ÁGUA & AMBIENTE
01/05/24
Falta de investimento na reabilitação de redes e fraca evolução na redução de perdas são os dados mais salientes. Na gestão de resíduos, cobertura de gastos ainda é reduzida e até está a baixar.
Os serviços de água e resíduos não têm registado uma evolução significativa nos principais indicadores de qualidade de serviço, nos últimos anos, e há novos temas que importa integrar no dia a dia das entidades gestoras. O Relatório Anual dos Serviços de Águas e Resíduos (RASARP) foi publicado no final de fevereiro e faz a fotografia dos setores de abastecimento de água, saneamento de águas residuais e gestão de resíduos urbanos, já com base na 4.a geração do sistema de avaliação, que incorpora os novos desafios identificados nos planos estratégicos setoriais da água e dos resíduos. Na avaliação global da qualidade de serviço nas três atividades reguladas, a Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR) destaca, de uma forma geral, uma evolução “favorável” na última década, realçando que, em 2022, com a implementação da 4.a geração do sistema de avaliação, foram integrados indicadores novos para os quais as entidades gestoras do setor da água e resíduos ainda não estavam capacitadas. No entanto, a percentagem de indicadores com avaliação boa ou mediana, nos serviços de águas, não é entusiasmante: no abastecimento, é de 69% na alta e de 56% na baixa, enquanto no saneamento há 48% de avaliações boas e medianas na alta e 40% na baixa. “Não se vê a evolução que o país precisaria de ter em termos de qualidade de serviço”, avalia Helena Alegre, Diretora do Departamento de Hidráulica e Ambiente do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC). “Há estagnação em muitos indicadores e num nível que é inaceitável ainda”, concretiza. “Em geral, verifica-se uma estagnação de muitos dos principais indicadores”, nota também Eduardo Marques, presidente da AEPSA-Associação das Empresas Portuguesas para o Setor do Ambiente.
O baixo nível de reabilitação das infraestruturas é um dos aspetos mais salientes. Apesar de o regulador recomendar a reabilitação de 1,5% das condutas com mais de dez anos, no abastecimento, foi renovada apenas, nos últimos cinco anos, 0,2% da rede em alta e 0,6% da rede em baixa. No saneamento, só foram reabilitados 0,4% da rede de coletores em alta e 0,2% em baixa. A própria ERSAR alerta, nas conclusões do relatório, que este é um indicador com “um dos piores resultados, em anos sucessivos”. “É um dos indicadores que continuadamente continua a ser muito preocupante”, concorda Helena Alegre, que “diz muito sobre a falta de investimento na rede” “Há uma falta de reabilitação generalizada dos ativos”, realça também Eduardo Marques, que alerta para a necessidade de sensibilizar as entidades, mas também os poderes públicos, para o problema, antes que seja tarde demais. “Se deixamos cada vez degradar mais, chega a um ponto que, depois, a rede já não tem de ser reabilitada, tem de fazer tudo de novo”, diz. Por outro lado, se o país já apresenta níveis elevados de acessibilidade física aos serviços de água – 96% no abastecimento e 87% no saneamento —, a adesão aos serviços fica-se pelos 88,8% e 89,6%, respetivamente. “Estamos a falar de centenas e centenas de alojamentos neste país que têm rede à porta e têm um poço ou um furo, ou têm uma fossa sética, no caso do saneamento, e não aderiram ao sistema público”, ilustra Eduardo Marques. O próprio regulador alerta que a baixa adesão aos serviços de abastecimento e saneamento levanta “não apenas questões de saúde pública, mas também ambientais e de sustentabilidade do serviço”.
A cobertura de gastos é outro desafio comum aos dois serviços. Apesar de os valores médios neste indicador serem de 108% no abastecimento e de 99% no saneamento, isto mascara um país desigual. No abastecimento, das 219 entidades em baixa, 94 reprovam neste indicador e 28 não reportaram dados. No saneamento, em 213 entidades, mais de 60% (134) têm nota negativa ou não fornecem dados. “Continua a ser um grande problema do setor, porque não se nota evolução”, diz Eduardo Marques, lembrando que o PENSAARP 2030 realça que “é necessário um aumento tarifário significativo, em média, para o setor ser sustentável, sem necessidade de subsídios sistemáticos à operação”. Além disso, observa Helena Alegre, “se não estivermos a fazer reabilitação, podemos estar a ter a cobertura de todos os gastos que temos, só que não estamos a fazer os gastos que devíamos fazer”.
Perdas reais ainda são elevadas
Depois, há desafios específicos por superar em cada um dos serviços de água. No abastecimento, a redução dos níveis de água não faturada e de perdas reais avança em marcha lenta. Nos sistemas em baixa, a média de água não faturada foi de 27,1% em 2022 e, desde 2018, este valor baixou apenas 2,3%. Dois terços das entidades gestoras têm nota negativa neste indicador ou não reportam dados. Já nas perdas
reais de água, apesar de o regulador frisar que se registou “o valor mais baixo dos últimos cinco anos para as entidades em baixa” (118 litros por ramal/dia com uma densidade de ramais igual ou superior a 20 Km/rede), note-se que, das 219 entidades avaliadas, 62 recebem nota negativa e 18 não forneceram dados para avaliar o seu desempenho. “Continuamos com perdas enormes, apesar de certos indicadores terem uma melhoria não muito expressiva”, avalia Eduardo Marques. Já no saneamento, destaca-se o desempenho insatisfatório do setor nos indicadores de ocorrência de inundações: 7 sistemas em alta (em 12) e 83 entidades em baixa (em 213) não passam na avaliação e 26 nem dados têm para mostrar. Segundo Adriana Cardoso, investigadora do LNEC, apesar de haver variações anuais, que resultam da precipitação em cada ano, este resultado evidencia que “há interligações que não deviam acontecer e acontecem em muitos casos”, entre os sistemas de águas residuais e pluviais, ou que existe “falta de estanquidade dos coletores” por “a reabilitação ser insuficiente”.
Já no controlo de descargas de emergência, o próprio regulador vinca que “deve ser feito um enorme esforço de evolução por parte das entidades gestoras para proteção dos meios recetores”. Aqui mede-se a percentagem de descarregadores, com descarga direta para o
meio recetor, que são monitorizados e apresentam um funcionamento satisfatório, mas quase ninguém passa no teste: só 27 entidades (em 12 na alta e!40 na baixa) saem bem na fotografia. Este foi o primeiro relatório baseado da 4a geração de indicadores de qualidade de serviço e há, por isso, dados novos que ainda não integravam o diagnóstico anual do setor. Alguns deles assumem redobrada importância, num contexto de crescente escassez, como a produção de água para reutilização, que está ainda em fase de testes: como foram apenas consideradas utilizações com licença válida, o valor até baixou de 1,2%, em 2021, para 0,4%, em 2022. Helena Alegre destaca, contudo, o péssimo resultado dos sistemas de saneamento na monitorização da condição dos coletores. Este novo indicador mede a percentagem de coletores com mais de 10 anos que foram inspecionados nos últimos 5 anos, e há só uma nota positiva em 225 entidades (alta e baixa) avaliadas. “É impressionante o que se desconhece”, salienta. “Ou não há resposta ou, então, quem responde tem taxas de observação que faziam com que uma rede de coletores seria inspecionada, em média, uma vez de 50 em 50 anos”. Há também dados novos relacionados com a energia. Até aqui, era avaliada a eficiência energética de instalações elevatórias, e os valores de referência exigidos até baixaram nesta 4.3 geração, mas o desempenho está estacionário no abastecimento e piorou no saneamento.
“A eficiência energética das estações elevatórias mantém-se com eficiências baixas há muitos anos”, nota Catarina Silva, também investigadora do LNEC. Agora, foi acrescentado o indicador de produção própria de energia, que mede a percentagem de energia produzida pela entidade gestora face à energia total consumida nas instalações, mas os valores ainda são baixos: no abastecimento, regista-se 1% na alta e 4% na baixa. No saneamento, o nível de exigência é maior e o desempenho acompanha: 11% na alta e 6% na baixa. Ainda assim, há um longo caminho a percorrer até que as entidades atinjam os valores recomendados pelo regulador (10% no abastecimento e 20% no saneamento). No entanto, é expectável que haja uma evolução relevante neste indicador, dado que é cada vez mais acessível a colocação de painéis fotovoltaicos. “Não me parece muito difícil melhorar de uma forma relativamente expressiva a situação”, antecipa Helena Alegre. Por seu lado, o presidente da AEPSA realça que o desempenho das concessões municipais, que abrangem cerca de 20% da população, supera o das entidades públicas em diversos indicadores.
“Claro que há entidades públicas que têm performances semelhantes ao setor privado, mas, em termos médios, há uma diferença significativa”, assegura. Nas contas da AEPSA, o nível médio de água não faturada nas concessões privadas é de 15%, enquanto o setor público não vai além dos 29%, “mais ou menos o dobro”, aponta Eduardo Marques. Já nas perdas reais de água, o setor privado apresenta um valor médio “de 48 litros/ ramal/dia, enquanto o setor público tem 130, quase três vezes mais”, prossegue. Mesmo em indicadores onde o país apresenta um desempenho excelente, há diferenças: “o setor privado tem 99,8% de água segura e o setor público 98,9%”, elenca, uma diferença que considera “relevante” a nível da qualidade da água. Segundo a AEPSA, as concessões municipais também se destacam em indicadores que avaliam a interação com os utilizadores: no setor privado, “praticamente todas as reclamações são respondidas de acordo com os parâmetros que a ERSAR define” (99,7%), enquanto o desempenho do setor público fica-se “pelos 90,7%”.
Cobertura de castos a descer nos resíduos
Na gestão de resíduos urbanos, a avaliação global das entidades gestoras também fica aquém do desejável: no serviço em alta há apenas 47% de avaliações boas e medianas, enquanto na baixa este valor é de 54%. O regulador frisa, contudo, no relatório, que há vários em indicadores em teste, nesta 4a geração do sistema de avaliação, cuja robustez ainda está a ser avaliada. Ainda assim, saltam à vista alguns indicadores com histórico em que o setor até tem regredido. A cobertura de gastos fica-se pelos 70% na baixa, e das 237 entidades que prestam este serviço em baixa, mais de 75% tem um desempenho insatisfatório. A ERSAR destaca aliás, nas suas conclusões, que houve, neste indicador, “uma tendência de agravamento nos últimos cinco anos que é fundamental reverter”. “A valorização de resíduos por TMB é um indicador com uma evolução desfavorável desde 2020”, salienta ainda a ERSAR no relatório. Do total de resíduos entrados nestas unidades, menos de um terço foi desviado de aterro: 31% (em instalações de digestão anaeróbia) e 30% (em centrais de compostagem). Para Rui Berkemeier, técnico da ZERO-Associação Sistema Terrestre Sustentável, “estes valores, claramente, estão abaixo do que poderia ser”. Além disso, aponta o ambientalista, isto evidencia que a taxa de reciclagem nacional estará sobrestimada: “a APA e o Governo consideram que, para o cálculo da taxa de reciclagem, os TMB reciclam 54% dos resíduos e está à vista que isso não é verdade”, diz. A explicar parte deste resultado está o fraco desempenho das unidades na separação de recicláveis, que é avaliado noutro indicador.
Mais de 1,7 milhões de toneladas de resíduos indiferenciados dão entrada em unidades de TM ou TMB, mas apenas 2,3% de recicláveis são retomados por esta via, um desempenho considerado insatisfatório pelo regulador e sem evolução visível nos últimos cinco anos. “Os TMB ainda têm muito para trabalhar, porque este valor é muito baixo”, nota Rui Berkemeier. Na acessibilidade física à recolha seletiva, a ERSAR sublinha que tem havido uma evolução positiva, mas que o indicador passou a incluir “o acesso, no mesmo ponto, à deposição indiferenciada e seletiva multimaterial”. O setor está abaixo dos 60% neste indicador, na alta e na baixa, o que significa que um terço da população não tem um contentor para depositar recicláveis a menos de 100 metros nas cidades ou de 200 metros em zonas menos urbanas. Nesta nova geração de indicadores, incluiu-se já a monitorização da acessibilidade ao serviço de recolha seletiva de biorresíduos, mas o relatório não apresenta dados neste primeiro ano, por o regulador ter identificado “fragilidades no cálculo do indicador e incongruências no reporte da informação”.
Ainda assim, os dados de base de suporte ao relatório, disponibilizados pela ERSAR, mostram quão incipiente era ainda, em 2022, a recolha de biorresíduos no país, um ano antes de se tornar obrigatória por imposição comunitária. A recolha seletiva de biorresíduos alimentares situava-se, nesse ano, em cerca de 61 mil toneladas, e apenas 35 entidades faziam esta recolha, com Lisboa, Porto, Matosinhos e Maiambiente a liderar a lista. Outros indicadores — como os que avaliam a autossuficiência energética, a taxa de recolha seletiva ou a taxa de reciclagem — estão ainda em fase de teste e não apresentam a avaliação das entidades. Ainda assim, a percentagem de resíduos urbanos recolhidos seletivamente no país não foi além dos 21% em 2022, e a taxa de reciclagem, no conjunto das entidades gestoras do continente, ficou-se pelos 31%, bem longe dos 55% que se pretende atingir. De resto, a quarta geração de indicadores reflete já os enormes desafios plasmados nos dois planos estratégicos que definem o rumo para os serviços de águas e resíduos até final da década. Nos serviços de águas, Helena Alegre espera que a aplicação do PENSAARP 2030 sirva para alavancar de novo o setor: “Não podemos viver à sombra do milagre português, estamos numa fase de estagnação, com um retrocesso iminente se não atuarmos muito rapidamente”, resume.