Água & Ambiente
Diminuição das disponibilidades hídricas tem feito crescer o interesse dos municípios e dos setores económicos na utilização deste recurso.
Em 2021, apenas 1,2 % da água residual tratada foi reutilizada, revela o último relatório da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR) e somente duas entidades — Águas do Algarve e Águas do Tejo Atlântico — forneceram água residual para reutilização externa. Mas estes são também os dois sistemas em que a reutilização deverá crescer de forma significativa nos próximos anos. Na região algarvia, o fornecimento de água para reutilização (ApR), a partir da ETAR de Vila Real de Santo António, para a rega de dois campos de golfe do concelho de Castro Marim deverá iniciar-se “este ano”, antecipa António Eusébio, CEO da Águas do Algarve, que está a “acertar a contratualização” com os utilizadores. A obra envolveu um investimento de 1,8 milhões de euros e quando estiver a funcionar “em pleno”, a ETAR poderá fornecer 800 000 m3 de ApR. No âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), estão ainda destinados 23 milhões de euros para implementar tratamentos adicionais, construir estações elevatórias e condutas adutoras em mais cinco ETAR deste sistema: Quinta do Lago, Vilamoura, Albufeira Poente, Boavista e Vila Real de Santo António (2.a fase). E aqui o objetivo é mais ambicioso: visa-se atingir uma produção anual de cerca de 8 hm3 de água para reutilização. Todos estes projetos “têm de estar prontos durante o ano de 2025”, frisa, mas “é possível, já no ano de 2024, termos algumas obras concluídas”. Em fase “mais avançada” estão os investimentos previstos para as ETAR de Quinta do Lago e Vilamoura, estando em curso os projetos de execução. Na ETAR de Quinta do Lago, prevê-se a “utilização total” da água produzida na infraestrutura, parte da qual é já hoje usada na rega de espaços verdes da Infraquinta e do campo de golfe de São Lourenço, planeando-se agora a adesão de mais dois campos de golfe. Na ETAR de Vilamoura, “estamos a trabalhar para oito pontos de entrega”, diz ainda. 3á na ETAR da Boavista, o projeto está a iniciar-se agora, mas a Águas do Algarve espera que seja possível “no verão de 2024” ter a ETAR a fornecer ApR, dado que esta é uma zona “onde a escassez hídrica tem tido maior incidência”, acrescenta o gestor. Para já, os campos de golfe deverão ser os principais utilizadores de ApR na região algar porque a seleção de infraestruturas a int cionar recaiu, em ETAR localizadas próximas destes “potenciais utilizadores”. Contudo, a segunda fase do projeto da ETAR de Vila Real de Santo António contempla “a possibilidade de agregar alguns investimentos agrícolas”, nomeadamente de produção de abacate. “É uma situação está a ser analisada”, nota. Nesta região, onde a reutilização de água se iniciou ainda nos anos 90, no Campo de Golfe dos Salgados, é a escassez de água, registada nos últimos anos, que tem alavancado a adesão de potenciais clientes. “Há muitos anos que se fala no Algarve de água reutilizada”, nota António Eusébio, mas “com esta escassez hídrica é que se agudizou” o interesse neste recurso “precioso”. Reutilização e estratégica para a águas do tejo atlântico Para a Águas do Tejo Atlântico, que trata cerca de 200 milhões de metros cúbicos de água residual por ano, a reutilização é um tema “absolutamente estratégico”, garante a CEO, Alexandra Serra no último ano, assistiu-se a uma “explosão” de interesse por parte de potenciais utilizadores incluindo municípios, mas também setores cruciais, como a agricultura. Desde março de 2022, está a ser utilizada na zona norte do Parque das Nações ApR produzida na Fábrica de Água de Beirolas, no âmbito de um projeto desenvolvido em parceria com a Câmara Municipal de Lisboa. “É um projeto bandeira para nós”, salienta Alexandra Serra. O município de Lisboa tem, de resto, o objetivo de poupar 3 milhões de metros cúbicos de água potável, até 2025, segundo o Plano Estratégico de Reutilização de Água de Lisboa, que prevê a construção de uma rede de água reciclada com mais de 50 km de extensão. “Lisboa está a apostar fortemente em expandir a utilização água não potável para todos os espaços verdes da cidade”, salienta. O Plano Geral de Drenagem de Lisboa vai igualmente fomentar a reutilização: no túnel que se prolongará de Campolide a Santa Apolónia, será incluída “uma tubagem de pequeno diâmetro” para tornar possível distribuir ApR. No município de Loures, Alexandra Serra também prevê que “a muito curto prazo, haja um crescimento muito exponencial” da utilização de ApR para usos municipais, incluindo, por exemplo, a rega de um parque desportivo em construção. Mas, neste concelho, um dos projetos mais relevantes, que resulta de uma parceria com a Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural, envolve a utilização de ApR para a rega da várzea de Loures, cujo consumo anual ascende a 6 milhões de metros cúbicos. “A DGADR está a terminar o projeto de execução da modernização do aproveitamento, e nós vamos fazer tratamentos de afinação para o efluente, que terá de ter uma classe compatível com as culturas que vão ser desenvolvidas neste projeto”, explica Alexandra Serra. A concretização no terreno deverá demorar cerca de três anos. Já em Cascais, está a ser equacionada a possibilidade de utilização de ApR na rega de dois campos de golfe localizados na proximidade da Fábrica de Água da Guia. A Águas do Tejo Atlântico tem estado em contacto com o município cascalense e a expetativa é que se possa “a curto prazo” também estar a fornecer ApR desta ETAR. Por fim, em Óbidos, a empresa multimunicipal está a ultimar um projeto com o campo de golfe West Cliffs, que, “se tudo correr bem”, pode “começar ainda este ano”, avança a gestora. Além destas iniciativas, a Águas do Tejo Atlântico está a desenvolver uma estratégia de reutilização até 2030. No curto prazo, “estamos a mapear a procura potencial”, num raio de cerca de 5 quilómetros à volta das “15 a 20 fábricas de água”, que oferecem oportunidades nesta área e a “desenhar soluções para, no imediato, poder suprir essas necessidades”, explica Alexandra Serra. Para o médio-longo prazo, pretende-se explorar o potencial de procura associado, desde logo, à agricultura, nomeadamente nos 12 mil hectares da Lezíria do Tejo, onde “já estão bem identificados problemas de falta de água” e na zona do Oeste, que está “numa situação de escassez moderada”. Para “aproximar a oferta da procura”, estão a ser planeadas “circulares de água”, que permitem transportar ApR a estes potenciais clientes. Neste âmbito, a empresa pretende avaliar também oportunidades de utilização indireta deste recurso, por via da injeção de água reutilizada num “grande aquífero” na Lezíria, ou “em albufeiras e charcas”, na zona do Oeste. De resto, Alexandra Serra realça o interesse crescente do setor agrícola neste recurso, alavancado por três anos de seca prolongada. “A abertura do setor agrícola à reutilização de água é algo que está a aparecer agora como nunca apareceu antes”, garante. O projeto de rega da Várzea de Loures será o primeiro exemplo, mas “não é o único”. O desafio passa agora por garantir que a compatibilização das culturas com a qualidade da água exigível é também viável no plano económico. E aqui, não obstante as tarifas a aplicar, Alexandra Serra destaca a importância de criar também “incentivos ao CAPEX”. Projeto-piloto avança no porto A escassez hídrica não é, para já, um problema no município, mas a Águas e Energias do Porto decidiu avançar com um projeto-piloto para produção de ApR. Foi criada na ETAR do Freixo “uma etapa adicional” de tratamento através de um módulo de membranas, que permite transformar 1000 m3/dia para uma qualidade da água de classe A, adianta Ruben Fernandes, administrador executivo da empresa. Na primeira fase, que poderá arrancar “dentro de poucos meses”, prevê-se a distribuição de ApR através de camião-cisterna, para utilização pela Porto Ambiente em viaturas de limpeza do espaço público e na lavagem dos próprios camiões. Na segunda fase, está planeada a construção de uma “rede roxa” com cerca de 7 quilómetros, que vai permitir a rega do parque oriental da cidade e de espaços verdes até próximo do Estádio do Dragão e áreas envolventes. O investimento previsto é de cerca de 3,75 milhões e a expetativa é que, “até ao final do ano”, o projeto esteja implementado. O próximo passo é a procura de potenciais utilizadores. Além do departamento de espaços verdes do município portuense, um destes potenciais clientes é o Estádio do Dragão, propriedade do Futebol Clube do Porto, com quem já foram feitos contactos iniciais. “Ficaram muito interessados”, salienta Ruben Fernandes, que não esconde a “grande expetativa” de que esta oportunidade avance. “Seria uma bandeira para o projeto”, realça. Este projeto-piloto vai permitir ainda avaliar a recetividade da procura e “testar soluções tecnológicas”, tendo em vista o projeto de remodelação das duas ETAR do município. Licenciamento simplificado facilita caminho A produção de ApR foi também abrangida pela simplificação do licenciamento ambiental, cujo diploma foi publicado em fevereiro. Este prevê, por exemplo, que a utilização de ApR produzida em sistemas centralizados fique apenas sujeita a comunicação prévia com prazo, nomeadamente se se destinar à rega de campos de golfe, jardins ou à lavagem de ruas, entre outros casos. Deixa ainda de ser necessário obter licenças de utilização para aproveitamento de ApR, pela entidade produtora ou entidades incluídas no mesmo grupo. Para a Águas e Energia do Porto, subsistem, contudo, “algumas dúvidas” na interpretação do diploma, nomeadamente saber “se um município e as suas entidades municipais constituem um grupo” e se a utilização interna requer ou não a emissão de licença enquanto produtor. A entidade está a aguardar esclarecimentos da APA. 3á para Alexandra Serra, a simplificação do licenciamento “foi um bálsamo” e novo quadro vai “agilizar e desburocratizar” estes procedimentos, incentivando a reutilização. Ainda assim, para a gestora, “a legislação não está completamente fechada”, faltando definir “o modelo de regulação e os princípios económico-financeiros que vão regular esta atividade principal”. ERSAR recomenda tarifa única A ERSAR apresentou, em março, uma recomendação relativa à produção e fornecimento de ApR, que inclui orientações no plano tarifário. Recomenda-se que seja aplicada, em cada sistema, uma tarifa variável única, mas admite-se “que, excecionalmente e por razões ponderosas de ordem técnica, económica ou ambiental, possam ser aplicadas pelo mesmo produtor tarifas distintas entre utilizadores”, sendo que estas deverão ser apreciadas pelo regulador. Além disso, a “autossustentabilidade financeira” desta atividade deve ser demonstrada anualmente à ERSAR, que defende uma “contabilidade autónoma”, para não haver subsidiação cruzada entre serviços. Na região do Algarve, ainda não existe uma tarifa “aprovada pela ERSAR”, mas a proposta já submetida será igual para toda a região e “inferior a 20 cêntimos”, antecipa António Eusébio. Para os utilizadores, que atualmente recorrem a furos próprios ou água bruta, “é uma tarifa acima do que pagam hoje, mas minimamente sustentável para, numa altura de escassez hídrica, poderem começar a utilização de ApR”, justifica. Seguindo a recomendação da ERSAR, a Águas e Energias do Porto tem prevista a aplicação de uma tarifa de ApR, e os primeiros cálculos revelam que esta pode ser “competitiva”, se forem excluídos os custos até ao tratamento secundário, que “terão sempre de existir”. Alexandra Serra não tem dúvidas que será sempre “mais económico” utilizar ApR para usos não potáveis “do que água potável”, mas não tem ideias fechadas sobre como deve ser feita a tarifação do serviço em diferentes projetos. “Acho que temos todos de aprender ainda”, explica no que respeita aos “modelos de negócio desta nova origem de água”.