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Elon Musk disse no ano passado que a dessalinização poderia “tornar qualquer parte do mundo verde — incluindo o mundo inteiro”. Mas os críticos dizem que é uma solução imperfeita.
A seca em Marrocos já dura sete anos − e continua. A vegetação queimada estala sob os pés. A cor desapareceu quase por completo do coração agrícola de Marrocos, com uma excepção: dentro de vastos recintos agrícolas cobertos por redes, onde tomates exuberantes crescem em videiras, destinados aos supermercados da Europa. Estes oásis artificiais não são alimentados pela chuva, mas pela água do mar, filtrada do sal e canalizada a partir de uma unidade de dessalinização na costa.
Durante décadas, o processo conhecido como dessalinização foi domínio exclusivo do Golfo Pérsico, rico em petróleo. Mas, à medida que as secas se intensificam, ele está a crescer como uma solução de último recurso para países que antes dependiam da chuva natural − e construíram civilizações com ela. A instalação costeira aqui, a primeira de uma onda de megaprojetos, é a aposta de Marrocos de que a dessalinização pode ajudar a preservar um modo de vida, incluindo actividades que consomem muita água, como a agricultura em grande escala.
“A lição mais importante aqui é que existe uma solução para enfrentar as mudanças climáticas”, resume Tarik Hamane, administrador executivo da concessionária de água estatal de Marrocos. A ideia da dessalinizaçã o é muito sedutora, pois envolve o aproveitamento do maior recurso do planeta, os oceanos. As recentes reduções de custos apenas reforçaram a perspectiva, popular nos círculos tecnológicos, de que a tecnologia pode ajudar os seres humanos a superar a escassez de água, que se está a tornar mais grave à medida que o planeta aquece.
Solução milagrosa ou imperfeita?
Elon Musk disse no ano passado que a dessalinização poderia “tornar qualquer parte do mundo verde − incluindo o mundo inteiro”. Mas os críticos dizem que é uma solução imperfeita. O processo polui as águas ao descarregar salmoura, um extracto ultra-salgado que é despejado de volta no mar e pode aumentar a temperatura da água. A dessalinização também requer energia significativa e gera emissões de gases com efeito de estufa se for alimentada por combustíveis fósseis . A Agência Internacional de Energia afirma que a procura global de energia para a dessalinização da água quase duplicou desde 2010 e deverá duplicar novamente até 2030.
O aumento da procura de electricidade está em linha com o aumento previsto proveniente dos centros de dados. “Todos adoram a ideia de uma solução milagrosa”, afirma Peter Gleick, co-fundador do Pacific Institute e cientista que estuda recursos hídricos. “Mas a dessalinização tem muitos problemas.” Uma análise do Washington Post sobre projectos globais, com base em dados fornecidos pela empresa de monitorização do sector Global Water Intelligence, mostra como a dessalinização está a espalhar-se em novos territórios e cada vez mais escassos em água do mundo.
Entre as instalações actualmente em funcionamento, 65 das 100 maiores estão na região do Golfo Pérsico, particularmente na Arábia Saudita e nos Emirados Árabes Unidos. Mas o equilíbrio geográfico muda com novos projectos, cuja escala excederá os já existentes. Das 100 maiores dessalinizadoras planeadas ou em construção, 63 estão fora do Golfo Pérsico — muitas vezes em nações que não têm os mesmos recursos e desenvolvimento. “Se não há água, será que o custo da dessalinização é um preço alto a pagar?”, questionou Shannon McCarthy, directora executiva da Associação Internacional de Dessalinização e Reutilização, um grupo industrial. “A água é tudo.”
A Argélia está a planear nove dessas instalações de grande escala, de acordo com os dados. O Egipto tem três em fase de planeamento. O Iraque, enfrentando o declínio histórico do seu outrora poderoso sistema fluvial, assinou em Julho contratos para construir uma das maiores instalações do mundo. A Jordânia, um dos países com maior escassez de água do planeta, está a planear não apenas uma mega unidade, mas também um oleoduto de 400 km que levaria água potável dessalinizada à sua capital.
Os planos de Marrocos
E depois há Marrocos , onde a água da chuva e do derretimento da neve tem diminuído constantemente ao longo das décadas e onde algumas das maiores barragens estão em níveis criticamente baixos. O rei Mohammed VI apelou no ano passado ao país para “acelerar” os seus planos de dessalinização. Até 2031, Marrocos terá quatro das 10 maiores instalações do planeta. “Será muito útil para manter a vida e também o sector agrícola”, disse o ministro da Água de Marrocos, Nizar Baraka, numa entrevista.
Duas das futuras unidades ajudarão a fornecer água directamente às propriedades agrícolas. Outras têm como objectivo exclusivo fornecer água potável às cidades e aumentarão a capacidade geral, deixando mais fontes naturais de água para a agricultura. Algumas das explorações agrícolas mais importantes do país em termos económicos já beneficiaram directamente desde a inauguração, em 2022, de uma instalação perto da cidade de Agadir. A instalação reserva cerca de 55% da sua água para o consumo de 1,6 milhões de pessoas.
O restante é distribuído através de uma complexa rede de tubos para a planície árida responsável pela maior parte das exportações de vegetais de Marrocos. Por fim, a água chega a recintos do tamanho de hangares — alguns vigiados por seguranças — onde pequenos fios de água irrigam tomateiros plantados em canteiros revestidos de plástico. Depois de colhidos, os tomates seguem para instalações de embalagem como a da Karam Green Agri, uma das maiores exportadoras de Marrocos. Numa tarde recente, durante uma visita às instalações, o gerente Ali Ouramdan abriu as cortinas da janela de uma sala de conferências, revelando uma vista aérea do movimentado piso de embalagem.
Os tomates desciam ruidosamente pelas correias transportadoras. Trabalhadores com uniformes amarelos classificavam os produtos por tamanho e cor. Empilhadoras içavam paletes de tomates embalados marcados com rótulos como Tesco ou Lidl. No meio de uma seca, cercado por uma paisagem de areia, Ouramdan disse que a dessalinização ajudou a elevar as exportações da Karam Green Agri ao seu nível mais alto até agora. “Um ano recorde”, contabilizou.
Aquíferos vazios
A ênfase do Marrocos na dessalinização não pode ser explicada apenas pelas mudanças climáticas. O défice hídrico também foi impulsionado por factores humanos — particularmente as decisões do governo sobre quais culturas plantar e em que escala cultivá-las. Os europeus queriam produtos frescos durante todo o ano, e Marrocos posicionou-se para atender e lucrar com esse apetite. A agricultura é o “verdadeiro elefante na sala”, defende Hakima El Haite, ex-enviada especial do Marrocos para as alterações climáticas
Actualmente, as explorações agrícolas são responsáveis por cerca de 85% das necessidades hídricas do país, mas nem sempre foi assim. Há um século, os agricultores plantavam cevada, trigo e aveia para animais em pequenas parcelas, dependendo inteiramente da chuva. Mas, com o tempo, Marrocos aumentou as suas ambições, lançando uma onda de construção de barragens em meados do século XX para captar mais chuva e apoiar a produção em maior escala.
Na década de 1990, os especialistas alertaram que as necessidades hídricas da agricultura marroquina estavam a ultrapassar o abastecimento. Os agricultores já estavam a cavar poços e a explorar aquíferos — reservas de água subterrâneas que podem servir de amortecedor contra a seca. Mas, em vez de recuar, Marrocos continuou. Em 2008, revelou um plano para se tornar uma potência exportadora. Essa estratégia — chamada de Plano Verde de Marrocos, liderada por um ministro da Agricultura que agora é primeiro-ministro — oferecia subsídios e incentivava a expansão de culturas que exigiam muita água e não eram nativas de Marrocos.
O desequilíbrio da sede
A estratégia teve um retorno económico, trazendo riqueza e um influxo de empregos para as áreas rurais. O governo também enfatizou uma irrigação mais eficiente. Mas, em vez de economizar água, os agricultores aproveitaram esses ganhos para expandir ainda mais. E quando a seca chegou, o desequilíbrio era grave. Marrocos cultivava melancias na região interior, na zona árida de Zagora. Tinha pomares de citrinos onde a precipitação cobria apenas uma pequena fracção das necessidades. Exportava tomates de uma região com aquíferos quase vazios.
“Marrocos fez exactamente o oposto” do que deveria ter feito, avalia Mohamed Bazza, especialista independente e ex-funcionário de recursos hídricos da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura. Isso deixou Marrocos a enfrentar o equivalente hídrico a um défice orçamental. É uma situação cada vez mais comum em todo o mundo, e o país está agora a esforçar-se para expandir o seu abastecimento para evitar o que Bazza chamou de “catástrofe”. A dessalinização é fundamental para esse esforço. O governo também está a trabalhar para reutilizar mais água, reduzir as fugas e transferir água das regiões mais húmidas para as mais secas.
Com ganhos de eficiência suficientes, a agricultura “poderia” tornar-se sustentável, defende Baraka, o ministro da água. Mas a dessalinização, dizem os especialistas, não é uma solução milagrosa — e nunca poderia ser implementada em escala suficiente para atender às necessidades totais do país. As explorações agrícolas de Marrocos, disse Baraka, precisam de cerca de 12 mil milhões de metros cúbicos de água por ano.
Para atender a essa procura, seria necessária a produção de 35 das maiores unidades de dessalinização do mundo. E mesmo assim, a água dessalinizada — que custa cerca de duas vezes mais do que a água subterrânea bombeada de poços — é muito cara e logisticamente complicada para muitos agricultores. As empresas que podem pagar por ela são normalmente as maiores exportadoras, que têm as culturas mais lucrativas. Elas também precisam da sorte de estar perto de uma unidade de dessalinização. O resultado: algumas empresas agrícolas prosperam, enquanto outras explorações definham.
Das laranjas, aos tomates e cactos
No coração agrícola, conhecido como região de Souss-Massa, essa divisão já é visível. Os campos de tomate geridos por grandes exportadores conseguiram ligar-se à rede que transporta água dessalinizada. Mas o labirinto de tubos estende-se apenas cerca de 40 km para o interior. Mais longe, vastos pomares de citrinos estão a morrer e abandonados. Especialistas em agricultura dizem que as terras estão a ser vendidas. As explorações agrícolas despediram trabalhadores. Numa tarde recente, uma escavadora destruiu um campo de tocos de citrinos.
Nos locais onde ainda era possível encontrar alguma actividade, ela vinha de agricultores que desistiram das laranjas ou limas e passaram a cultivar cactos. “E mesmo para cultivar cactos, é preciso ter sorte”, nota Karim Aitsaid, um vendedor de frutas na cidade interior de Sebt El Guerdane. Ele estava a vender melões de outra região. Eventualmente, a escala da agricultura terá de diminuir, diz El Haite, a ex-enviada climática. “Caso contrário, a dessalinização corre o risco de se tornar uma solução provisória cara, em vez de uma solução a longo prazo.”
Um pioneiro na dessalinização
Mesmo com as suas limitações, as mega-instalações que acabarão por surgir ao longo da costa marroquina — de Rabat a Casablanca e Nador — continuam a representar um impulso. Nos próximos cinco anos, a percentagem de marroquinos que bebem água dessalinizada aumentará de 9% actualmente para 60%. Cerca de 30% da nova água será destinada à irrigação. O rei Mohammed VI traçou a visão de Marrocos como pioneiro na dessalinização: desenvolver as suas próprias empresas de construção civil e formar técnicos. Comprometeu-se a operar tudo com energia renovável.
Mas, por enquanto, Marrocos tem apenas uma unidade de grande porte em operação — que abastece as culturas de tomate. Esta instalação obtém energia da rede eléctrica dependente do carvão. A dessalinizadora, operada pela empresa espanhola Cox, fica num precipício com vista para o Atlântico. Longos túneis de captação estendem-se até as profundezas, marcados por bóias quase invisíveis, puxando a água do mar em direcção à costa.
Em seguida, tubos sinuosos de quase dois metros de largura levam essa água para a unidade e para dentro de um prédio cinza do tamanho de um hangar, onde é transformada. Ali, tubos brancos de 4 metros de comprimento estão empilhados horizontalmente em direcção ao tecto. Os tubos contêm espirais de membrana enroladas firmemente, parecidas com papel de embrulho dourado. A água entra numa extremidade do tubo a alta pressão. Em seguida, sai sem impurezas, enquanto os resíduos salgados são depositados numa saída diferente.
O boom da dessalinização
Especialistas afirmam que os avanços nesse processo, conhecido como osmose reversa, são fundamentais para o boom da dessalinização. Até há 20 anos, os países dependiam de métodos térmicos, aquecendo a água do mar e capturando o vapor condensado sem sal. Mas as melhorias na tecnologia de membranas — tornando-as mais finas e duráveis — tornaram a osmose reversa a tecnologia dominante. O custo da dessalinização da água caiu dez vezes ao longo de uma geração, em alguns casos para 50 cêntimos por metro cúbico.
Essa redução de preço colocou repentinamente a dessalinização ao alcance dos países em desenvolvimento que acreditam ter poucas outras opções. Mesmo na fábrica de Cox, os funcionários dizem sentir a urgência. Passam de carro pelos viveiros de tomate a caminho do trabalho. Têm um mapa da rede de irrigação que sustenta as quintas — e ouviram os apelos dos agricultores que vivem além dela. “Esta unidade tentou salvar a situação”, disse José Antonio Randeiro, director de operações e manutenção. “Caso contrário, esta área iria secar.”
Vários trabalhadores conduziram uma visita guiada numa manhã, seguindo a água na sua jornada cronológica, começando nos tubos de entrada — onde o ar cheirava a sal marinho — e terminando nas piscinas minerais, onde o cheiro a sal tinha desaparecido. Em seguida, Manuel Hurtado, director de manutenção da fábrica, e Miguel Angel Ugalde, director técnico, voltaram para o exterior para uma última paragem: uma estação de análise da água. “Agora vamos provar a água”, disse Hurtado. Este responsável mencionou que, no início do dia, a Cox finalizou uma expansão há muito esperada da fábrica. O seu administrador executivo tinha chegado de avião e assinado um acordo com Marrocos para aumentar a capacidade em 45%.
O trabalho também envolveria a construção de uma central eólica para atender às necessidades energéticas. Um comunicado de imprensa descreveu a medida como mais uma ajuda a “uma das áreas mais afectadas pelo stress hídrico”. “Hoje é realmente uma boa notícia”, anunciou Hurtado. Na visita, os responsáveis caminharam até uma rede de tubos ao ar livre, com uma torneira em uma das extremidades. Ugalde distribuiu alguns copos de papel e Hurtado abriu a torneira. “Esta é a água do mar”, disse, celebrando: “Saúde!”