Água & Ambiente Online
É imperativo criar um regulamento tarifário para a água que seja claro, eficaz e despolitizado, assegurando a sustentabilidade económica dos serviços com base no princípio do utilizador-pagador, sem pôr em causa a equidade social. Estas são as ideias centrais partilhadas por João Levy, presidente do grupo Ecoserviços e professor no Instituto Superior Técnico; Jaime Melo Baptista, conselheiro estratégico da LIS-Water; e Eduardo Marques, presidente da AEPSA – Associação das Empresas Portuguesas para o Setor do Ambiente.
Em declarações ao Água&Ambiente Online, os três especialistas apontaram os elementos que, na sua opinião, devem constar obrigatoriamente do novo regulamento tarifário para a água, a ser elaborado pela Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR), e que deverá garantir a sustentabilidade dos sistemas e a eficiência da gestão, há muito exigidas no setor. O regulador já iniciou o procedimento para a elaboração deste regulamento, tendo instado os interessados a apresentarem contributos até ao passado dia 17 de julho.
Regresso de competências à ERSAR marca oportunidade de mudança
O novo regulamento tarifário, em preparação, surge na sequência da redefinição do papel do regulador. Com o Decreto-Lei n.º 77/2024, de 23 de outubro, a ERSAR recuperou os poderes de regulamentação tarifária sobre os sistemas municipais, perdidos em 2021 por alteração à Lei do Orçamento do Estado, passando agora a poder regulamentar, avaliar, auditar, recomendar e sancionar no domínio da política tarifária municipal. Espera-se que o novo regulamento contribua para a recuperação eficiente dos custos operacionais e de investimento dos sistemas de água e saneamento, resolvendo problemas como subsídios cruzados, práticas ineficientes e a crónica fragilidade na recuperação de custos.
A urgência da sua aprovação é reforçada pelo Plano Estratégico para o Abastecimento de Água e Gestão de Águas Residuais e Pluviais (PENSAARP 2030), que define a sustentabilidade económico-financeira como prioridade máxima para o setor. No entanto, os dados mais recentes do Relatório Anual dos Serviços de Águas e Resíduos em Portugal, relativos ao ano de 2023, mostram que 100 entidades em baixa (entre 218) no abastecimento e 126 no saneamento (de um total de 213) não asseguram a cobertura de gastos na prestação destes serviços.
Impasse tarifário dura há 20 anos por falta de vontade política, alerta Jaime Melo Baptista
Para Jaime Melo Baptista, a ausência de um regulamento com eficácia externa é a falha mais grave do modelo atual. “Tem falhado a ausência de regras com eficácia externa em termos de definição dos tarifários, o que tem sido especialmente gravoso para as entidades de gestão direta”, observa. Este vazio regulatório permitiu a proliferação de práticas díspares e, por vezes, insustentáveis.
O novo regulamento deve, por isso, estabelecer “de forma clara, transparente e acessível os princípios, as regras e os procedimentos aplicáveis à fixação, estrutura, aplicação, faturação e atualização das tarifas”. Entre os pontos essenciais, Jaime Melo Baptista destaca a necessidade de regular a componente fixa no tarifário, introduzir diferenciações entre utilizadores e tipos de consumo, integrar as águas pluviais no saneamento, criar tarifas sazonais e sociais, regular os serviços auxiliares/conexos objeto de tarifação autónoma e os tarifários de serviços de limpeza de fossas sépticas e de água bruta ou água residual tratada, bem como reavaliar aspetos de fiscalidade.
Estes são elementos ponderados no projeto “AquaTariff”, que está a ser desenvolvido pela LIS-Water em parceria com a ERSAR, no âmbito do programa Science4Policy, com o objetivo de identificar soluções inovadoras e alinhadas com as melhores práticas internacionais. Apesar dos dados médios indicarem uma cobertura de custos aparentemente satisfatória, Jaime Melo Baptista desmonta a ilusão: “Na verdade, cerca de uma centena de entidades gestoras de abastecimento de água e de saneamento […] não recuperam a totalidade dos gastos, acumulando um total de cerca de 120 milhões de euros de resultados líquidos negativos.”
A mudança mais urgente para melhorar a recuperação de custos nos sistemas municipais é a já referida aprovação do regulamento tarifário e a consolidação dos poderes da ERSAR nesta área: “Necessitamos de um regulador forte, com poderes na regulação económica e na fixação ou validação de tarifas com racionalidade e independente de ciclos políticos”. Na sua perspetiva, a falta de vontade política está na origem do impasse tarifário que já dura há duas décadas. “O Estado português comprometeu-se a fazê-lo quando aprovou a Lei da Água, em 2005, mas não o fez […] vinte anos depois, as consequências estão à vista de todos.”
O regulamento tarifário é uma peça-chave para alcançar as metas do PENSAARP 2030, realça ainda Jaime Melo Baptista, que coordenou a proposta técnica do plano estratégico setorial. Deverá assegurar a recuperação do investimento, a cobertura dos encargos obrigatórios, a transparência nos subsídios e o desempenho económico adequado. A par disso, a redução da água não faturada deverá ser promovida com o reforço do enforcement regulatório, obrigando à faturação de todos os volumes utilizados.
João Levy propõe pacto político para garantir tarifas sustentáveis
Para João Levy, o futuro regulamento só terá sucesso se for simples, funcional, adequado à realidade das entidades gestoras e “esclarecedor quanto aos custos a considerar no cálculo do serviço”, afirma. Entre os elementos indispensáveis, destaca os custos operacionais (diretos e indiretos), a amortização ajustada à vida útil dos ativos, os custos financeiros dos investimentos e uma componente anual para manutenção. O regulamento deve ainda “explicar como calcular a receita sem obrigar a relações entre escalões e entre domésticos e não domésticos” e permitir flexibilidade na estrutura tarifária, respeitando as especificidades regionais e organizacionais.
Quanto aos principais fatores de risco que comprometem a eficiência e oneram o sistema, João Levy aponta a “falta de dados” e a “não inclusão de diversos custos, como os indiretos e os de manutenção.” Outro erro recorrente, com forte impacto económico, é a “amortização dos investimentos em períodos muito superiores ao da sua vida útil”. Na sua leitura, o insucesso das anteriores propostas de regulamento (nenhum chegou a ser publicado) teve múltiplas causas: modelos demasiado complexos, ausência de dados reais sobre custos, desinformação dos utilizadores e, sobretudo, constrangimentos políticos. “Qualquer autarca sabe que se aumentar as tarifas antes das eleições, arrisca-se a perdê-las”, sublinha.
A consequência é uma resistência autárquica crónica ao ajustamento tarifário, sobretudo em períodos pré-eleitorais. Ainda assim, João Levy mostra-se otimista quanto ao cumprimento das metas do PENSAARP 2030, desde que haja coragem política e ação concertada. “As entidades gestoras terão de atualizar o seu tarifário, com aumentos significativos em 2026 e 2027”, exigindo-se “que os principais partidos dos municípios façam um pacto e falem a uma só voz”.
AEPSA: uma oportunidade para quebrar com o modelo de subsídios crónicos e tarifas politizadas
Para o presidente da AEPSA, Eduardo Marques, o novo regulamento tarifário deve conciliar dois princípios essenciais: a autonomia municipal — ou seja, a fixação de tarifas pelos municípios —, e a cobertura integral de custos, baseada no princípio do utilizador-pagador e na eficiência operacional, para garantir que “os utilizadores não pagam as ineficiências das entidades gestoras”, afirma. Na sua visão, a única forma de alcançar tarifas sustentáveis e justas é recorrer às leis da concorrência, através da consulta ao mercado e da criação de condições equitativas de participação. “Só assim se podem identificar as tarifas mais baixas e justas para cada entidade, considerando as suas especificidades e os investimentos necessários.”
A AEPSA vê o novo regulamento como uma oportunidade para quebrar com o modelo de subsídios crónicos e tarifas politizadas. Defende a introdução obrigatória de contabilidade analítica auditada, mecanismos de atualização tarifária e a aplicação efetiva da tarifa social para proteger os consumidores mais vulneráveis. A associação lembra que, em linha com o PENSAARP 2030, serão necessários aumentos tarifários na ordem dos 50% a nível nacional, mas considera que há margem para esse aumento, com base nos dados de acessibilidade económica da própria ERSAR. Contactada pelo Água&Ambiente Online, a Associação Nacional de Municípios Portugueses disse apenas ainda não ter sido ainda ouvida pelo regulador sobre o novo regulamento tarifário.