Visão
Era um poço de energia. De sorriso e gargalhadas fáceis, espelhava o entusiasmo pelas causas por que lutava no discurso eloquente e assertivo, acompanhado pelo gesticular das mãos. ã jurista portuguesa Catarina de Albuquerque , que morreu no passado dia 7, aos 55 anos, vítima de cancro , deve-se o reconhecimento pela ONU, em 2010, do acesso à água potável e ao saneamento como direito humano, decisão que beneficiou a vida de muitos milhões de pessoas desfavorecidas no mundo. Para o que parece ser uma banalidade, Catarina de Albuquerque batalhou sem descanso, sobretudo enquanto primeira relatora especial da ONU para o direito à água potável e ao saneamento, cargo que assumiu em 2008 (e que exerceu até 2014). ã época, este tema não mobilizava as agendas dos Estados mais influentes, mas aquela mulher de pequena estatura insistia em abordar os poderosos do mundo nos corredores diplomáticos das Nações Unidas, a quem sublinhava a importância de converter aquele problema em direito humano universal, e de agir em conformidade.
Até que começou a ser escutada. Dominava os dossiers, embora os simplificasse com dados que soavam bem aos ouvidos dos políticos. Como este: por cada euro investido no acesso à água potável e ao saneamento, o retorno é de nove a 20 euros. Isto sobretudo em países onde a má qualidade da água conduz a problemas de saúde, como diarreia ou cólera. Quanto ao facto de ser mulher num mundo dominado por homens, é certo que enfrentou atitudes paternalistas, mas ignorou-as. “só me interessa levar a água ao meu moinho”, costumava dizer. E, a partir de certa altura, quem a ouvia já tinha consciência de que aliava o saber técnico ao conhecimento do terreno, fruto das suas frequentes viagens a locais inóspitos em África e na América Latina. Além de que estava com o mesmo à-vontade numa favela do Rio de Janeiro ou nos meios cosmopolitas de Nova Iorque. E igualmente a comunicar com estudantes em escolas, onde falava de “chichi de dinossauro”, como revelou, bem-disposta, numa entrevista à visão. “Sempre que vou falar às escolas, digo: a água que hoje temos disponível no planeta é exatamente a mesma que tínhamos no tempo dos dinossauros. Ou seja: andamos a beber chichi reciclado de dinossauro! Por causa do ciclo da água, esta é sempre a mesma. O que acontece é que antes havia menos dinossauros do que hoje há pessoas. E OS dinossauros não tinham fábricas, nem agricultura intensiva, nem campos de golfe, turismo e afins.”
Ainda jovem, começou a dedicar-se à causa dos direitos humanos, em ONG portuguesas, e, em 2003, ingressou na ONU. Para lá da grande vitória de 2010, a da inscrição do acesso à água potável e ao saneamento na Declaração Universal de Direitos Humanos (e õnos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável de 2030), seria ainda responsável por recomendações que levaram a alterações legislativas em vários países. Em 2018, foi escolhida, entre centenas de candidatos, para diretora-executiva da Saneamento e Água para Todos (SWA, na sigla em inglês), uma parceria da ONU. A nomeação valeu-lhe um assento na direção da UNICEF, em Nova Iorque Voltaram então em força as viagens entre Lisboa e o estrangeiro, quase sempre para cenários de pobreza extrema. Mas dir-se-ia que Catarina de Albuquerque, casada, mãe de dois filhos e católica praticante, tinha o dom da ubiquidade: além de arranjar tempo para a família, quando se encontrava em sua casa, ainda se desdobrava por funções como a de vice-presidente da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (2013-2019) ou de perita num grupo técnico-científico da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género.
Distinguida diversas vezes (por exemplo, condecorada, em 2009, com a Ordem de Mérito pelo Presidente da República Cavaco Silva, ano em que também recebeu a Medalha de Ouro dos Direitos Humanos atribuída pela Assembleia da República), Catarina de Albuquerque andava apreensiva. Sentia o acesso à água potável e ao saneamento a saírem, outra vez, da agenda política internacional. No legado que deixou, porém, está também este princípio , nas causas que interessam ao presente e ao futuro do planeta, atirar a toalha ao chão não é uma opção.