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Mais de metade dos 5,5 mil milhões previstos para o setor serão usados para reduzir as perdas de água na rede de abastecimento. PENSAARP 2030 define metas até ao final da década, mas carece medidas.
O Plano Estratégico para o Abastecimento de Água e Gestão de Águas Residuais e Pluviais 2030 (PENSAARP 2030) prevê que sejam investidos cerca de 5.500 milhões de euros no setor até ao fim desta década. A estratégia, que esteve em consulta pública em 2023, e que foi aprovada e publicada em Diário da República, este ano, prevê que desse valor mais de metade seja destinado à reabilitação das redes que, todos os anos, perdem largas quantidades de água antes de chegar às torneiras do consumidor final.
Combater as perdas tornou-se na principal prioridade deste plano. No entanto, a estratégia não esclarece de que forma esse trabalho será feito, embora defina metas de redução do desperdício que devem ser atingidas em 2026 e 2030.
João Poças Martins, antigo secretário de Estado do Ambiente e professor da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto considera que o plano de ação do PENSAARP 2030 não “dá propriamente respostas concretas” ao problema das perdas de água, mas argumenta, simultaneamente, que “não é esse o seu papel”. “Quem tem de resolver o problema são as entidades gestoras”, diz.
De acordo com os dados da Entidade Reguladora dos Serviços de Água e de Resíduos (ERSAR), em 2021, 197 milhões de metros cúbicos (m3) de água, ou seja 23,9% do total de água que entrou no sistema, foram perdidos. A maior parte, 174 milhões de m3, dizem respeito aos serviços em baixa, isto é, à parte da distribuição. Em alta, a parte do serviço relacionada com a captação e tratamento na origem, perderam-se 23 milhões de m3 – corresponde a 1,5 vezes o volume de armazenamento da albufeira de Odeleite, no Algarve, o que permitiria servir 2,9 milhões de habitantes em Portugal.
“Cerca de 30% [das entidades gestoras] já [resolveram o problema], mas 200 têm ainda perdas superiores a 20% e não melhoram há mais de dez anos. É uma situação difícil de compreender e de aceitar, apesar dos planos antecessores“, comenta Poças Martins, fazendo referência ao anterior plano do regulador da água que vigorou até 2020.
O combate às perdas não é novo. No relatório de monitorização do PENSAAP 2020, a ERSAR faz um balanço dos resultados obtidos através daquela estratégia que foi sendo executava até 2020, no qual afirmou que “sem prejuízo de algumas melhorias verificadas”, verificou-se uma “estagnação das médias nacionais nos últimos anos”, nomeadamente, no que respeita às perdas reais, à reabilitação e à recuperação de gastos. “Por isso se pode considerar que as metas do PENSAAP 2020 ficaram aquém do expectável“, lê-se.
A nova estratégia determina metas de redução das perdas reais de água até ao final da década. Nos sistemas em baixa, o objetivo é manter o nível de perdas abaixo dos três metros cúbicos por quilómetro por dia (m3/(km.dia)), tanto em 2026 como em 2030. Atualmente, esse valor encontra-se nos 2,3 m3/(km.dia).
Relativamente às perdas reais em alta, as metas preveem uma redução dos atuais 6,1 m3/(km.dia) para menos de 5 m3/(km.dia), até 2026, valor que deverá manter-se até 2030. E no que toca aos sistemas em baixa com uma densidade de ramais igual ou superior a 20 quilómetros de rede, o objetivo é reduzir dos atuais 128 l/ramal/dia para menos de 100 l/ramal/dia, em 2026, e para menos de 80 l/ramal/dia, em 2030. Mas o caminho para que estas metas sejam concretizadas é pouco esclarecedor.
“Quem tem de resolver o problema são as entidades gestoras. Cerca de 30 já o fazem, mas 200 têm ainda perdas superiores a 20% e não melhoram há mais de dez anos. É uma situação difícil de compreender e muito menos de aceitar.”
João Poças Martins, antigo secretário de Estado do Ambiente e professor da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto
No capítulo do plano de ação dedicado às “medidas, incentivos e estímulos” para aumentar a eficiência hídrica, os incentivos destinados às áreas governativas assentam em alterações a nível legislativo, “com a obrigatoriedade de elaboração de planos de eficiência hídrica”.
Quanto aos “estímulos”, o plano pede aos “agentes do setor” que elaborem recomendações sobre eficiência hídrica e procedimentos de auditoria hídrica das entidades gestoras, cadernos de sensibilização para decisores, ações de divulgação de casos de referência no que toca a perdas e água e a promoção de ações de “formação e capacitação em contratos de redução de perdas de água remunerados em função dos resultados”.
“Achamos que é um plano demasiado estratégico e pouco operacional. Essa é a primeira grande crítica que se pode fazer“, aponta Carlos Rodrigues, CCO e membro do conselho de administração da Aquapor, gestora de concessões municipais, abastecimento e saneamento de água. Segundo o responsável, a falta de “medidas concretas” em matérias de perdas de água torna o PENSAARP 2030 “bastante inócuo” face às metas que são definidas.
“Na componente de resiliência e aumento da eficiência das redes fica muito por explicar”, acrescenta o responsável. “São dadas luzes e ideias de como se vai evoluir, mas fica despedida de conteúdo sobre como vai ser executado”, defende, relembrando, contudo, que em matéria de tratamento de águas residuais estão previstas mais de duas dezenas de intervenções, especialmente remodelações ou construções de Estações de Tratamento de Águas Residuais (ETAR), seja por exemplo em Paços de Ferreira ou Oliveira de Azeméis, Coimbra ou Cantanhede, Golegã ou Vila Viçosa, Sines ou Albufeira, entre muitas outras localidades.
“As medidas a implementar necessitam de suporte técnico, de investimento na reabilitação e reforço infraestruturas, da aposta em inovação e tecnologia, e do envolvimento e compromisso de todos: instituições, entidades gestoras de serviços de águas e consumidores”, defende Jorge Cardoso Gonçalves, presidente da Associação Portuguesa dos Recursos Hídricos (APRH). Mas a sua posição não é consensual.
“Já se gastou muito dinheiro em cadastros, tecnologia, consultoria e substituição de condutas”, argumenta Poças Martins referindo, a título de exemplo, que há entidades gestoras que conseguiram reduzir os níveis de perdas “para metade em apenas oito meses, praticamente sem investimentos”, argumenta.
“Não se pode persistir em soluções e agentes que manifestamente não deram resultados: repetir os mesmos procedimentos e erros e esperar resultados diferentes é definição de insanidade, de acordo com Einstein“, atira o professor.
Acesso a fundos europeus levanta dúvidas
No PENSAARP 2030, também não é referido como serão recolhidos mais de metade dos 5.500 milhões de euros necessários para modernizar a rede, embora o regulador já tenha sinalizado que essa estratégia poderia ser financiada somente através de um aumento generalizados do tarifários dos consumidores domésticos
No plano estratégico, a ERSAR anuncia que os investimentos necessários e os correspondentes gastos operacionais apontam “para um tendencial acréscimo das tarifas médias domésticas“, entre 2,45 euros por metro cúbico e 3,28 euros por metro cúbicos.
O apelo para um aumento de preços já tinha sido feito pela presidente da ERSAR, Vera Eiró, numa entrevista ao Capital Verde, na qual defendeu que “as tarifas devem deixar de ser subsidiadas e devem traduzir o custo real do serviço“, sublinhando que tais aumentos seriam suficientes para cobrir a totalidade do investimento previsto no PENSAARP 2030.
Mas uma vez que o aumento de tarifas não é uma garantia (o regulador não têm competências para definir os tarifários no setor e os municípios “pouca vontade têm” de subir os preços, considera a Aquapor), está previsto que a principal linha de financiamento da estratégia, em matéria de fundos europeus, seja proveniente do Quadro Financeiro Plurianual – Portugal 2030.
Mas o acesso a estes fundos também não é garantido. Do lado da Associação das Empresas Portuguesas para o Setor do Ambiente (AEPSA), alerta-se para o facto de a versão do plano que foi aprovada em Conselho de Ministros faz com que cerca de 80% dos municípios estejam excluídos do acesso a fundos comunitários.
Segundo Eduardo Marques, presidente da direção da AEPSA e membro da Comissão Consultiva do PENSAARP 2030, um dos critérios previstos para a atribuição dos apoios é de que todos os investimentos devem beneficiar da escala de agregação em entidades intermunicipais ou de parcerias com entidades gestoras do grupo Águas de Portugal, tendo por objetivo promover a sinergia entre as entidades, aumentando a escala dos projetos, e a otimizar as suas condições de gestão e operação.
O responsável frisa que com a introdução destes requisitos, torna-se “absolutamente claro” que o financiamento através de fundos comunitários fica “vedado a cerca de 80% dos municípios portugueses” que não se encontram em agregações. Mas não serão só os municípios independentes que ficarão de fora do acesso aos apoios.
“Este plano e os fundos vai beneficiar as agregações intermunicipais públicas e o grupo Águas de Portugal. A queixa [da AEPSA] é legítima e nós, entidades privadas, também ficamos automaticamente excluídos“, afirma o CCO da Aquapor, recordando que as concessões privadas, de acordo com os dados da ERSAR, tendem a ser aquelas com os níveis mais baixos de perdas de água face às gestões públicas.
Também João Levy, responsável pela consultora de serviços de eficiência hídrica, Ecoserviços, e professor no Instituto Superior Técnico, levanta questões sobre de que forma os apoios provenientes dos fundos europeus serão distribuídos.
“O problema de fundo é perceber de que forma serão distribuídas as verbas: pelas entidades em alta ou em baixa, gerida pelos municípios?”, questiona. “Se as verbas não forem atribuídas aos municípios — e se forem mas sob condições, como se agregarem obrigatoriamente ou se verticalizarem com as [entidades em] alta, — as perdas não serão resolvidas”, conclui.
A falta de medidas e as dúvidas em relação aos apoios não tranquilizam os operadores deste setor, embora manifestem interesse e vontade de melhorar as condições de uma rede de abastecimento que perde água numa altura em que os níveis de seca e os alertas face à escassez pedem por consumos mais responsáveis e equilibrados.
E o facto de o documento só ter sido aprovado em sede de Conselho de Ministros quatro anos depois de ter sido apresentado, tendo passado por dois processos de consulta pública, em 2023, e cujos relatórios são ainda desconhecidos, também não oferecem sinais de que a estratégia produzirá os resultados que se pretende.
“Certamente que [este atraso] terá impacto”, afirma João Levy. “Teremos resultados, mas não os que poderíamos ter com uma gestão agilizada“, vinca.