notei logo uma grande diferença, água mais cara aqui do que em Ovar.” O cenário hoje é diferente, aparecendo Ovar na terceira posição dos municípios com água mais cara no primeiro escalão de consumo e em 13.° no escalão seguinte.
Os especialistas em água contrariam aquela que é a percepção dos consumidores. “Há diferenças significativas a nível municipal, mas o que é fundamental que se perceba é que a água é muito barata em Portugal”, começa por notar Eduardo Marques, engenheiro e presidente da Associação das Empresas Portuguesas para o Sector do Ambiente. “As pessoas não têm noção, mas, em média, a água custa 30 cêntimos por dia a cada pessoa. 30 cêntimos é um terço de um café.”
De onde vem, então, a ideia de que o preço da água é alto em Portugal? Desde logo, de uma “total iliteracia” em relação ao tema, responde Alfeu Sá Marques, professor jubilado da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, especialista em hidráulica e actualmente presidente da empresa municipal Águas de Coimbra. “Sendo um bem essencial e um direito universal, as pessoas associam muito a água a uma coisa da natureza, que cai do céu.”
As disparidades nas tarifas da água de concelho para concelho também não ajudam. Em casos extremos, concelhos vizinhos chegam a ter diferenças de mais de 100%. Veja-se o exemplo do Fundão, onde 180 metros cúbicos de consumo anual custam o valor máximo nacional, 776,74 euros, enquanto no município vizinho de Oleiros a factura fica pelos 316,26 euros.
Entre os 14 e os 494 euros
Se afastarmos a lente para a realidade nacional, a amplitude de preços é ainda mais notória. Uma família com um consumo de 120 metros cúbicos anuais pode pagar entre 14 euros em Santa Cruz das Flores, nos Açores, e 494 euros em Amarante – uma diferença anual de 480 euros que não encontra paralelo noutros serviços públicos essenciais.
Como é que isto acontece? Para começar, o valor a pagar que recebemos em casa não diz apenas respeito à água utilizada. A factura engloba o abastecimento de água, o saneamento e ainda os resíduos sólidos, que, “por uma questão de facilidade de facturação”, explica Eduardo Marques, “estão indexados aos gastos de água” – o que “não faz qualquer sentido”, junta Alfeu Sá Marques. Também é necessário ter em consideração que cada empresa impõe limites tarifários diferentes, com escalões distintos consoante a área geográfica e a respectiva densidade populacional. E há até municípios com mais do que uma entidade a operar.
De acordo com dados da Entidade Reguladora dos Serviços de Água e Resíduos (ERSAR), em 2023 Portugal contava 351 entidades gestoras, entre abastecimento de água em alta (da captação ao reservatório) e em baixa (ao consumidor), gestão de águas residuais e de resíduos urbanos. A diversidade de modelos de gestão e de empresas a prestar estes serviços explica, em parte, estas diferenças tarifárias.
O Relatório Anual dos Serviços de Águas e Resíduos em Portugal (RASARP) de 2024, relativo ao ano anterior, descreve modelos de gestão no país inseridos numa lógica de gestão directa, delegada ou concessionada. A gestão directa significa que são as câmaras a assegurar o abastecimento de água, através dos seus serviços de água e saneamento; na gestão delegada, o serviço é entregue a uma entidade externa, normalmente uma empresa municipal; e na concessionada é confiado a uma empresa privada. Segundo o RASARP, “o modelo de gestão directa é aquele que mais se destaca, abrangendo 57,6% do total de municípios e aproximadamente 49,4% da população de Portugal continental”.
Sustentabilidade financeira
Santa Maria da Feira tem o serviço concessionado à Indaqua desde Dezembro de 1999. À época, o município “assegurava o abastecimento de água a apenas cerca de 25% da população e enfrentava graves problemas ambientais, motivados pela fraca cobertura da rede de saneamento, que à data era apenas de 15%”, adianta o executivo em resposta escrita ao PÚBLICO. “Era, por isso, crucial resolver rapidamente este problema, o que exigia um forte investimento num espaço de tempo o mais curto possível.”
Foi então lançado um concurso público internacional, “sustentado num caderno de encargos que previa o alargamento das redes de água e saneamento a todo o concelho, concedendo o direito de exploração dessas redes por um período de tempo [50 anos] que permitisse a recuperação do investimento efectuado – superior a 100 milhões de euros – através das tarifas cobradas pelo serviço”. Actualmente, sublinha a autarquia, Santa Maria da Feira “é um concelho com taxas de cobertura de serviço muito próximas dos 100% (98% no abastecimento de água e 97% no saneamento)”.
Comentando o facto de a Feira apresentar um tarifário que é dos mais altos do país, o executivo começa por sublinhar que, “quando se elaboram rankings de tarifários, é fundamental não incorrer no erro de comparar realidades distintas”. “Não é correcto comparar a factura dos serviços em Santa Maria da Feira com a de municípios onde as receitas não cobrem os custos associados à prestação dos serviços. Nestes casos, é violado o princípio do utilizador-pagador, uma vez que os impostos dos munícipes são utilizados para subsidiar os serviços de abastecimento de água e de águas residuais, o que significa que todos pagam, independentemente do volume efectivamente consumido.”
Eduardo Marques diz que este é o ponto fundamental. “O principal problema do sector é a falta de sustentabilidade financeira”, nota, para logo depois sublinhar que “cerca de 65% das entidades gestoras não cumprem a lei, que diz claramente que tem de haver uma cobertura integral de custos através dos tarifários”. O que acontece, afirma, é exactamente o contrário. “As entidades gestoras praticam preços baixos, que não cobrem sequer os seus custos operacionais, e depois são as próprias câmaras a subsidiar o serviço. Na prática, os consumidores pagam preços por metro cúbico mais baixos, mas não sabem que os impostos de todos estão a servir para financiar o serviço.”
Em Castro Daire, que tem gestão directa do serviço de água e que aparece como o segundo município de Portugal continental com as tarifas de água mais baixas (108€ por ano no escalão de 120 metros cúbicos e 141€ no escalão seguinte), fonte do executivo municipal confirma ao PÚBLICO que a câmara entende que deve “auxiliar as famílias castrenses, permitindo-lhes terem custos menores com a água”. Vila Nova de Foz Côa, que no estudo da Deco Proteste surge como o concelho do continente com a água mais barata, não cobrava saneamento aos seus munícipes até ao início deste ano.
Eduardo Marques adianta que, em regra, as câmaras que têm gestão directa são as que cobram tarifas mais baixas e as que têm, também, índices de cobertura de custos mais baixos. O concelho do Fundão, aquele que envia aos seus consumidores a factura mais alta do país, tem gestão concessionada e uma taxa de cobertura de custos de 108%. O vizinho concelho de Oleiros tem gestão directa e taxa de cobertura de custos de 80%.
Aludindo ao Plano Estratégico de Abastecimento de Água e Gestão de Águas Residuais e Pluviais 2030, Eduardo Marques lembra que para garantir “a viabilidade futura do sector” serão necessários “aumentos tarifários médios na ordem dos 50% a nível nacional”, com o estabelecimento de uma tarifa social para as famílias mais carenciadas. Está, no entanto, consciente de que “as tarifas andam ao sabor da vontade política e de períodos eleitorais”. “Subir o preço da água não dá votos.”
“Há muitas capelinhas”
Alfeu Sá Marques vai mais longe. “Eu defendo, quase isoladamente, que devia haver um preço de água nacional. E isso não acontece porque infelizmente há muitas capelinhas”, afirma o especialista, reiterando que é “uma péssima estratégia a água ser tão barata” em Portugal. “Todas as entidades gestoras têm uma bomba-relógio. O período de vida da infra-estrutura ligada à água é de 40 a 50 anos. Quase tudo foi feito com ajudas comunitárias. Mais tarde ou mais cedo, teremos tudo envelhecido. E vai ter de haver dinheiro para a renovação por via do aumento do preço da água, que agora é de borla”, diz.
Também numa resposta escrita ao PÚBLICO, a Deco Proteste adianta que tem “alertado continuamente para a disparidade tarifária encontrada para os vários serviços” e sublinha que “estas diferenças não podem ser justificadas apenas por diferenças nos investimentos em reabilitação de redes, por ineficiências na gestão dos sistemas ou níveis de cobertura de custos através dos tarifários cobrados ao consumidor doméstico”. A associação de defesa dos consumidores entende que “as políticas governamentais devem ser delineadas de modo consistente, valorizando a continuidade, e promovendo o acesso equitativo dos cidadãos, independentemente do concelho onde residem”.
Afirmando que recebe “anualmente vários pedidos de informação” de consumidores “no que respeita à facturação dos vários serviços cobrados na factura da água”, a Deco defende que “a ERSAR deve ter poderes que lhe permitam agir de modo independente na regulação tarifária, no seguimento das comissões de acompanhamento aos contratos de concessão, públicos ou privados, e na publicação do Regulamento Tarifário para os Serviços de Água e Saneamento”. “É necessária a harmonização tarifária que garanta a acessibilidade económica a todos os cidadãos.”
O PÚBLICO enviou perguntas à ERSAR, nomeadamente sobre o novo Regulamento Tarifário dos Serviços de Água, em fase de consulta prévia, mas não obteve resposta em tempo útil. Alfeu Sá Marques lembra que “mais de 99% da população nacional está ligada a uma rede de água segura e cerca de 93% a uma rede de esgotos” e diz também que a qualidade da água que nos sai das torneiras é “muito boa”. “A água é o serviço mais barato que temos, quando comparado com o preço da electricidade ou das comunicações, e a maior parte da população não tem isso presente.” Não ajuda o facto de as facturas serem “de leitura horrorosa”, acrescenta. No seu site, a Deco Proteste tem um artigo que ajuda a ler a factura.