Água & Ambiente
A European Waste Management Association apresentou recentemente um estudo sobre cadeias de valor importantes para a economia circular que, em Portugal, estão ainda muito pouco desenvolvidas ao nível da recolha, tratamento e reciclagem.
A importância da recolha e tratamento dos resíduos de construção e demolição (RCD), de baterias de iões-íítio, de colchões, de veículos e pneus, e de plásticos industriais e comerciais é destacada num estudo recente da European Waste Management Association (FEAD), que aponta também a sua relevância para uma economia circular, Estes representam cadeias de valor importantes do ponto de vista ambiental e de saúde pública. Apesar do seu potencial, e tendo em conta as suas características de perigosidade, estes resíduos já estão a ter destaque em muitos países da União Europeia (UE), mas em Portugal quase todos eles continuam a permanecer “à parte” da agenda nacional dos resíduos. Intitulado “From Vision to Action”, ou da “Da Visão à Ação”, o estudo aborda os desafios e propõe soluções para aumentara recolha, reciclagem, tratamento e aceitação de materiais reciclados em vários setores, com o intuito de promover uma economia mais circular e sustentável na União Europeia.
Em qualquer uma das cadeias de valor, a necessidade de legislação aprimorada e de dados confiáveis são enfatizados para garantir a separação efetiva de resíduos e reciclagem de materiais.
Economia circular com fracos resultados
Portugal está na cauda da Europa em termos de aproveitamento de materiais reciclados, integrando o grupo de quatro países com piores resultados entre os 27 Estados-membros. Segundo os mais recentes dados do Eurostat, a taxa de circularidade em Portugal foi de 2,6% em 2022, quando a média europeia foi de 11,5%. Aquele número, já por si baixo, não melhorou desde 2021 Entre os Estados-Membros mais bem posicionados neste âmbito estão os Países Baixos (27,5%), a Bélgica (22,2%) e a França (19,3%). O presidente da Círculo – Associação pela Circularidade de Resíduos Especiais, Ricardo Vidal, alerta para outros números que não deixam Portugal particularmente bem na fotografia: o Tribunal de Contas Europeu concluiu que o setor dos resíduos contribuiu em Portugal para 9% das emissões de gases com efeito de estufa, o que equivale a três vezes mais do que o padrão europeu. O Instituto Nacional de Estatística divulgou que, em 2022, todos os fluxos específicos verificaram decréscimos no rácio de resíduos valorizados. A economia portuguesa é das que mais recursos consome, alerta ainda a Círculo. Em 2021, Portugal consumiu cerca de 174 milhões de toneladas de materiais, o equivalente a 16,9 toneladas por habitante, mais uma vez superior à média europeia de 14,1 toneladas,
Resíduos de construção e demolição
Os resíduos de construção e demolição (RCD) representam mais de um terço de todos os resíduos gerados na eu, e a taxa de reciclagem e recuperação destes materiais varia significativamente entre os Estados-membros, com valores que oscilam entre cerca de 10% a mais de 90% (ver Tabela 1), devido aos diferentes níveis de obrigatoriedade da respetiva recolha seletiva, o que afeta as taxas de reciclagem. Quando não são separados na origem, os RCD podem conter pequenas quantidades de materiais perigosos, como solventes e amianto, que acarretam riscos ambientais e impedem a reciclagem. A FEAD considera que as iniciativas que existem neste campo ficam bloqueadas devido à falta de legislação, apontando ainda o dedo à questionabilidade dos dados comunicados. O estudo propõe, assim, a formação de políticas coordenadas que demonstrem às autoridades nacionais a importância de legislação robusta que garanta que os RCD são recolhidos para reciclagem e impulsione a tomada de medidas Uma das medidas sugeridas é que a deposição em aterro dos RCD seja o mais onerosa possível, Deve ainda ser criado mercado para a utilização dos agregados reciclados e melhorada a eficácia do acompanhamento e rastreio para melhoria da qualidade dos dados.
Em 2021, de acordo com os dados da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), Portugal produziu quase três milhões de toneladas (Mt) de RCD, tendo seguido 0,96 Mt para reciclagem, 0,95 Mt para enchimento – nomeadamente de pedreiras — e 0,7 Mt para outras operações de valorização material — que não são especificadas. Para Rui Berkemeier, da ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável, o primeiro problema referente a este fluxo é não haver informação fidedigna. É também necessário, na visão da associação, melhorar a respetiva fiscalização das operações de gestão e controlar a obrigatoriedade de incorporar pelo menos 10% de materiais reciclados nas obras públicas.
Além disso, a “legislação isenta de pagamento da Taxa de Gestão de Resíduos (TCR) as operações de reciclagem de RCD, mas também as de enchimento de pedreiras com RCD”, colocando em pé de igualdade duas operações com relevância ambiental totalmente distintas, assinala a ZERO. Eduardo Marques, presidente da AEPSA – Associação das Empresas Portuguesas para o Setor do Ambiente, denota que a portaria que identifica os elementos instrutórios do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação não contempla a obrigação de apresentação do plano de gestão de resíduos em fase de obra, estando somente previstas estas obrigações em caso de demolição: “Esta inexistência nesta fase do processo dos licencia mentos, no âmbito do urbanismo, ordenamento do território e indústria afigura-se grave, já que a gestão dos resíduos parece ficar sem caráter obrigatório em fase de obra e construção”.
Plásticos industriais e comerciais
As embalagens plásticas comerciais e industriais (provenientes de aplicações não domésticas) são referidas no documento como “frequentemente esquecidas no âmbito da gestão de resíduos”, com poucos dados disponíveis e uma taxa de recolha de somente 39% na EU. São significativas as quantidades de plástico não doméstico que continuam a ir parar ao contentor de indiferenciados, em particular das pequenas e médias empresas (PME). Embora estejam a surgir na UE algumas propostas regulatórias significativas para aumentar o uso de conteúdo reciclado, o estudo destaca a importância de estabelecer parcerias para apoiar investimentos na reciclagem destes plásticos, Um dos primeiros passos sugeridos é o de acelerar o estabelecimento da Responsabilidade Alargada do Produtor (RAP) em todos os Estados-membros e apoiar o intercâmbio de boas práticas.
Outras medidas passam pelo apoio à implementação da recolha seletiva nas PME para fornecer material de alta qualidade para reciclagem, o aumento da divulgação de estudos de caso e histórias de sucesso sobre recolha e reciclagem destes plásticos e criação de um banco de dados de contactos europeu para desenvolver mercados finais para o conteúdo reciclado. A ZERO assinala que a legislação europeia já definiu metas ambiciosas para a reutilização deste tipo de embalagens de plástico não domésticas, assim como para o conteúdo de material reciclado que as mesmas têm de incorporar.
Quanto à situação portuguesa, a associação ambientalista lembra que todas as embalagens vão passar a ser integradas em sistemas de RAP, estando, no entanto, ainda por definir o medeio em que vão ser inseridas. Na visão da AEPSA, sendo estes resíduos geridos pelo mercado livre e concorrencial, de um modo geral têm valor comercial positivo, pelo que os Operadores de Gestão de Resíduos (OGR) asseguram a sua recolha, processamento e encaminhamento adequado para a indústria recicladora e transformadora, incorpora ndo-os na economia circular.
Baterias de iões-lítio
O estudo da FEAD aborda o problema das baterias de iões-lítio, não facilmente removíveis de dispositivos eletrónicos portáteis, que acabam em instalações de gestão de resíduos, por serem erroneamente colocadas junto aos resíduos indiferenciados com a bateria incorporada, podendo causar incêndios, especialmente nas instalações de reciclagem de plásticos e de valorização energética de resíduos. Na origem deste problema está a falta de sensibilização e consciência dos consumidores sobre o descarte adequado desses dispositivos. O documento lembra, neste contexto, que até 1 de janeiro de 2025 os municípios europeus têm de estabelecer a recolha seletiva para resíduos domésticos perigosos. Como solução, entre as medidas sugeridas estão o apoio à implementação de recolha seletiva, facilitar a troca de boas práticas entre os OGR nacionais e de estudos de caso, o aumento da sensibilização sobre os danos que as baterias podem causar e a consideração de um Sistema de Depósito e Reembolso (SDR) para resíduos domésticos perigosos. E como é que as entidades nacionais vêm este problema?
Embora a utilização deste tipo de baterias ainda não seja muito habitual em Portugal, poderá vir a aumentar, analisa a ZERO, que lembra que o regulamento sobre pilhas e acumuladores estabelece que as baterias instaladas nos novos equipamentos elétricos e eletrónicos devem ser de fácil remoção. E para minimizar o perigo destas baterias, diz a ZERO, é necessário melhorar o funcionamento dos sistemas de RAP dos fluxos dos REEE e das pilhas, nomeadamente assegurando a aplicação do novo método de cálculo da Taxa de Gestão de Resíduos para as entidades gestoras, que entra em vigor em 202S, e introduzindo incentivos económicos para os consumidores devolverem os REEE e as pilhas, seja por SDR ou outras formas. Integrando um fluxo específico sujeito a RAP, lembra a AEPSA que as baterias de iões-lítio – o mesmo acontece com a fileira dos veículos em fim de vida — dispõe de entidades gestoras licenciadas, competindo aos reguladores-APA, DGAE e ERSAR — exigir e controlar as condições adequadas a uma melhor integração e relevância na economia circular.
Resíduos de veículos em fim de vida
Os resíduos de veículos em fim de vida (VFV) são abordados no estudo peia necessidade de aprimorar a circularidade no design e fabrico, com o intuito de facilitar a desmontagem e recuperação de materiais. Para estes, são sublinhadas as metas europeias específicas para o uso de plásticos reciclados no fabrico de novos veículos, com requisitos para a origem do material reciclado e a qualidade dos materiais recuperados. Assim, 25% do plástico utilizado na construção de um novo veículo terá de ser reciclado, sendo que, desse valor, 25% deve ser reciclado a partir de VFV. Por outro lado, 30% dos plásticos provenientes dos VFV devem ser reciclados. Além disso, é destacada a importância de reforçar a responsabilidade do produtor, através da criação de regimes nacionais de RAP com regras uniformes e que garantam um financiamento adequado das operações de tratamento de resíduos. Estas regras devem igualmente incentivar os recicladores a melhorar a qualidade dos materiais reciclados.
O âmbito destas medidas será gradualmente expandido para incluir novas categorias de veículos, como motociclos, camiões e autocarros. Outras ações a colocar em prática incluem a demonstração da funcionalidade das matérias-primas secundárias, através de projetos-piloto e intercâmbio de melhores práticas, a definição de uma meta europeia de conteúdo reciclado para todos os veículos produzidos e a elaboração conjunta de um roteiro de inovação e desenvolvimento. Concordando com várias propostas deste estudo, a ZERO afirma que Portugal tem um grave problema na área da venda de peças usadas de automóveis, ao ser permitida a sua publicitação e venda online, o que prejudica os operadores legalmente constituídos para o desmantelamento dos VFV.
Por outro lado, destaca a associação o desempenho da Valorpneu que, em 2023, recolheu e tratou 83579 toneladas de pneus usados, acima do quantitativo de 75925 toneladas de pneus usados gerados. Deste valor, 16447 toneladas foram enviadas para incinerar, tendo sido o restante reciclado. “Em Portugal, ainda não é feita a devida separação dos plásticos com POP (poluentes orgânicos persistentes} existentes nos VFV, sendo necessário tomar medidas para que a EG deste fluxo (a Valorcar) financie essa operação”, considera a associação ambientalista,
Resíduos de colchoes usados
Estima-se que até 30 milhões de colchões atinjam o fim da vida útil anualmente na Europa, com 60% a ir para aterros sanitários e 40% a ser incinerados (ver tabela 2), embora cerca de 85% do conteúdo dos colchões possa ser reciclado através de desmontagem adequada. É lançado o alerta sobre a eventual presença de substâncias químicas persistentes neste tipo de resíduos, nomeadamente químicos bioacumulativos e tóxicos, como retardadores de chama bromados.
Além disso, entre os cerca de 50 milhões de colchões fabricados anualmente em território europeu, quase 90% contém entre 2 e 30 quilos de espuma de poliuretano. A solução proposta para esta fileira passa pela criação de um sistema à escala europeia que trabalhe em conjunto com as autoridades locais para recolha e armazenamento adequados de colchões, apoio à implementação de RAP – como já acontece em Portugal, com o novo UNILEX o desenvolvimento de mercados finais para materiais secundários reciclados e a identificação de oportunidades para maior uso de materiais secundários reciclados em colchões.
É sugerida a criação de infraestruturas e competências técnicas para a reciclagem de colchões. Com a RAP já implementada em Portugal, esta é, ainda assim, uma das cadeias de valor cujo tratamento está mais atrasado no país, juntamente com os RCD e as baterias de iões-lítio. A ZERO sublinha, deste modo, a necessidade de desenvolver uma indústria de reciclagem para o estabelecimento de teores máximos — ou proibição — de incorporação de poluentes nos colchões. A AEPSA descreve os colchões como um pequeno fluxo nos resíduos urbanos, pese embora de difícil recolha simultânea, cuja solução — que já existe, mas deve ser generalizada — passa pela implementação generalizada da designada logística inversa, ou seja, a recolha dos usados pelos distribuidores dos novos.