Água&Ambiente 01/11/24
O ano de 2023 foi o ano em que se registaram mais infrações e em que foram aplicadas coimas mais elevadas ao setor da água na última década
Entre 2014 e 2023, a Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR) detetou, no âmbito da sua atividade de fiscalização no setor da água, 1154 infrações que resultaram na abertura de 837 processos de contraordenação e na aplicação de coimas, após revisão judicial, que ascendem a um valor total de 387 980 euros, segundo os dados fornecidos pelo regulador ao Água&Ambiente.
É na área da qualidade da água “que a lei confere à ERSAR poderes sancionatórios mais vastos”, sublinha a ERSAR, “embora o regime jurídico dos serviços municipais de águas e resíduos e o regime do livro de reclamações também prevejam algumas contraordenações que cabe a esta entidade reguladora sancionar, mas de âmbito muito limitado”. De facto, nos últimos dez anos, do total de 1154 infrações identificadas, 1110 correspondem a falhas no cumprimento das normas previstas no regime legal da qualidade da água (ver quadro), que o regulador, enquanto autoridade competente, tem a responsabilidade de fiscalizar.
Para assegurar a qualidade da água que chega à torneira dos portugueses, a ERSAR não só aprova anualmente os programas de controlo da qualidade da água (PCQA) para consumo humano das entidades gestoras de sistemas de abastecimento público e acompanha a sua implementação, articulando-se com as autoridades de saúde na resolução dos problemas da qualidade da água que eventualmente surjam, como realiza ações de fiscalização em qualquer ponto dos sistemas de abastecimento e nas instalações das entidades gestoras, podendo aplicar contraordenações se ocorrerem situações de incumprimento da legislação em vigor.
Só nos últimos cinco anos, entre 2019 e 2023, foram identificadas pelo regulador 587 infrações no âmbito da qualidade da água, que resultaram em 415 processos de contraordenação (alguns abrangem mais do que uma infração), esclarece a ERSAR. Aliás, o ano de 2023 foi mesmo o ano em que se registaram mais infrações (161) ao regime da qualidade da água na última década. Este é também o ano em que o valor das coimas aplicadas ao setor da água foi mais elevado, desde 2014, (143 200 euros), referindo-se todas elas a infrações na área da qualidade da água (ver tabela).
Este valor é quase o dobro do volume de coimas aplicadas em 2019, o segundo ano da década com um nível mais alto de penalizações financeiras às entidades gestoras do setor. Note-se, contudo, que, em 2019 e 2020, por exemplo, apenas uma parcela das coimas aplicadas estava relacionada com falhas no cumprimento do regime da qualidade da água (73 050 euros e 24 200 euros, respetivamente).
Mais infrações na implementação dos PCQA
O maior número de infrações detetadas na área da qualidade da água diz respeito a falhas na implementação do PCQA (366 nos últimos cinco anos, e 833 se olharmos para a última década), nomeadamente na realização das análises, na comunicação e correção de incumprimentos, na desinfeção e tratamento da água ou na implementação do plano de monitorização operacional. Também se verificaram infrações (131 no período 2019-2023 e 152 nos últimos dez anos) na submissão e aprovação dos próprios PCQA, seja no procedimento de reporte ou no próprio conteúdo.
As entidades gestoras de abastecimento de água têm ainda a obrigação de prestar informação sobre a qualidade da água distribuída aos consumidores e às autoridades de saúde, quer através de editais trimestrais, quer quando é detetado algum problema, e, desde 2014, foram identificadas 125 infrações neste âmbito, 90 das quais nos últimos cinco anos. No âmbito dos processos de contraordenação abertos pelo regulador relativos à qualidade da água para consumo, a ERSAR estima em 242 850 euros as coimas devidas, para o período entre 2019 e 2023, incorporando já, neste valor, o resultado de recursos judiciais que reviram as decisões do regulador, mas salientando que nem todas as decisões transitaram em julgado. A receita arrecada por esta via reverte em 40% a favor da ERSAR e 60% a favor do Fundo Ambiental.
No ano de 2021, por exemplo, não foram aplicadas quaisquer coimas. De resto, o número de ações de fiscalização no terreno realizadas entre 2020 e 2021, em plena pandemia da COVID-19, foi muito inferior ao dos anos anteriores {21 e 16, respetivamente), segundo os relatórios anuais publicados pelo regulador. Já em 2023, foram efetuadas pelo regulador 81 ações de fiscalização, abrangendo 34% das entidades gestoras, a maioria das quais nas regiões norte (22) e centro (35), onde também se concentra a maioria dos municípios. Isto segue, de resto, a tendência dos últimos dez anos, em que mais de dois terços das ações de fiscalização se concentraram nestas duas regiões do continente, segundo os dados publicados nos relatórios anuais.
Segundo o regulador, a seleção das entidades a fiscalizar baseia-se “numa matriz com critérios de risco previamente definidos, da qual resulta a ordenação das entidades por prioridades, tendo em conta, por exemplo, aspetos como os resultados do controlo da qualidade da água (número e tipologia dos incumprimentos), a dimensão da entidade gestora e o grau de cumprimento das normas legais”.
Se excluirmos os anos da pandemia (2020 e 2021), bem como o ano de 2018, em que, por força de um processo de reorganização interna na entidade reguladora, não foram promovidas ações de fiscalização, a percentagem de entidades fiscalizadas em cada ano, face ao universo total regulado, variou entre os 13% em 2013 e os 26% (2011 e 2019). Em complemento à atividade de fiscalização e à semelhança de anos anteriores, a ERSAR implementou ainda, em 2023, um plano de colheitas de água nas torneiras dos consumidores para monitorizar a qualidade da água para consumo humano, de forma a validar, por amostragem, os resultados reportados pelas entidades gestoras.
No último ano, foram recolhidas 101 amostras e realizadas um total de 7810 análises aos parâmetros fixados no regime legal para verificação de conformidade da qualidade da água, tendo sido detetadas “algumas situações de incumprimento dos valores paramétricos”, que foram depois comunicadas pela ERSAR às autoridades de saúde e aos municípios, bem como às entidades gestoras, para que estas tomassem “medidas corretivas”. De resto, em 2023, a qualidade da água para consumo distribuída pelas entidades gestoras de abastecimento de água manteve-se num nível de excelência, com um resultado de 98,77% no indicador “água segura”, segundo o RASARP publicado no final de setembro.
Ersar defende regime sancionatório mais robusto
Apesar de, atualmente, a capacidade da ERSAR de fiscalizar e aplicar sanções estar muito circunscrita à área da qualidade da água para consumo, o regulador considera que seria benéfico poder estender estes poderes a outras áreas. “Com a introdução de um regime sancionatório mais robusto, a ERSAR estaria mais bem equipada para responder deforma eficaz às infrações detetadas, aumentando a eficácia da regulação e assegurando o cumprimento dos padrões exigidos para a prestação de serviços de qualidade”, argumenta o regulador.
Na perspetiva da ERSAR, isto permitiria reforçar o seu papel, “tanto na prevenção geral”, dissuadindo todos os operadores regulados de incumpriras normas, “como na prevenção especial”, evitando casos de reincidência de entidades gestoras concretas. De resto, em 2016, a ERSAR apresentou “uma proposta de regime sancionatório que previa a possibilidade de aplicar coimas pelo incumprimento de mais obrigações legais”, dado que os estatutos do regulador, aprovados em 2014, preveem que este colabore com os órgãos legislativos na formulação dos diplomas legais. Este diploma nunca chegou, contudo, a ser aprovado.
O regime sancionatório tem sido “reclamado, todos os anos, pela ERSAR e o seu conselho consultivo, chamando a atenção ao Estado de que esse regime está a fazer falta”, observa Diogo Faria de Oliveira. Faiando a título pessoal, ainda que tenha sido recentemente apontado presidente deste conselho consultivo, o consultor entende que a criação deste regime “faz sentido” e que já existe um “conjunto de requisitos e exigências”, previstos na lei e em regulamentos da ERSAR — como o regulamento tarifário do serviço de gestão de resíduos urbanos, o regulamento das relações comerciais, o regulamento dos procedimentos regulatórios ou o próprio regulamento da qualidade do serviço prestado ao utilizador final -cujas disposições poderiam ser vertidas num diploma desta natureza. Isto porque, apesar de estas normas estarem publicadas, para poderem ser aplicadas sanções, terão de ser identificadas, concretamente, as infrações e as respetivas penalizações associadas.
“Estes regimes têm uma lógica de incentivo”, salienta Diogo Faria de Oliveira, “porque, antes da sanção, há que tomar medidas de prevenção, nomeadamente através de avisos de incumprimento, por exemplo”. Ou seja, “não é para se usar cegamente, de um dia para o outro, sobre todas as entidades que estão a infringir”, vinca. “Por princípio, entendo que faz todo o sentido haver uma fiscalização de vários aspetos das entidades gestoras”, realça, por seu lado, Eduardo Marques, presidente da AEPSA – Associação das Empresas Portuguesas para o Setor do Ambiente, dado que “as entidades gestoras, sejam elas de gestão direta, gestão delegada ou gestão concessionada, estão em regime de monopólio natural”.
“Não há concorrência na distribuição de água”, resume, por isso, “tem de haver os mecanismos necessários de fiscalização para garantir ao consumidor final que o produto que está a consumir está de acordo com todas as regras”. O modelo de fiscalização em vigor na área da qualidade da água parece-lhe “adequado”, quer em termos de infrações passíveis de contraordenação, quer de coimas previstas, mas Eduardo Marques prefere não avançar ideias sobre o que poderia ser incluído num futuro regime sancionatório.
“É uma das grandes aspirações da ERSAR”, observa, “e esperemos que venha com bom senso, porque pode ser interessante”. “Todos queremos que a qualidade [do serviço prestado] ao utilizador final seja melhor”, concretiza, “e, as vezes, tem de haver fiscalização para que o serviço melhore”. Por outro lado, o presidente da AEPSA salienta que, no caso das concessionárias privadas, que servem cerca de 20% da população do continente, já existe um rol de entidades “que controlam e fiscalizam” a sua atividade, incluindo não só a ERSAR, mas também o Tribunal de Contas, “que pode fazer a fiscalização sucessiva, em qualquer momento, de uma concessionária privada”, a própria câmara enquanto concedente, as comissões de acompanhamento das concessões, os bancos financiadores e a Direção-Geral das Autarquias Locais. No entanto, recorda, “isso já não se passa, por exemplo, ao nível da maioria das entidades em gestão direta”, dado que as competências de abastecimento de água, nestes casos, estão “muito mais diluídas dentro de uma estrutura global”.