Jornal de Negócios
A falta de organização é uma das razões apontadas para uma falha sistemática do país na gestão de resíduos. Bem como a falta de orientação para a conveniência, de forma a alavancar a participação de empresas e cidadãos na reciclagem.
Dados da Agência Portuguesa do Ambiente indicam que Portugal recicla 21% da totalidade dos resíduos urbanos, sendo que a meta para 2025 é de 55%. Para 2030, a meta para preparação e reutilização para reciclagem é de 60%. “Estamos muito longe e a menos que haja um milagre a meta de 2025 não vai ser cumprida e a meta de 2030também será muito difícil de cumprir”, começa por retratar Rui Berkemeier, técnico de Resíduos da ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável, na segunda talk da iniciativa Negócios Sustentabilidade2030, dedicada ao tema “Que soluções oferece a economia circular?”
O especialista em resíduos considera que “houve uma estagnação, de há 10 a 15 anos para cá, na evolução da gestão dos resíduos urbanos a vários níveis que nos deixou praticamente parados”. Rui Berkemeier relembrou que o Plano Estratégico para os Resíduos Urbanos (PERSU) “é do final do milénio passado”, acrescentando que “já passaram mais de 20 anos e temos uma taxa de crescimento inferior a 1% ao ano na reciclagem”. O técnico justifica a situação considerando que “houve um abandono da parte política” que relegou o tema dos resíduos urbanos “para segundo plano”. Mas Berkemeier acrescentou ainda que também na recolha de equipamento elétrico e eletrônico, como frigoríficos ou computadores, “as entidades gestoras que são responsáveis pela recolha e tratamento desses resíduos são obrigados a recolher 65% e os últimos dados indicam que recolheram 14,5%”. Aqui “com uma agravante de serem resíduos com componentes muito tóxicos quer para a saúde quer para o ambiente”, assinalou.
Porém, destacou que também há questões positivas, como alguns fluxos de resíduos em Portugal “com taxas espetaculares de recolha, como é o caso dos pneus ou dos óleos lubrificantes, em que já conseguimos ter taxas de regeneração e reciclagem bastante elevadas”. Mas o grande grupo são os resíduos urbanos, que representam cinco milhões de toneladas por ano, pelo que o especialista da ZERO defendeu que “temos de avançar muito porque há quatro milhões de toneladas que não vão para reciclagem”.
Segundo a ZERO, a queima de resíduos recicláveis é outro problema ainda por resolver. E aponta também a recolha porta a porta como um sistema mais eficaz para recolha de plástico do que os ecopontos. Rui Berkemeier criticou também o facto de a Lei do Sistema de Depósito e Retomo prever que o sistema deveria estar a funcionar desde 2022, pois garante taxas de recolha de mais de 90% de embalagens, mas não está. Sobre a recolha de biorresíduos, a ser obrigatória a partir de 2024, o técnico de resíduos salientou que “o modelo de recolha por ecopontos aqui também não vai funcionar”. Até porque “só com o porta a porta se pode fazer o sistema pay as vou through [PAYT], que é pagar o lixo em função da produção e não em função do consumo da água”.
Por fim, aponta os modelos económicos instalados e a falta de vontade política como raízes do problema, exemplificando que “se uma entidade gestora for recolher uma tonelada de frigoríficos, que têm componentes perigosos, pode ter de gastar com a recolha e com o tratamento cerca de 200€. Se não cumprir essa recolha e tratamento, paga de TGR [Taxa de Gestão de Resíduos] 7,5€”, ou seja, “a própria lei empurra para a ilegalidade”.
Como representante de uma entidade gestora de fluxo das embalagens, Ana Trigo Morais, CEO da Sociedade Ponto Verde (SPV), assinalou que “Portugal nunca cumpriu nenhuma meta de reciclagem de resíduos urbanos”. Ou, mais especificamente, “os resíduos urbanos da categoria específica embalagens são os únicos que estão com um nível de organização suficiente que tem permitido ao país cumprir as metas”. Ana Trigo Morais confirmou que as metas em2023neste caso vão continuar a ser cumpridas, mas alertou para um material que “levanta muitas preocupações”, o vidro embalagem.
A justificação para as falhas sistemáticas do país? “Falta-nos operação, falta-nos eficiência, falta-nos organizar o sistema da gestão de todos os resíduos no país e nas ilhas”, critica Ana Trigo Morais, que considera que o sistema deve ser “reorientado para a conveniência do cidadão, para a sua transparência, porque o cidadão não sabe que é ele que está a pagar este sistema, orientá-lo também para um modelo de custeio que traga melhor capacidade de cumprir metas e falta reorganizar e desbloquear o setor de forma a trazer agentes novos”. A CEO da SPV evidenciou que “há muitos anos que são os mesmos agentes no setor e são sempre as mesmas pessoas a discutir os mesmos problemas, sem serem capazes de encontrar as soluções”.
Nesta perspetiva, Ana Trigo Morais diz “estar muito convencida” de que “fazer o unlock desta cadeia de valor passa por rever-mos todo o modelo de financiamento e todo o modelo de operação”. A gestora referiu que a SPV perde 30 milhões de euros de embalagens que vão parar aos aterros, o que considera ser “um problema de operação”. Uma questão dificultada pelo facto de “não podermos gerir operacionalmente as embalagens, porque fazemos parte de um sistema integrado, numa espécie de parceria público-privada em que são os nossos parceiros municipais e intermunicipais que gerem operacionalmente o sistema”. Nesta linha, considera que deve haver mais integração e discutir modelos e eficiência para o país poder cumprir rapidamente as metas, “porque 2025 é amanhã e 2030 é depois de amanhã”.
Relativamente à introdução de sistemas adicionais, a responsável da SPV é favorável ao sistema de recolha porta a porta, “porque traz muitas embalagens para o sistema”. Quanto ao sistema de depósitos e reembolso de embalagens de plástico e metal, Ana Trigo Morais acha que “tem capacidade de atingir metas espetaculares, mas são investimentos muito caros e é preciso colaborativamente estudá-los, ponderá-los e implementá-los”. Por fim, defende que a solução dos resíduos em Portugal tem de passar por se sentarem todos os intervenientes à mesma mesa para decidirem como pôr o país a cumprir as metas europeias.
Do ponto de vista das empresas, Sofia Reis Jorge, administradora da Altri, caracterizou como “desafios enormes” aqueles que a economia circular de uma forma abrangente exige às organizações. “A economia circular é tudo o que podemos fazer para reduzir, reutilizar e reciclar, em todos os materiais, na energia e na água, e o nosso foco está em todas essas vertentes”. No que diz respeito particularmente aos resíduos, Sofia Jorge apontou como “grandes entraves” o facto de “não haver muita vontade política em alguns temas, nomeadamente no processo de desclassificação dos próprios resíduos”.
Caracterizando a Altri como grande produtora de resíduos, por ser um dos grandes players a nível europeu de fibras celulósicas, explicou que “por muitos esforços que façamos, no final, continuamos a ter resíduos e em grande quantidade”. E apontou que em Portugal os players de gestão de resíduos são de pequena dimensão, pelo que “dificilmente conseguem absorver os resíduos deste tipo de indústria”. Para além disso, apontou também como “entrave” a desclassificação de resíduos e respetiva falta de mercado. “Continuamos a não ter mercado para os subprodutos, porque toda aparte económica não funciona”, sublinhando que a empresa paga taxas para deposição de resíduos em aterro, porque “muitas vezes os utilizadores de resíduos não querem considerar aquele resíduo como matéria-prima”.
Carlos Abreu, membro do Conselho Executivo da ATIC -Associação Técnica da Indústria de Cimento, começou por destacar que a indústria do cimento “produz poucos resíduos no seu processo”. Por outro lado, frisou que “a indústria cimenteira tem uma grande capacidade de utilizar resíduos de outras indústrias, liAja os drivers económicos indicados e as composições químicas de resíduos sejam aquelas que o nosso processo absorve”.
A indústria do cimento utiliza resíduos desde 1990, nomeadamente resíduos das centrais térmicas de energia, explicando Carlos Abreu que “as cinzas de carvão foramutilizadas enquanto as centrais trabalhavam”. Posteriormente ao seu fecho, “vamos reciclar todos os passivos que ainda há nas indústrias”, acrescentou. Outro exemplo apontado foi os resíduos produzidos pela siderurgia nacional que também foram consumidos pela indústria cimenteira, bem como resíduos da indústria do papel. Nas indústrias mais modernas, “as novas fábricas de óxido de lítio também vão produzir subprodutos que nós poderemos utilizar”. Porém, salientou que muitas vezes o facto de não se utilizar resíduos deve-se a um problema económico.
Carlos Abreu aponta a descarbonização como o principal desafio das cimenteiras. Destacou a possibilidade de virem a remover carbono, uma vez que “a tecnologia está a ficar madura”. Por outro lado, considera que “a Europa terá de alterar a regulação porque neste momento privilegia a remoção do carbono das chaminés das indústrias e o seu armazenamento”. Ou seja, “é apenas um custo e não uma economia circular. E capturar, gastar dinheiro e armazenar”. Compreendendo a urgência de travara emissão de C02 para a atmosfera, destacou que “esta circularidade um dia vai acontecer, porque ficará viável do ponto de vista económico e tecnológico.