Água & Ambiente
Transposição de diretiva europeia vai obrigar a maior articulação entre múltiplos atores, para assegurar a avaliação e gestão do risco em toda a cadeia de abastecimento, além de introduzir novos parâmetros na monitorização da qualidade da água. O novo regime jurídico da qualidade da água para consumo humano vem trazer novos desafios a um setor habituado à excelência. Nos últimos oito anos, a qualidade da água para consumo tem-se mantido num patamar elevado, mas o novo diploma vai obrigar à monitorização de novos parâmetros e a uma maior articulação entre diferentes atores. “Pelo oitavo ano consecutivo, atingimos 99% de água segura na torneira”, salientou Vera Eiró, presidente do Conselho de Administração da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR), na apresentação, em setembro, do volume II do Relatório Anual dos Serviços de Águas e Resíduos em Portugal (RASARP) de 2023. No entanto, este é um resultado “que vai ser cada vez mais difícil de garantir” nos próximos anos, observou. O diploma publicado no final de agosto, que transpõe uma diretiva europeia de 2020, estabelece mudanças em várias áreas. A avaliação de risco, que já estava em vigor para as entidades responsáveis pela captação, tratamento e distribuição, passa a abranger também as bacias de drenagem a montante e as redes prediais a jusante. Através desta avaliação, que inclui a caracterização das condições e a identificação de perigos e eventos perigosos ao longo de toda a cadeia de abastecimento, será possível concluir quais são os riscos significativos para a segurança da água para, depois, definir programas de monitorização e medidas de mitigação específicas. Em 2022, as entidades gestoras de abastecimento de água já submeteram uma avaliação de risco por zona de abastecimento ou ponto de entrega para aprovação da lista de parâmetros a controlar no âmbito dos Programas de Controlo da Qualidade da Água (PCQA) em 2023, tendo apenas 19, de um universo de 237, falhado esta obrigação, segundo o último RASARP. Mas, agora, a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) terá de concluir, até fevereiro de 2027, a primeira avaliação e gestão do risco das bacias de drenagem dos pontos de captação de água para consumo, para depois partilhar esta informação com as entidades gestoras que terão de rever as avaliações de risco dos seus sistemas de abastecimento no ano seguinte, que suportarão a elaboração dos PCQA de 2029. “Ao conhecer melhor o que se passa na bacia de drenagem”, salientou Felisbina Quadrado, Diretora do Departamento de Recursos Hídricos da APA, na sessão de esclarecimento sobre o diploma, organizada pela ERSAR a 28 de setembro, será possível definir programas de monitorização e medidas “mais dirigidas” e, dessa forma, “reduzir na origem os poluentes, ao invés de considerar a ETA como fim de linha de tratamento”. Numa primeira fase, será cruzada informação georreferenciada da APA, ERSAR e entidades gestoras para delimitar o universo de captações e respetivas bacias de drenagem, prevendo-se ainda a utilização da informação contida na terceira geração de Planos de Gestão de Região Hidrográfica, que se encontram ainda em fase final de aprovação, sobre o estado das massas de água e pressões existentes. “Já fizemos uma primeira avaliação da informação geográfica”, adiantou Felisbina Quadrado, mas esta ainda precisa de validação, para “garantir que temos a melhor informação disponível”. Avaliação de risco checa as redes prediais No final da cadeia, a avaliação de risco vai também estender-se aos sistemas prediais, com enfoque na monitorização da legionella e do chumbo, ainda que estes não sejam os únicos parâmetros a considerar. Esta nova obrigação, que terá de ser realizada pela primeira vez até 12 de janeiro de 2029, vai avançar em instalações prioritárias não residenciais de grande dimensão, como hospitais e clínicas, hotéis e outros edifícios turísticos, escolas e universidades, creches, lares residenciais e estabelecimentos prisionais, entre outros. A nova exigência vincula os titulares dos edifícios, que poderão ser os proprietários ou entidades com direitos de gozo sobre os mesmos. Assim, por exemplo, no caso de uma escola, “não será o proprietário do edifício, mas sim a entidade que detém a escola que ficará responsável por realizar a avaliação de risco”, esclareceu Rita Amaral, técnica especialista do Gabinete do Secretário de Estado do Ambiente na sessão de 28 de setembro. Estes deverão, depois, tomar medidas adequadas para mitigar ou eliminar riscos, bem como divulgar os resultados nas próprias instalações. Na transposição da diretiva, optou-se por identificar não só a tipologia de estabelecimentos elegíveis, mas também a sua dimensão, por via de um critério quantitativo. Apesar disto, o número de instalações abrangidas será relevante. No caso de hospitais e clínicas, por exemplo, estão abrangidas instalações a partir de 100 camas, mas Paulo Diegues, Chefe de Divisão de Saúde Ambiental e Ocupacional da Direção-Ceral de Saúde, estima que isto corresponda a 70 a 80% do universo total. “É uma amostra significativa e representativa”, vincou, no mesmo evento. Para Eduardo Marques, presidente da AEPSA-Associação das Empresas Portuguesas para o Setor do Ambiente, o novo diploma “traz novas exigências, mais análises, mais necessidade de controlo, mais responsabilidades”. Mas a novidade que destaca é justamente “o controlo da qualidade em função da avaliação de risco nas várias etapas do processo de abastecimento”, porque obriga a que este controlo seja “mais objetivo”. Ou seja, deixa de ser “uma coisa cega, igual para todas as entidades”, concretiza, mas sim um controlo feito “em função da avaliação das condições específicas daquela entidade”, salienta. Também Nuno Campilho, Diretor-geral da AMBC -Águas do Baixo Mondego e Gândara, vê com bons olhos o alargamento da avaliação de risco às bacias de drenagem e redes prediais, que convoca novos atores para um objetivo comum: a qualidade da água. “É importante que haja esta assunção de responsabilidade de outras entidades”, realça. Novos parâmetros, custos acrescidos O novo regime jurídico introduz ainda novos parâmetros que terão de passar a ser monitorizados, prevendo-se a sua verificação de conformidade no PCQA de 2026: ácidos haloacéticos (um subproduto da desinfeção), urânio e bis-fenol A. Este último é uma substância química sintética, amplamente usada na fabricação de plásticos rígidos para múltiplas aplicações, a que a população europeia apresenta uma exposição elevada, “muito acima dos níveis aceitáveis de segurança para a saúde”, segundo um estudo recente da Agência Europeia do Ambiente. As substâncias perfluoroalquiladas — designados por PFAS, que são também químicos sintéticos usados em vários produtos, que resistem à degradação — terão igualmente de cumprir valores limite na avaliação da qualidade da água em 2026, mas, neste caso, ainda se aguarda que a Comissão Europeia publique, em janeiro de 2024, orientações sobre a metodologia analítica. Foram também revistos os valores limite de alguns parâmetros que já integram os PCQA. No caso do antimónio, do selénio e do boro, já estão a ser aplicados valores paramétricos menos restritivos. Também já em vigor está o valor limite de 0,25 mg/l para cloritos e cloratos, que passa a ser de correção obrigatória em caso de incumprimento. Já no caso do chumbo e do crómio, o valor limite foi apertado — passando para metade dos valores atuais—, mas esta regra só entra em vigor em 2036. A Comissão Europeia irá ainda atualizar listas de vigilância para contemplar a monitorização de compostos emergentes. Em janeiro do próximo ano, é esperada a adoção, a nível europeu, das metodologias para a medição de microplásticos, que permita a sua inclusão nesta lista. A introdução de novos parâmetros, dos químicos persistentes aos microplásticos, são sintoma de que, “infelizmente, temos um mundo mais poluído e um ambiente cada vez pior”, lamenta o presidente da AEPSA, o que exige um reforço da monitorização. Já a mudança do valor paramétrico do chumbo poderá obrigar a tomar medidas em edifícios mais antigos: “Na rede predial, ainda existem redes antigas com chumbo”, observa Eduardo Marques, e este problema “também tem de ser controlado e resolvido”. “Isto vai implicar mais trabalho, mais formação dos técnicos e mais investimentos”, resume João Levy, presidente do Grupo Ecoserviços, que detém os laboratórios Agroleico. O gestor não tem dúvidas de que a aplicação do novo diploma trará mais custos aos laboratórios, que terão de se apetrechar com novos equipamentos para poder analisar mais parâmetros, com consequências na fatura a cobrar às entidades gestoras. “Novos parâmetros e novas formas de análise e avaliação” também “vão implicar mais auditorias internas e externas”, nota ainda João Levy, numa altura em que os laboratórios já têm “custos de acreditação excessivos, que ultrapassam os custos em países similares da Europa” e estão ainda a absorver o impacto da subida de preços de elementos essenciais à sua atividade. “Tudo o que é equipamentos e consumíveis teve aumentos de 20 e 30%”, sublinha. A acreditação de laboratórios mantém-se obrigatória para a colheita de amostras do PCQA, mas vai passar a ser exigida também na monitorização de água bruta. Além disso, a apreciação do pedido de aptidão com a lista dos parâmetros realizados pelo laboratório vai passar a estar sujeita ao pagamento de uma taxa, que será definida por portaria. A atitude de João Levy é, por isso, de expetativa: “A questão que se coloca é como é que os nossos clientes, essencialmente entidades gestoras e municípios, vão reagir no sentido de estarem disponíveis para pagarem mais pelas análises”, observa. “Maior controlo e novos parâmetros vão seguramente provocar custos acrescidos”, admite Eduardo Marques, mas, neste momento, “não consigo dizer se são marginais ou significativos”. O presidente da AEPSA sublinha, contudo, “o princípio de permitir uma melhor qualidade” da água, lembrando que “estamos a proteger a saúde humana”. Nuno Campilho afina pelo mesmo diapasão, dado que a qualidade da água é a preocupação central de qualquer entidade gestora de abastecimento. Sobre este tema, “não há muito a dizer senão cumprir”, sintetiza o gestor, porque “não se brinca com a qualidade da água”. De resto, para o diretor-geral da ABMG, as principais interrogações giram à volta do novo esquema de aprovação de materiais em contacto com a água, em particular, perceber o que este poderá alterar na atividade das entidades gestoras. “Ainda não existe uma noção exata do que está em causa”, observa. Regras harmonizadas no mercado europeu O esquema de aprovação de materiais e produtos em contacto com a água está contemplado no novo regime jurídico, mas só será concretizado por regulamento da ERSAR a publicar até final de janeiro de 2025. O objetivo é estabelecer requisitos mínimos a serem utilizados em obras novas ou de renovação, incluindo os sistemas de distribuição predial. Esta harmonização, que aborda apenas aspetos sanitários e higiénicos dos produtos e materiais, para evitar a migração de contaminantes para a água, “vai permitir que as regras sejam equivalentes em todos os membros da União Europeia”, frisou Luís Simas, Núcleo de Apoio ao Conselho de Administração da ERSAR, na sessão de esclarecimento de 28 de setembro. O regulamento é nacional, mas as regras são europeias, esperando-se novidades já em janeiro do próximo ano com a aprovação pela Comissão de metodologias de teste e procedimentos. Já a lista positiva de substâncias inicializadoras, composições e constituintes para cada grupo de materiais autorizados só será publicada em janeiro de 2025. Para André Maia, Diretor Técnico-Comercial da empresa Politejo, fabricante de tubos e acessórios termoplásticos, uma harmonização das regras aplicáveis à escala europeia para todos os materiais e produtos em contacto com a água “cria uma maior isonomia entre em todos os players do mercado”, se de facto permitir que, “com um único certificado, consigo vender em qualquer país” da União Europeia. Atualmente, a empresa tem duas gamas diferentes do mesmo produto, uma para o mercado ibérico, outra para o francês, de forma a assegurar o cumprimento de uma norma francesa, que difere da europeia, ilustra o gestor. Por outro lado, no mercado nacional, “continuamos a aceitar qualquer tipo de produto com qualquer tipo de proveniência”, lamenta, sem se valorizar, por exemplo, a certificação de produtos por organismos reconhecidos internacionalmente face a outros sem os mesmos pergaminhos. “Tudo o que venha contribuir para que o setor aumente o nível de exigência é muito positivo”, nota, por isso, André Maia, mas prefere esperar para ver quais vão ser as orientações específicas do regulamento, até porque, em muitos destes processos, lamenta, “a indústria não é consultada”. Por outro lado, não basta mudar as regras: “Essa ideia é muito interessante”, diz, “mas tem de ser bem fiscalizada”. “Se for mais um mero papel que vai ser colocado como exigência num qualquer caderno de encargos, que depois ninguém fiscaliza, certamente será muito pouco eficaz”, antecipa. Para melhorar o acesso à água de grupos vulneráveis e desfavorecidos, o diploma vem ainda determinar que os municípios devem identificar as pessoas sem acesso ou com acesso limitado a este recurso essencial, bem como prever medidas para corrigir a situação, se necessário. Além disso, as faturas cobradas aos cidadãos e os sites das entidades gestoras também passarão a disponibilizar mais informação: por exemplo, o preço da água por litro, a comparação do consumo de cada agregado com a média nacional e dados sobre a qualidade do serviço prestado. O país está ainda obrigado a reportar à Comissão Europeia, em 2026, o nível de perdas reais de água nos sistemas de distribuição e a identificar o potencial de melhoria nesta área. A Comissão irá, depois, fixar um limiar máximo em 2028, tendo os Estados-membros de desenvolver planos para a redução de perdas, até 2030, se ficarem acima dessa fasquia. Neste âmbito, Portugal beneficia do facto de já monitorizar este indicador há mais de uma década, ainda que só 41% das entidades avaliadas, em alta e em baixa, tenha um desempenho considerado bom pelo regulador. “Esta diretiva, sendo muito mais holística, obrigará a muito mais articulação de diferentes entidades”, realçou Susana Rodrigues, Diretora do Departamento da Qualidade da ERSAR, na sessão de esclarecimento. Para preparar a implementação do diploma, o regulador está a “rever recomendações e a emitir novas”, que facilitem o cumprimento das obrigações.