ECO Capital Verde
Pedro Siza Vieira avalia, em dez pontos, as políticas públicas da água no contexto de crescente diminuição da quantidade disponível ao mesmo tempo do aumento da procura.
1. Uma nova realidade – a diminuição da quantidade de água que ocorre naturalmente no país
Nas últimas semanas, tomámos conhecimento que o Algarve enfrenta uma seca severa; a precipitação nos últimos nove anos foi inferior à média e as seis albufeiras da região estão a 25% da sua capacidade, menos 20 pontos percentuais do que em igual período do ano passado. As disponibilidades de água são insuficientes para os níveis de consumo habituais, pelo que a o Governo se prepara para impor medidas de racionamento, com metas de redução do consumo de água no Algarve em 25% em média para o setor agrícola e 15% para os consumos urbano, o que inclui o turismo. Este cenário extremo arrisca-se a deixar de ser excecional, face ao impacte que as alterações climáticas estão a ter no nosso território
Com efeito, a água disponível no nosso país é função da precipitação que ocorre em território nacional e das afluências dos rios internacionais, bem como de reservas que estão em aquíferos subterrâneos que acumulam água ao longo do tempo. Ora, os níveis de precipitação não são idênticos em todo o país (maior abundância no Norte e na vertente atlântica, maior escassez a sul do Tejo e no interior), ao longo do ano (as precipitações acontecem sobretudo entre o final do outono e o princípio da primavera) e, sobretudo, irregularidade de ano para ano. A redução da precipitação média nos últimos tempos tem acentuado estas características, com o Sul, particularmente o Algarve, a receber menos chuva, o que tem levado a um recurso mais intenso aos aquíferos subterrâneos, levando à redução substancial da disponibilidade destes. Quanto à água que nos chega pelos rios, ela caracteriza-se por refletir as características da precipitação. Os rios têm um regime torrencial, com cheias na época das chuvas e caudal diminuto na época seca.
O nosso país foi-se adaptando a estas características hídricas. Por um lado, a Norte do Tejo, a agricultura com grande disponibilidade de água tende a ser de sequeiro (não regada), ou regada utilizando métodos menos eficientes (rega por alagamento ou por aspersão); mas a Sul, tem-se alargado o recurso a métodos de rega mais eficientes. Por outro lado, foram feitos investimentos nas últimas décadas em barragens que conseguem a regularização dos caudais dos rios e o armazenamento de água ao longo dos anos (Alqueva foi concebido para assegurar consumo durante um período de três anos de escassez hídrica). Portugal tem vivido com relativa tranquilidade com a água que tem disponível, e só retém nas suas barragens uma pequena parte da água que chega ao nosso território. Também o regime de propriedade de águas predominante em cada região reflete esta diversidade geográfica. No sul, parte importante da água utilizada na agricultura é água do domínio público, captada nos rios e distribuída através de sistemas de rega. No norte, a água é sobretudo particular e de propriedade privada.
Porém, o cenário mais provável é que, nos próximos tempos, a quantidade de água que ocorre naturalmente no país se vá reduzindo. Este fenómeno já se verifica: dos dez anos mais secos de sempre, seis foram depois de 2000 e nos últimos 20 anos assistiu-se a uma redução de 25% da precipitação. Nos próximos anos, esta tendência vai acelerar-se significativamente. As situações de seca, particularmente nas regiões que se já a experimentam com regularidade, vão tornar-se mais frequentes; o Tejo já apresenta com frequência situações de caudal diminuto; e, por outro lado, a tendência para precipitação intensa e curta e caudais torrenciais vai acentuar-se. Para um país que retém pouca água, esta tendência de chuva intensa mas pouco frequente é inútil.
Ao mesmo tempo, aumentou significativamente a procura de água – particularmente no setor agrícola. A modernização extraordinária da agricultura portuguesa permitiu a diversificação de culturas, a introdução de maior conhecimento na atividade e com isso um significativo aumento da produtividade. Uma proporção cada vez maior das explorações agrícolas passou a ter sistemas mais eficientes de rega, mas a larga maioria (cerca de 70%) ainda não mede a água que consome. A agricultura percebe a importância do recurso água, mas não o paga, ou se o paga, não remunera totalmente o seu custo, desde logo porque a maioria da água utilizada, particularmente a norte do Tejo, é privada.
Ora, se a procura aumentou e a água disponível se vai reduzir, os sistemas de abastecimento de águas para os diversos fins – consumo humano; consumo industrial; atividade agrícola – vão conhecer cada vez mais situações de stress hídrico, em que a água disponível não será suficiente para satisfazer a procura. Tornando-se cada vez mais frequentes as situações de escassez o país precisa de ter medidas prontas a atuar em cada circunstância: definição de prioridades de abastecimento, formas de abastecimento alternativas, etc., de modo que perante cada emergência exista um protocolo de resposta que tranquilize a população e assegure a disponibilidade do recurso para as necessidades fundamentais. Mas essa resposta de crise não pode bastar. A falta de água e o racionamento não podem ser o modo de gerir o impacte das alterações climáticas, pois que isso porá em causa o bem-estar das populações, o modo de vida nas nossas cidades e a produtividade da nossa agricultura. Ora, se o país dispõe de água, mas esta se encontra assimetricamente disponível – mais no norte que no sul; sazonalmente incerta, de modo que períodos curtos de precipitação abundante coexistem com momentos prolongados de falta de chuva – a ciência e a tecnologia, bem como a experiência internacional, mostram que há formas de lidar com estas circunstâncias.
Mas para podermos enfrentar com sucesso esta nova realidade, e transformá-la numa oportunidade de criar valor através de uma economia circular assente na inovação, devemos refletir de forma estruturada sobre o tema da água e mobilizar-nos para um conjunto de mudanças de comportamentos e de hábitos e para a realização de um conjunto de investimentos imperiosos para lidar com o fenómeno.
Em síntese, teremos de promover um uso mais eficiente da água – reduzindo o consumo, particularmente na agricultura, com investimentos na melhoria dos sistemas de rega e evitando perdas nos sistemas de distribuição urbanos e agrícolas – e de aumentar a disponibilidade de água – reutilizando águas residuais; procurando reter mais da água que aflora no nosso território; investindo na dessalinização; e ponderando, se tal se mostrar ainda assim necessário, o transporte de água de regiões com mais disponibilidade hídrica para as regiões com maior stress. Estas mudanças exigem investimentos avultados – e portanto levantam a questão do modelo de financiamento do sistema – e, a meu ver, uma mudança na governação do sistema.
Neste ensaio, procuro estruturar algumas ideias sobre o tema da gestão da água, e contribuir para a discussão pública de um dos temas mais críticos para o nosso futuro coletivo. Na preparação deste ensaio recorri a diversas fontes, mas devo referir em particular o estudo promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian O Uso da Água em Portugal.
2. Reduzir a procura de água – o lado do consumo humano
Nas últimas décadas, o país melhorou significativamente a gestão da água e a sua disponibilidade em condições de qualidade e segurança. Investiu-se decisivamente no tratamento da água para consumo humano, de tal forma que hoje 99% da água disponível nas redes públicas é segura. Reforçaram-se os sistemas de saneamento de águas residuais, sendo hoje pontuais os casos em que o efluente é rejeitado no meio ambiente (oceano, águas interiores) sem ter sido objeto de tratamento que o torne compatível com as regras europeias e não seja prejudicial ao meio ambiente. Aumentaram-se as captações de águas públicas através de investimentos em barragens e regulamentou-se a captação de águas particulares (hoje, não é possível abrir um furo sem um título de utilização). Resolvidos os temas da qualidade e segurança do abastecimento, o foco das políticas públicas deve passar a ser, portanto, a necessidade de ser mais eficiente na utilização da água. E a ação mais importante, a prioritária e a mais fácil de concretizar deve estar do lado da redução da procura – quer no consumo humano, quer sobretudo, na agricultura, que corresponde a cerca de 75% do consumo anual de água no nosso país.
Do lado do abastecimento urbano, as primeiras iniciativas devem estar centradas na redução do consumo. Isso deverá assentar na consciencialização dos consumidores para a valorização do recurso, e para maior transparência nos custos que lhe estão associados. A busca por equipamentos mais eficientes e por mecanismos de reutilização no próprio local de consumo (recirculação da água do duche enquanto aquece, ou reutilização das águas para autoclismos, p. ex., são sistemas simples e económicos) deve ser encorajada. Rega de jardins ou lavagens de veículos podem também beneficiar de sistemas mais eficientes.
Mas a maior possibilidade de ganhos está na redução de perdas nas redes de distribuição. A água não faturada está estimada em cerca de 30% daquela que entra nas redes, e grande parte desta percentagem corresponderá a perdas devido a falta de manutenção. Isto é: da totalidade da água que captamos em rios e albufeiras e que tratamos para a deixar em condições seguras para o consumo humano – para cozinharmos ou bebermos sem receio, por exemplo – e dos custos associados a essas operações, quase um quarto é desperdiçado ou não cobrado, muitas vezes por perdas nas redes de distribuição. Essas perdas decorrem da falta de manutenção pelas entidades gestoras Deste modo, investir na manutenção ordinária e extraordinária das redes permitirá reduzir as perdas e, noutra perspetiva, aumentar a quantidade disponível para consumo humano.
3. Reduzir a procura de água – o lado da agricultura
Do lado da agricultura, a redução da procura implica atuar em diversas frentes. O território português é particularmente adverso para a atividade agrícola, com solos pobres e escassez de água em grande parte do território nacional. A agricultura de sequeiro é normalmente pouco produtiva e tem vindo a reduzir-se nos últimos anos, seja por razão de escassez do recurso, seja por motivos económicos – de uma maneira geral, os agricultores constatam que a rega aumenta a produtividade. Igualmente nos últimos anos, a rega gota a gota e a gestão dos sistemas de rega tem vindo a ganhar terreno à rega por alagamento ou por aspersão – uma vez mais por razões económicas evidentes (menos custos e maior produtividade).
Persistem, porém, dificuldades na maior penetração de práticas de rega mais eficientes. Uma delas, bastante relevante, é o desafio tecnológico: a gestão eficiente da água exige maior capacitação e investimento em equipamentos de monitorização de rega (sondas; estações meteorológicas; sistemas informáticos e equipamentos de controlo de rega; etc). Para além do custo associado, a sua operação e o aproveitamento do seu potencial exigem um grau de formação de que muitos dos nossos agricultores ainda carecem.
O outro fator é a falta de incentivo ao investimento: muitas explorações agrícolas não pagam a água que utilizam – muita dela privada, mas também águas públicas – e as que a pagam não internalizam no seu preço a totalidade dos custos (de resto, grande parte do investimento na captação de água para agricultura ou na instalação de sistemas de regadio é suportado por subsídios públicos que não são repercutidos no custo da água). Como se disse acima, a maioria das explorações agrícolas em regadio nem sequer tem contador que permita medir a quantidade de água que é utilizada. Esse é o sinal mais evidente de que a água não é valorizada como um recurso escasso que deve ser mais bem gerido.
O caminho no sentido da utilização eficiente da água na atividade agrícola deve prosseguir, permitindo continuar a aumentar a nossa produção e as nossas exportações e substituir importações – não apenas por motivos económicos, mas também de gestão da paisagem e coesão territorial e por razões ambientais (o consumo de produtos locais reduz de forma evidente a pegada ambiental), e a agricultura contribui para a retenção de carbono. Os sistemas de rega eficientes podem também reduzir a utilização de fertilizantes, através da sua diluição na água e da sua utilização apenas nas quantidades necessárias à otimização da produção.
Isso implica, como se viu, a capacitação dos produtores e o apoio ao investimento. Mas também pode ser induzido pelo lado dos consumidores. A campanha «Portugal Sou Eu» tem evidenciado ao longo dos anos a disponibilidade dos consumidores para comprarem produtos nacionais, levando os retalhistas a valorizarem a produção nacional e demonstrando as virtualidades de uma mudança na atitude dos consumidores para indução de maior sustentabilidade nas práticas agrícolas.
Não é possível discutir a redução do consumo nas explorações agrícolas, porém, sem discutir a qualidade das redes de rega – públicas ou privadas. Grande parte dos sistemas de rega no nosso país (com a notória exceção do Alqueva e poucos outros exemplos recentes) data do século passado e leva já muitas décadas de deficiente manutenção. São sistemas por gravidade, notoriamente ineficientes e com perdas ao longo do circuito. Também nas captações de águas e sistemas de rega particulares existem défices de manutenção. Pela ausência de medição nas explorações agrícolas, é difícil afirmar qual o volume de perdas, mas as estimativas existentes apontam para valores na ordem dos 30%. Esta constatação é suficiente para demonstrar a importância da realização de investimentos para redução de perdas.
4. Diversificar a oferta – reutilização das águas residuais
Se se mostra necessário um esforço do lado da procura, não se deve recusar o trabalho que o país pode realizar do lado da oferta. Aqui, a área mais evidente passa pela reutilização das águas residuais. Atualmente, a quase totalidade da água para consumo humano e industrial e grande parte das águas pluviais urbanas é recolhida em sistemas de saneamento e recebe tratamento antes da sua rejeição no meio ambiente (oceano ou cursos de águas interiores). Se esta água já é gerida e tratada – de tal forma que pode reentrar no meio ambiente – é seguro que pode ser reutilizada.
Alguns exemplos no mundo oferecem casos de reutilização para consumo humano. Mas sem se ir tão longe, parece claro que a água residual tratada pode ser reutilizada, com maior ou menor tratamento, para consumo urbano (lavagem de ruas ou veículos; rega de jardins ou de campos de golfe) e também para a rega agrícola.
A reutilização de águas residuais exige, é certo, investimento em redes, para reencaminhar as águas residuais para os locais de consumo (a água residual não deve reentrar na rede pública de abastecimento para consumo humano) mas o investimento compensa e os exemplos internacionais multiplicam-se.
Uma nota para referir que estes investimentos devem ser suportados pelos respetivos utilizadores ou por subsídios públicos (a reutilização de águas residuais, aliás, é das poucas elegibilidades reconhecidas para financiamento pelos fundos estruturais no âmbito do ciclo urbano da água) e não ser levados à tarifa dos sistemas de abastecimento ou de saneamento.
5. Diversificar a oferta – novas captações e barragens
A água que é utilizada na agricultura é, em grande medida, aquela que ocorre naturalmente: agricultura de sequeiro ou regadio com águas particulares. Os sistemas de abastecimento de água para consumo humano ou para agricultura exigem captações que implicam investimento e que estão dimensionados para as ocorrências de água historicamente prevalecentes e os níveis de consumo existentes. Algumas captações mais recentes visaram aumentar a retenção de água de determinadas bacias hidrográficas (quando foi construída a barragem de Odelouca pensou-se que o problema da reserva das águas estava resolvido no Algarve…), mas, de uma maneira geral, Portugal retém relativamente pouca da água que aflora no país – seja a água das bacias dos rios nacionais ou dos internacionais (algumas estimativas apontam para um aproveitamento de apenas cerca de 10% da água que nos chega).
Acresce que a disponibilidade de água ocorre principalmente a norte do Tejo. Por isso, importa ser mais eficaz a reter a água nos locais onde ela é mais escassa. Isso implica avaliar a construção de novas barragens. Estas podem servir para captar águas atualmente não aproveitadas – pense-se na barragem do Pisão – ou regularizar o caudal em certas regiões – pense-se na bacia do Tejo e da Barragem do Ocreza.
A construção de barragens tem impacto sobre os ecossistemas existentes e deve ser ponderada atentamente. Não pode ser encarada como primeira medida, mantendo ineficiências do lado da utilização. Atuando do lado da procura, como se disse acima, podem diminuir-se as probabilidades de situações de escassez de água. Mas ainda assim as projeções da disponibilidade do recurso implicam atuar igualmente promovendo maior retenção da água que recebemos.
Mais fácil, e menos oneroso do ponto de vista do investimento e ambiental, é a multiplicação de charcas para retenção da água da chuva. Faz todo o sentido simplificar e acelerar o seu licenciamento e apoiar a sua construção pelos proprietários dos terrenos onde elas sejam possíveis.
6. Diversificar a oferta – dessalinização
Em países que nos são próximos – Espanha e Israel – constata-se que em países costeiros com um sistema de gestão de água integrado, a dessalinização é encarada como uma componente da diversificação da oferta – seja para produção de água para consumo humano, seja para outros fins.
Uma vez mais, a dessalinização não pode ser encarada como solução para o desperdício de água – tem custo elevado do ponto de vista económico e ambiental. O custo económico tem a ver – mais do que com o investimento inicial – com o consumo de energia para o processo de dessalinização (térmico ou por osmose inversa, que é o processo prevalecente). O custo ambiental tem a ver com o resíduo do processo de dessalinização – a salmoura, com elevada concentração de sal e outros minerais, que não pode ser disperso no meio ambiente sem cautelas significativas e cujo custo de rejeição encarece igualmente o processo.
A verdade é que, por um lado, a redução dos custos de energia renovável no nosso país permite encarar um custo de produção mais competitivo. Por outro lado, hoje é possível dar novas utilizações à salmoura, que pode ser fonte de minerais importantes como o lítio – há mais lítio nos oceanos que no subsolo. E, finalmente, novas tecnologias utilizam centrais submarinas, a profundidades onde a concentração salina é inferior, reduzindo a energia utilizada e diminuindo a concentração na salmoura, permitindo a sua rejeição para o oceano sem consequências adversas.
A dessalinização já é realizada em Portugal há várias décadas – em Porto Santo, onde abastece todas as necessidades da ilha, ou em instalações privadas no Algarve – e irá agora ser concretizada no Algarve, com financiamento do PRR. A dessalinização deve continuar a ser ponderada no contexto da panóplia de soluções para o problema da água.
Tanto pode ser encarada como uma forma de captação para abastecimento direto pelos sistemas municipais – designadamente por subconcessão – como para fornecimento a sistemas multimunicipais; e tanto pode entregar água bruta (dessalinizada, mas não tratada) como água já tratada para cumprir os requisitos para entrar na rede de abastecimento, tudo em função da avaliação do respetivo custo.
A concretização de projetos de dessalinização beneficiará de intervenção legislativa no sentido do seu enquadramento no sistema de gestão do ciclo da água e do seu tratamento tarifário. Deve ponderar-se se pode ou não permitir-se que as entidades gestoras de sistemas em baixa adquiram água dessalinizada a outros que não as entidades gestoras de sistemas em alta, e estabelecer-se as condições para que assim seja. E deve pensar-se se a atividade pode ser liberalizada, dependente apenas de licença e de avaliação ambiental, financiando-se apenas pela venda em regime de preço acordado com os interessados, ou se deverá carecer de concessão administrativa.
7. Diversificar a oferta – transvases
Já se disse acima que a região a Norte do Tejo dispõe de mais água, e que esta escasseia a sul. Noutros países sujeitos a situação de stress hídrico (uma vez mais, Espanha e Israel são casos próximos e conhecidos, mas também na América do Norte, na Ásia e em África), é comum a realização de transvases entre bacias hidrográficas, por vezes a grandes distâncias entre si. A realização de transvases envolve investimentos importantes e é muitas vezes contestada por razões ambientais, sobretudo porque se receia que ela viabilize a permanência de práticas agrícolas ineficientes no uso da água, mas também pelo impacte nos ecossistemas. A verdade é que em Portugal, esta solução já foi utilizada: por exemplo, o Alqueva, na bacia do Guadiana, faz transvases para a bacia do Sado.
Os transvases são mais uma forma de gestão da água que não deve ser descartada sem ponderação. Porque são investimento importante, só se justificam se as restantes medidas não forem suficientes para equilibrar a disponibilidade de água com a procura em cada região hidrográfica.
8. O preço de um recurso escasso
Os diversos estudos junto da opinião pública e dos agricultores demonstram que o recurso água, sendo entendido como essencial, não é encarado como escasso ou excessivamente valorizado. A água é barata, quer no conjunto dos serviços públicos essenciais, quer como fator de produção agrícola. O próprio facto de existirem perdas nos sistemas de distribuição e de rega e de muita da água utilizada na agricultura não ser paga contribui para a noção de que este é um recurso relativamente acessível.
Esta noção é evidentemente contraditória com o alarme recorrente associado às situações de seca e de stress hídrico que vão sendo cada vez mais frequentemente noticiadas. É já um tema de preocupação por parte da opinião pública a falta de água ou a seca, até pela sua frequente associação com o fenómeno dos incêndios florestais. Ainda assim, o preço da água não reflete o seu custo, não incentiva a eficiência na sua utilização e desencoraja os investimentos que se mostram necessários no futuro.
Uma parte do problema estará no facto de historicamente a água disponível ser suficiente para as necessidades do país. Uma outra parte pode decorrer da circunstância de que grande parte do investimento realizado nas últimas décadas nos sistemas de abastecimento de água e de saneamento, e nas novas captações e sistemas de rega, ter sido financiado com recurso a fundos da União Europeia e outros recursos públicos, sem terem sido repercutidos no utilizador. Algum do investimento nas redes de distribuição foi efetuado com recurso a financiamento privado, com impacto nas tarifas. Mas, de uma maneira geral, uma componente muito significativa dos custos de investimento não é repercutida no preço da água.
Por outro lado, é sabido que muitos sistemas municipais não cobrem a totalidade dos custos na tarifa que cobram aos utilizadores. Seja porque acumulam dívidas aos sistemas em alta; sejam porque escolhem subsidiar os munícipes – por razões sociais ou outras. O esforço legislativo e regulatório dos últimos anos não tem sido suficiente para ultrapassar esta situação, que persiste.
O tema é complexo, suscitando inclusivamente questões ao nível da coesão nacional. No caso da água para consumo humano, os sistemas que servem territórios com mais baixa densidade populacional tenderão a ter custos unitários mais elevados; e os sistemas de menor dimensão igualmente. Em razão disso, as regiões mais ricas e densamente povoadas têm normalmente preços mais baixos que regiões menos desenvolvidas e do interior. Esforços para agregação de sistemas para ganhar escala vão fazendo o seu caminho; mas tentativas passadas de ligação de sistemas multimunicipais agregando regiões do litoral e do interior foram politicamente contestadas e acabaram por ser revertidas. Por outro lado, alguns dos sistemas municipais concessionados a privados revelaram-se, com o tempo, demasiado onerosos em comparação com sistemas públicos, seja por exigências elevadas de remuneração do capital, seja por desenho deficiente dos contratos, seja, de forma mais saudável, porque os privados exigem mesmo a remuneração da totalidade dos custos incorridos pelo sistema – incluindo na modernização das redes – que outros sistemas financiaram sem recurso às tarifas.
Ainda assim, tem de prosseguir o caminho para assegurar a cobertura dos custos pelas tarifas. Trata-se da única forma de remunerar de modo sustentável o investimento que ainda há que fazer nas redes e a sua manutenção a longo prazo. A água para consumo humano é atualmente um serviço muito barato e as populações devem apreciar que a sua elevada qualidade é compatível com uma elevação do preço que será ainda assim socialmente comportável.
Não devemos negligenciar o tema social. Sendo a água um bem essencial, ninguém deve ser privado do acesso ao mesmo por razões sociais. Para isso existem as tarifas sociais – que podem ser socializadas através das tarifas suportadas pelos demais consumidores ou assumidas pelos contribuintes. Mas também se pode pensar em refinar os sistemas de preços por escalões, assumindo que um escalão mais baixo com preço reduzido cobriria as necessidades essenciais de um agregado típico, subindo a partir daí para desencorajar o consumo excessivo.
Mas, em Portugal, a água para consumo humano é uma pequena parte da água consumida, e a água para agricultura representa cerca de 75% do total. É sobretudo na agricultura que a criação de um sinal de preço da água criará os incentivos para uma gestão mais eficiente da água nas explorações agrícolas e para justificar o investimento na melhoria e reforço dos sistemas de rega.
Importa apoiar os agricultores à medida que se comece a cobrar a água, sobretudo a água pública, apoiando a instalação de medidores, o investimento em tecnologias e a capacitação dos agricultores para a sua utilização. A experiência mostra que o investimento na gestão inteligente da água aumenta a produtividade e compensa sempre nos casos em que, por definição, o recurso é escasso. É necessário que seja demonstrado que não só a água se tornará em quase todas as circunstâncias um recurso escasso, mas que o investimento e a tecnologia podem compensar amplamente o pagamento por um bem que atualmente não é praticamente cobrado.
Mas cobrar pela água utilizada na agricultura de uma forma que internalize todos os custos inerentes à mesma – com a sua captação, armazenamento e transporte – permitirá também racionalizar as decisões quanto às culturas a praticar em cada região. Em vez de disporem da água a baixo custo e nas quantidades que pretendam, buscando espécies que podem ser inadaptadas ao clima local ou desconsiderando práticas agrícolas mais eficientes, os agricultores poderão ajuizar dos investimentos em eficiência e das culturas mais ajustadas a um custo de produção que inclua o valor real da água.
Esta mudança terá consequências significativas na atividade agrícola, e como tal poderá enfrentar resistências sérias. Trata-se de passar a atribuir um sinal de preço a um fator de produção crítico, mas que os produtores se habituaram a tratar como gratuito ou com custo negligenciável. Importa por isso que o processo seja amplamente acordado com organizações de agricultores, que haja um período de transição alargado, e por passos determinados – começando pelas explorações de maior dimensão e pela exigência que a água utilizada seja sempre medida; depois, por apoios dirigidos à introdução de melhores práticas, e com redução de custos para as explorações mais eficientes.
Assim, num horizonte de alguns anos, deveremos assegurar que o preço pago pela utilização da água cubra todos os custos inerentes à sua disponibilização – o da captação, tratamento, transporte e operação e manutenção dos sistemas e infraestruturas. Esse preço pode ser modulado em função das utilizações – designadamente com tarifários progressivos em função das quantidades de consumo – e distinto em função do nível de tratamento exigido (para consumo humano ou para agricultura, por exemplo). Pode estabelecer-se que certos tipos de investimentos ou de consumos, designadamente aqueles que sejam elegíveis para financiamento europeu (por exemplo, aqueles que respeitem à reutilização de águas residuais), sejam objeto de subsídios públicos expressos de forma transparente e equitativa, ou que outros devam assegurar que o preço cobrado cubra de forma autónoma a totalidade dos seus custos (por exemplo, novas centrais de dessalinização). Mas faz sentido que no seu conjunto as receitas provenientes da totalidade do ciclo da água sejam permitam cobrir todos os seus custos.
9. O financiamento do setor num novo ciclo
A questão referida no ponto anterior é tanto mais relevante quanto no próximo ciclo de fundos europeus a elegibilidade de financiamento para sistemas de água para consumo humano ou para a agricultura será cada vez mais reduzida. Tendo em conta que as alterações climáticas exigirão investimentos significativos como atrás se deixou referido, esses financiamentos terão de ser suportados ou pelos contribuintes – num contexto em que o país faz um esforço significativo de redução da dívida pública – ou pelos utilizadores.
É possível o financiamento a crédito de muito longo prazo dos investimentos a realizar – até pela prolongada vida útil destes bens – mas é necessário que seja demonstrada a capacidade de servir a dívida assim gerada. Note-se que, no caso de sistemas públicos em que os custos não sejam substancialmente cobertos pelas receitas próprias, as regras do Sistema Europeu de Contas SEC2010 determinam que o titular do sistema seja contabilizado dentro do perímetro das Administrações Públicas, pelo que a dívida que eventualmente fosse contraída seria contabilizada como dívida pública.
Ou seja: as mudanças necessárias vão exigir alterações institucionais e regulatórias, e investimentos significativos – do lado dos utilizadores e do lado dos gestores dos sistemas. A forma sustentável de realizar esses investimentos e manter a disponibilidade e a qualidade de um recurso essencial no nosso país implica que esse recurso passe a ser valorizado também do ponto de vista do preço que se paga pela sua utilização.
10. Conclusões, a governança do setor
O tema da água será um dos mais críticos no futuro, e os desafios para dispormos de água suficiente para a satisfação da nossa atividade económica e o nosso nível de bem-estar são muito significativos.
Vão ser exigidos investimentos de grande montante e de execução complexa, mudanças importantes no comportamento de consumidores e de produtores agrícolas, bem como a coordenação de múltiplas entidades – só no caso da água para consumo humana, a ERSAR refere a existência de cerca de 300 entidades gestoras em Portugal Continental, de natureza pública e privada. Ambos os fatores – financiar investimentos de grande dimensão e incentivar um uso mais eficiente da água – implicam passar a cobrar pela água utilizada e internalizar os custos totais incorridos com a sua disponibilização. Implica ainda controlar melhor a água utilizada – como se disse, 70% dos agricultores não medem a água que utilizam – e, eventualmente, passar a declarar a água – toda a água – como bem do domínio público, acabando com o regime de propriedade privada das águas.
Estas mudanças implicam um quadro mais robusto para a gestão da água e uma capacidade maior das autoridades gerirem o ciclo completo da água. Por outro lado, alguns fatores importantes para a gestão eficiente da água demonstram a necessidade de melhor ligação entre a gestão da água para consumo humano e a água para fins agrícolas: vejam-se os casos de utilização de águas residuais para a rega agrícola; os casos das barragens de fins múltiplos, que alimentam a atividade agrícola mas também as redes para consumo humano (e o exemplo do Algarve, com a necessidade de que a gestão da crise estabeleça prioridades entre a disponibilidade de água para agricultura e para consumo humano); ou a necessidade de estabelecer o regime próprio da dessalinização, entre licenciamento das respetivas centrais e o regime das relações que as mesmas estabeleçam com redes de abastecimento e redes de rega.
Finalmente, a gestão da água assenta entre nós no conceito de regiões hidrográficas e das bacias dos rios; mas a questão dos transvazes entre bacias alerta para a necessidade de encarar a gestão do recurso a nível supraregional. Do mesmo modo, seria justo ponderar que todos os consumidores urbanos e domésticos paguem a água a um mesmo preço, independentemente do ponto do território nacional em que se encontrem. Corrigir esta situação leva a colocar novamente a questão da perequação dos sistemas de gestão regionais.
Em suma: creio que se deve equacionar se as tarefas que temos pela frente na gestão da água não justificam que seja revisto o enquadramento da governança do setor, de uma forma que esta possa assegurar a gestão integrada e à escala nacional de todos os temas da água.
Será por isso de equacionar a constituição de uma Autoridade Nacional da Água, que possa ter competências próprias robustas e alargadas, atualmente distribuídas por vários ministérios e entidades, que disponha de um conselho diretivo com forma de designação que assegure a independência dos seus membros, e de um conselho geral onde se façam representar todas as entidades públicas e privadas com relevância, incluindo os vários ministérios competentes, municípios, entidades gestoras, consumidores e organizações agrícolas.
O tema da água, sendo estratégico, não tem merecido entre nós a reflexão de fundo que justifica, e que pode implicar a realização de reformas mais ou menos extensas, mas que não podem deixar de ser discutidas de um modo participado.