Diário de Notícia online
No passado dia 9 de março foi apresentada publicamente a Estratégia Nacional para a Gestão da Água com o título “Água que nos Une”, onde foi reforçada a aposta na gestão mais eficiente, resiliente e inteligente do recurso, destacando a importância de uma abordagem integrada e sustentável.
A estratégia inclui cerca de 300 medidas e projetos com elevados montantes de investimento, distribuídos por várias regiões do país, com foco na eficiência hídrica, redução de perdas, reutilização de água residual tratada e aumento da capacidade de armazenamento.
Focando na redução de perdas de água, e particularizando nos sistemas de abastecimento de água para consumo humano, é importante relembrar que nas últimas duas décadas houve inúmeros planos estratégicos e programas operacionais de financiamento que se dedicaram a este objetivo. Porém, os resultados não demonstram a evolução de eficiência conforme expectável.
Os indicadores que melhor ilustram esta realidade são a percentagem de Água Não Faturada e as Perdas Reais de Água por ramal por dia. Segundo dados publicados no Relatório Anual de Avaliação da Qualidade de Serviço dos Serviços de Águas e Resíduos em Portugal (RASARP) pela Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR), a percentagem de água não faturada registou uma ligeira descida de 31% para 27% ao longo de mais de uma década, enquanto as perdas reais caíram de 158 para 123 litros por ramal por dia. Esta evolução, embora positiva, revela uma trajetória demasiado lenta e insuficiente para um setor que exige respostas mais céleres e eficazes.
Porém, esta evolução no desempenho não é similar em todas as entidades gestoras, destacando-se, de forma consistente, as entidades privadas, que evidenciam melhores resultados tanto na velocidade de melhoria como na qualidade dos indicadores alcançados. Em 2023, segundo dados da ERSAR, a percentagem de água não faturada nas entidades gestoras privadas foi de 15,3%, enquanto nas entidades públicas atingiu os 28,4%. No que respeita às perdas reais, estas corresponderam a 51 litros por ramal por dia nas entidades privadas, face a 134 litros por ramal por dia nas públicas. Estes valores evidenciam não apenas um impacto ambiental significativamente mais negativo por parte das entidades públicas, como também um desperdício económico estimado em várias dezenas de milhões de euros.
Neste momento em que se discute, com toda a pertinência, quais os modelos de gestão mais adequados para os serviços de abastecimento de água e saneamento, torna-se essencial olhar para casos concretos que ilustrem as consequências práticas das opções adotadas. O município de Setúbal é um exemplo particularmente relevante, não apenas pela sua dimensão e representatividade, mas também pela mudança recente no modelo de gestão que permite uma análise comparativa direta.
Durante 25 anos, os serviços de abastecimento de água e saneamento de águas residuais em Setúbal estiveram concessionados à empresa privada Águas do Sado, S.A. No final de 2022, o município optou por terminar essa concessão e internalizar os serviços, transferindo a gestão para os Serviços Municipalizados de Setúbal (SMS). O ano de 2023 foi, assim, o primeiro de gestão pública integral. Com a recente publicação do RASARP 2024, que avalia o desempenho do setor no ano anterior, tornou-se possível comparar objetivamente os indicadores sob os dois modelos de gestão.
Os resultados são claros e suscitam uma reflexão séria. Com a alteração do modelo de gestão privada para a gestão pública, a percentagem de água não faturada aumentou em 18% e as perdas reais de água agravaram-se em 26%. A fiabilidade do serviço também sofreu um retrocesso evidente: o número de falhas no abastecimento mais que duplicou, passando de 1 para 2,6 incidentes por mil ramais. No que respeita à relação com os clientes, observou-se igualmente um declínio acentuado. A taxa de resposta a reclamações, que era de 100% sob gestão privada, desceu para 82% em 2023, e a capacidade global de resposta a sugestões e reclamações, que também era de 100%, caiu para apenas 62%.
Estes dados revelam de forma inequívoca que a transição da gestão privada para a gestão pública implicou, num curto espaço de tempo, uma perda significativa de eficiência operacional e de qualidade do serviço. Num setor tão crítico como o da água, esta degradação dos indicadores-chave não pode ser ignorada.
Esta constatação aliada à “Ambição de abrir um Novo Ciclo na Gestão de Recursos Hídricos em Portugal”, como foi assumido na estratégia apresentada, deve obrigatoriamente suscitar a reflexão e motivar a implementação célere de medidas e planos ambiciosos acompanhada de modelos de gestão que demonstrem a capacidade, o know-how e acima de tudo o compromisso para os implementar e, desta forma, promover efetivamente a eficácia e eficiência na gestão de recurso escasso e essencial à vida de todos.
Professor Catedrático de Engenharia de Sistemas