Água & Ambiente
Revisão da legislação de fluxos específicos deverá contemplar novos mecanismos para garantir o cumprimento das metas inscritas nas licenças, incluindo a exigência de uma caução às entidades gestoras e a reformulação DATGR.
A Agência Portuguesa do Ambiente (APA) espera que o processo de atribuição de novas licenças de fluxos específicos de resíduos esteja concluído em breve, até porque a revisão do UNILEX, já na reta final, não prevê a prorrogação das licenças em vigor. “A entrada em vigor das novas licenças terá de ser a 1 de janeiro de 2024”, garantiu Ana Cristina Carrola, Vogal do Conselho Diretivo da APA. A revisão do regime legal e a atribuição de novas licenças esteve em foco no segundo dia do 17° Fórum Resíduos, numa discussão moderada por José Eduardo Martins, sócio da Abreu Advogados, que contou com a participação de entidades gestoras de diferentes fluxos.
Segundo a nova versão do UNILEX, a emissão de licenças de sistemas integrados passará a ser feita não por despacho, mas “ao nível dos serviços”, pela APA e pela Direcção-Geral das Atividades Económicas, ainda que com homologação posterior pelas tutelas, esclareceu Ana Cristina Carrola, mas esta regra “não se aplica às entidades gestoras cujo procedimento de licenciamento já se tenha iniciado à data de publicação do UNILEX”.
Por outro lado, apesar de haver mudanças nas regras para a constituição e funcionamento de sistemas integrados ao abrigo da responsabilidade alargada do produtor, na nova legislação, mantém-se “a possibilidade de existência de entidades gestoras multifluxo”, assegurou ainda. Está ainda prevista a criação de dois novos fluxos: um de mobílias, colchões e respetivos resíduos e outro de resíduos de autocuidados de saúde, como agulhas, seringas ou equipamentos de autodiagnóstico, “que fazem parte do grupo de resíduos perigosos produzidos nos domicílios que temos de tratar e recolher seletivamente até 2025”.
O novo diploma virá ainda clarificar o modelo de funcionamento e regulação do sistema de depósito e reembolso de embalagens de bebidas, que está previsto na legislação desde 2018. A alteração de competências da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR) no âmbito do fluxo de embalagens urbanas é outra das novidades da revisão do diploma. Segundo Ana Cristina Carrola, o regulador setorial terá “competências quanto à definição e aplicação do mecanismo de alocação e compensação”, bem como na “determinação do modelo de valores de contrapartida”.
Vão igualmente ser reforçados os mecanismos de promoção de compliance, que visam assegurar que as metas de gestão são efetivamente atingidas. A reformulação da Taxa de Gestão de Resíduos (TCR) associada ao incumprimento de metas das entidades gestoras implica que o valor a pagar por tonelada não recolhida ou tratada estará indexado ao custo de recolha e tratamento, para que não seja compensador falhar os objetivos.
Desta forma, “a tonelada de resíduo não recolhida ou tratada será mais cara do que a recolhida ou tratada”, explicou Ana Cristina Carrola. Além disso, está prevista a obrigatoriedade de prestação de uma caução à APA, “que irá garantir o cumprimento das responsabilidades financeiras assumidas pelas entidades gestoras”, salientou, sendo executada “sempre que a entidade gestora não proceda ao pagamento de compensações financeiras devidas”.
Impacto económico preocupa entidades gestoras
“Vivemos num setor em que a instabilidade não para”, lamentou Ana Trigo Morais, CEO da Sociedade Ponto Verde (SPV) na sua intervenção. A gestora salientou que o processo de revisão do UNILEX ainda não está concluído, não tendo a SPV recebido à data qualquer feedback sobre os comentários que fez ao diploma. Além disso, a pouco mais de um mês do final do ano, “não há nenhuma entidade gestora que tenha acesso ao seu projeto de licença”, alertou, sendo certo que no dia 31 de janeiro, os contratos estabelecidos pela entidade gestora com clientes e parceiros “caducam automaticamente”.
No que respeita à revisão do diploma que enquadra a atividade das entidades gestoras, a CEO da SPV considerou que este estabelece “regras e normas muito densas e restritivas”, não sendo evidente para a gestora “que seja desta forma que conseguimos melhorar o sistema”. “O UNILEX tenta resolver na lei problemas que estão sobretudo na operação”, sintetizou, ilustrando com o caso do vidro, o único material em que as entidades gestoras de embalagens não cumprem a meta de recolha prevista na licença: na sua opinião, a solução passa por “investimento na operação” e não por aumentar a penalização por via da TCR.
Ricardo Neto, Presidente da ERP e Novo Verde, alertou para a “multiplicação de custos” associados à atividade das entidades gestoras, nomeadamente por via do aumento dos valores de contrapartida e da reformulação da TCR. “O aumento de ecovalores não traz recolhas”, garantiu, citando o exemplo do fluxo de resíduos de equipamentos elétricos e eletrônicos. Nas suas contas, só o impacto da reformulação da TGR na ERP poderá representar um aumento de 20 vezes face ao valor atual: “podemos passar de 300 mil para 6 milhões”.
E “não é por aí que vamos recolher mais”, vincou, “enquanto esta nova abordagem à TGR não for acompanhada de um forte policiamento e fortes ações de fiscalização”. O gestor criticou igualmente o modelo de determinação das prestações financeiras pagas pelos produtores. Em fluxos onde existe concorrência, “não há razão nenhuma para continuarmos a ter ecovalores aprovados administrativamente”, defendeu. Também o CEO da Electrão – Associação de Gestão de Resíduos, Pedro Nazareth, trouxe para a discussão preocupações de natureza económica, alertando para o facto de se querer fazer refletir no preço das embalagens novas o custo da valorização energética e deposição em aterro dos resíduos associados.
Os sistemas baseados na responsabilidade alargada do produtor foram criados “para pagar a recolha seletiva”, recordou, e “não foram pensados para cobrir outro tipo de custos”. Aliás, para o gestor, este pode ser até “um incentivo perverso”, porque serve “não para financiar a reciclagem, mas uma gestão em fim de vida inadequada das embalagens”. Já a evolução da TGR aplicada aos produtores representa, na sua perspetiva, “uma supressão de fluxos financeiros ao sistema de gestão de resíduos”, não só porque envolve “valores muitíssimo avultados”, mas também porque sendo a verba encaminhada para o Fundo Ambiental, “não nos dá garantias de que [o valor] volte a ser repatriado” ao setor.
Onde a revisão legislativa podia ter ido mais longe era na possibilidade de intervenção operacional “que continua fortemente limitada às entidades gestoras”, acrescentou. Já José Amaral, Diretor Operacional da Valorcar, identificou vários “aspetos positivos” do diploma que circulou pelos interessados, em particular o aumento para dez anos da duração das licenças a atribuir. Caso se confirme, “é um fator de estabilidade no setor”, justificou. O gestor saudou também a introdução de uma “maior flexibilidade e redução de custos com as verbas de comunicação e sensibilização face aos resultados das entidades gestoras”.
No caso particular do fluxo de veículos em fim de vida, José Amaral vê com bons olhos “o reforço do cumprimento das obrigações de importadores de veículo usados, no sentido de estes aderirem à entidade gestora” que poderá contribuir para “trazer vários intervenientes ao setor legal”. Contudo, “há uma questão ainda em aberto, no UNILEX, que nos preocupa”, admitiu, “que é o facto de o cancelamento de uma matrícula em Portugal ter de estar ligado à emissão de um certificado de destruição”. “É algo que queremos que continue a ser concretizado no UNILEX”, vincou.
Na apreciação da revisão do UNILEX, o Diretor-Geral da Valormed, Luís Figueiredo, realçou, por seu lado, a criação do novo fluxo de autocuidados de saúde, ainda que se tenha manifestado preocupado com “a inclusão de produtores de hemodiálise”. “São embalagens de grande dimensão”, observou, “não estou a ver como vai ser feita a recolha desse tipo de embalagens a nível domiciliário”. Por outro lado, “é importantíssima a questão dos free riders”, salientou ainda, defendendo que deve ficar “muito claro” na legislação “quem tem a obrigação, após uma denúncia, de os obrigar a passar a declarar”.
“Temos situações que se arrastam há anos”, apontou. Já quanto às novas licenças, a prioridade deve ser a “simplificação”: “um texto claro, objetivo, de leitura fácil pelas entidades e por quem as queira consultar”, apelou. O Diretor-Geral da Valorfito, António Lopes Dias, partilhou uma expetativa semelhante em relação à licença que deverá estar em vigor no início de 2024: “que seja simples e não nos traga carga burocrática, acima de tudo”, sublinhou o gestor.
Por outro lado, o responsável da Valorfito espera que a nova licença tenha em conta as “particularidades” desta entidade gestora: “a única que atua num setor exclusivamente profissional”. De resto, António Lopes Dias realçou, na sua intervenção, os desafios concretos da Valorfito, que atua no setor agrícola, para atingir as metas de recolha, nomeadamente no centro e norte do país, “onde predomina o minifúndio” e os agricultores têm “idade avançada e uma literacia mais baixa”.
“Temos grande dificuldade em passar a nossa mensagem”, reconheceu. No passado dia 29 de novembro, foi já aprovado em Conselho de Ministros o decreto-lei que altera o regime de gestão de fluxos específicos de resíduos, assim como os regimes de gestão de resíduos e de deposição em aterro. A simplificação dos procedimentos de licenciamento, “não descurando a proteção e a preservação do ambiente”, é um dos objetivos elencados. Até à data de fecho desta edição, a versão final do diploma ainda não tinha sido publicada.