Visão
Os negócios sujos dos resíduos Portugal é um dos países da UE com pior taxa de reciclagem -e no que respeita aos resíduos de equipamentos elétricos, de telemóveis a frigoríficos, é literalmente o pior. O custo ambiental e para a saúde humana deste descalabro é tremendo. O mais perverso é que todos nós pagamos para que os resíduos sejam devidamente tratados, mas há gente a ganhar dinheiro por fora, com os buracos do sistema. E há também quem poupe com a inação. Viagem ao lucrativo mundo escondido do lixo
Luís Ribeiro
Quando compramos um frigorífico, há uma fortíssima hipótese de estarmos a ser roubados, e neste caso não devido a uma qualquer especulação de preços, tão em voga por estes dias. Isto porque pagamos uma “taxa” que, em teoria, serve para custear o tratamento adequado do eletrodoméstico no fim da sua vida útil (na prática, esse dinheiro vai ser aplicado no tratamento do frigorífico velho que tem em casa). É suposto, por lei, o eletrodoméstico ser levado e desmantelado de forma ambientalmente correta, com as substâncias perigosas descontaminadas e evitando a libertação de gases fluorados para a atmosfera. O material reciclado entra, ou entraria, depois na cadeia, poupando assim recursos naturais. Na larga maioria das vezes, porém, os frigoríficos (e outros equipamentos elétricos e eletrônicos) acabam esventrados ilegalmente algures no caminho. É-lhes retirado o material com maior valor económico, como o cobre do motor, soltando-se assim os gases fluorados, com um potencial de efeito de estufa 20 mil a 25 mil vezes superior ao do dióxido de carbono. Os gases libertados, todos os anos, desta forma, no nosso país, superam as emissões de 50 mil portugueses. Apenas 30% dos frigoríficos chegam intactos aos operadores de gestão de resíduos, as empresas que descontaminam e reciclam os eletrodomésticos. Este esquema paralelo, assente em centenas de sucateiros espalhados pelo País, “vale tranquilamente para cima de €20 milhões”, estima Pedro Nazareth diretor-geral da Electrão, a maior entidade gestora do setor em Portugal, com dois terços do mercado (as entidades gestoras são empresas privadas, sem fins lucrativos, com uma licença do Estado para gerir a recolha e tratamento dos resíduos, neste caso de equipamentos elétricos e eletrônicos, os REEE). E este é apenas um dos vários problemas que enlameiam a área. Os REEE são o lado mais obscuro de uma área repleta de suspeições, fraudes e litígios judiciais, e que mexe com muito dinheiro. Devido, em grande parte, a esses interesses, Portugal apresenta estatísticas de reciclagem miseráveis. Segundo o Eurostat, apenas três países da UE têm uma taxa de reciclagem de resíduos urbanos mais baixa do que Portugal, sendo que, no caso dos resíduos elétricos, estamos mesmo em último. A média europeia em 2021 era 49,6%, enquanto em Portugal se ficava por 30,5% (e mesmo esta percentagem é duvidosa, com indícios de que os números são inflacionados; ver caixa A guerra dos números). O mais preocupante é que não há sinais de uma melhoria: em 2014. a taxa de reciclagem encontrava-se nos 30.4%. virtualmente igual à de hoje. Mergulhemos naquele que é o poço mais sujo do Ambiente, onde o crime não só passa sem castigo como muitas vezes é até incentivado e compensado pela própria lei. É mais barato pagar a multa “Trabalho há 26 anos na área dos resíduos e nunca vi nada como os REEE.” Rui Berkemeier, especialista da associação ambientalista Zero, já desistiu de esconder o desespero. Difícil é escolher por onde começar. “O esquema está montado para não funcionar”, conta. “O crime é recompensado. É mais barato não cumprir os objetivos. Por exemplo, as entidades gestoras têm de pagar 30% de Taxa de Gestão de Resíduos [TGR. penalização pelos resíduos depositados em aterro, em vez de serem reciclados] pelas metas não cumpridas, o que dá €7,5 por tonelada.” Ora. como o tratamento dos REEE custa, em média. €70 a €80 por tonelada, “é como passar na Ponte 25 de Abril sem pagar os €2 da portagem e depois a coima ser 20 cêntimos”. O ambientalista diz que este “incentivo ao incumprimento” é uma das razões que explicam a baixíssima taxa de recolha de resíduos. “Em 2021, as entidades gestoras recolheram apenas 17% dos resíduos de equipamentos elétricos e eletrônicos, quando o objetivo era 65% [do peso médio de resíduos colocados no mercado nos três anos anteriores]. E ainda assim temos dúvidas sobre o tratamento do que é recolhido, porque não há evidências desse tratamento.” Berkemeier defende que as entidades gestoras, ficando todos os anos tão longe das metas, deviam perder as licenças. Mesmo partindo do princípio de que tudo o que é recolhido acaba por ser tratado convenientemente, o sistema não consegue sequer resolver as distorções de mercado resultantes de taxas de recolha diferentes. Há uma entidade, a Comissão de Acompanhamento da Gestão de Resíduos (CAGER), que define os saldos de compensação entre entidades gestoras (apesar de todas elas ficarem muito aquém das metas estabelecidas. se uma recolher mais. face à proporção da sua licença, as outras têm de a compensar financeiramente). Neste momento, a Electrão calcula ter a receber €2 milhões das concorrentes. Mas a ERP Portugal, a segunda maior Entidade Gestora nos REEE, contestou a decisão, não pagou e levou o caso para tribunal. Esta situação repete-se na reciclagem de embalagens. Depois de os processos chegarem a tribunal, o mecanismo emperrou. “A CAGER viu a litigância sobre as suas decisões e deixou de funcionar. Em 2021 e 2022. não tivemos decisões de compensação. Isto desestabiliza financeiramente o setor. É o caminho para o abismo”, critica o CEO da Electrão. Pedro Nazareth defende que essa litigância deve ser combatida com instrumentos financeiros automáticos de compensação através de garantias bancárias. De contrário, será preciso esperar anos por uma decisão judicial. O tráfico de frigoríficos velhos As entidades gestoras, sejam de resíduos elétricos, embalagens, pneus, pilhas ou veículos em fim de vida. são financiadas pelas empresas, ao abrigo da responsabilidade alargada do produtor. É o princípio do poluidor-paga-dor: a lei exige que os custos de gestão dos resíduos sejam pagos por quem vendeu o produto original: esses custos são refletidos no preço do produto, pelo que na prática é o consumidor a pagá-los. As entidades gestoras cobram essa taxa de gestão de resíduos, o ecovalor. e aplicam o dinheiro na recolha do “lixo” e no pagamento do tratamento às empresas de reciclagem, os operadores de gestão de resíduos. Claro que, num mercado altamente concorrencial, as marcas tentam pagar o mínimo possível, para não encarecer os seus produtos. Logo, as entidades gestoras tendem a cobrar o menor ecovalor possível, o que agrada às empresas que lhes estão associadas ou que integram os seus conselhos de administração. E esse ecovalor é insuficiente para pagar a gestão ambiental dos resíduos, aponta Rui Berkemeier. “Querem baLxar os custos às grandes marcas, mas põem em causa a sustentabilidade financeira do sistema. Os ecovalores atuais não cobrem os custos de recolha e tratamento. Também por causa disso, as metas de reciclagem não são cumpridas.” Esta foi uma das principais mensagens que o especialista da Zero passou em fevereiro numa Audição Parlamentar sobre os REEE. pedida pelos grupos parlamentares do PS e do PSD. para apurar as razões por detrás do caos que se vive no setor. Na realidade, os ecovalores já são definidos com a admissão à partida de que as metas vão ser falhadas, sublinha Eduardo Marques, presidente da Associação das Empresas Portuguesas para o Setor do Ambiente (AEPSA, que representa os operadores de reciclagem). “A meta em 2021 era 150 mil toneladas, mas o ecovalor foi calculado para um orçamento de 40 mil toneladas. Menos de um terço! Não há ambição à cabeça. As entidades gestoras já sabem que não vão atingir os objetivos definidos na licença.” Pedro Nazareth responde que não vale a pena aumentar o ecovalor porque isso não faria aumentar a recolha de resíduos. “Claro que. para cumprirmos as metas, o ecovalor teria de ser muito maior. Mas injetar dinheiro no sistema não resolve. Simplesmente os resíduos não aparecem. Os municípios dizem às pessoas para porem o ‘monstro’ na rua, incentivando o mercado informal dos sucateiros. Há centenas de operadores informais que vivem disto, que têm aqui um meio de subsistência. Entre o aço e os três ou quatro quilos de cobre do frigorífico, cada um vale €10 ou €15. Uma pessoa que leve dez frigoríficos num dia faz facilmente €150.” Essa pessoa tanto pode ser alguém que vai a passar na rua e canibaliza o equipamento como o funcionário de uma empresa de entregas, que recolhe o velho (função a que é obrigado por lei), mas depois vende o material valioso a um sucateiro, em vez de o entregar intacto à entidade gestora. Ou pode ser o trabalhador da câmara. “Vários municípios já me disseram que são os seus próprios funcionários que promovem o desvio para os canais informais, porque conseguem assim algum financiamento”, diz Pedro Nazareth. Em 2020 e 2021, a Electrão fez um teste para perceber o que estava a acontecer aos REEE. instalando emissores de GPS em 72 equipamentos (frigoríficos, torres de computadores, máquinas de lavar e fogões), colocados na via pública para recolha pelos serviços municipais, em 12 municípios das regiões de Lisboa e do Porto. Resultado: três em cada quatro foram desviados para o mercado paralelo, onde acabaram transformados em sucata sem que o material fosse devidamente descontaminado e recuperado. “Informámos as autoridades, mas não obtivemos resposta. E não conheço um único caso de um colaborador da administração pública que tenha sido sancionado por se dedicar a esta atividade prevaricadora”, diz Pedro Nazareth. “A nossa polícia tem de estar mais no terreno e deveria poder tomar posse coerciva, sempre que encontrasse um compressor ou um ar condicionado misturado numa carga de transporte ou numa empresa não licenciada.” É o que se faz em Espanha: quando a SEPRONA (a unidade ambiental da Guarda Civil) encontra irregularidades num operador de gestão de resíduos, o espaço fica interditado. Um tipo de ação musculada que funciona como dissuasor. Não é difícil fazê-lo também em Portugal, afirma António Lorena, sócio-gerente da 3drivers. empresa de consultoria ambiental especializada em resíduos e economia circular. “Os materiais não vão para sítios desconhecidos. Acabam em sucateiros, que toda a gente sabe onde ficam. No limite, isto é um problema de polícia.” Mas de Espanha não vêm só bons exemplos. O “milagre” espanhol As falhas na recolha de resíduos não são o único imbróglio no sistema – o tratamento do (pouco) que é efetivamente recolhido levanta igualmente muitas dúvidas. As empresas portuguesas do setor queixam-se de que as entidades gestoras entregam resíduos a firmas espanholas que não apresentam provas de tratamento. Mais do que isso. ganham os concursos oferecendo preços tão baixos que o tratamento é pura e simplesmente impossível, diz Eduardo Marques, da AEPSA. “Alguns valores de adjudicação quase não dão para pagar o transporte. O tratamento de frações críticas [substâncias perigosas] pode aumentar o custo cinco a dez vezes, comparando com a simples fragmentação. Como é que estas empresas vão a concurso com preços destes? Dez a 20% da diferença entre empresas portuguesas e espanholas pode ser atribuído a fatores como impostos ou preço da energia, mas 600%?! Só se for um milagre que nós desconhecemos.” A suspeita de que o tratamento não é realizado é mais do que uma simples insinuação. A empresa andaluza Recilec está a ser julgada em Espanha precisamente por ter defraudado os clientes em €16 milhões (ver caixa Fraude de milhões). O operador de gestão de resíduos recebeu dinheiro para tratar milhares de toneladas de frigoríficos, tendo-se limitado depois a triturar os equipamentos. Ou seja. os consumidores podem estar a pagar milhões por um serviço que não é realizado, e com sérias consequências ambientais. As entidades gestoras, porém, continuam a entregar o tratamento a estas empresas (incluindo à Recilec), alegando que, tendo elas licença e sendo o mercado europeu livre, não há justificação para deixarem de o fazer. Neste momento, em equipamentos como frigoríficos, televisores e monitores, Espanha tem o monopólio do mercado português, até porque as empresas nacionais já nem perdem tempo a concorrer, face aos valores em causa. Por outro lado, as empresas portuguesas não são chamadas a entrar nos concursos espanhóis. Ou seja. milhões de euros em ecovalor pagos pelos consumidores portugueses acabam em Espanha, mas nem um euro espanhol de ecovalor vem para Portugal. “Se os preços são muito mais baixos e se quem faz o tratamento em Portugal não consegue ser competitivo, estamos perante um dumping ambiental”, diz António Lorena, da 3drivers. “Isso deve preocupar as autoridades, mas uma CCDR [Comissão de Coordenação de Desenvolvimento Regional], que é quem licencia os operadores no nosso país. não pode ir a uma empresa espanhola ver se estão a ser cumpridos os mesmos critérios de qualidade.” E esses critérios nem sequer são idênticos, continua. “Os requisitos não são uniformes. Em Portugal, há um crivo mais apertado e um conjunto de exigências maior, e que até está a aumentar, o que é positivo.” Pedro Nazareth, da Electrão, assegura que já suspendeu contratos com empresas dos dois lados da fronteira por “incapacidade de nos apresentarem evidências do correto tratamento ambiental” e que não tem vontade de exportar resíduos, mas diz estar de mãos atadas. “Não somos nós que licenciamos os operadores.” E insiste que o problema é o desvio de resíduos para o mercado paralelo. “Se eu fosse um reciclador que tivesse investido €15 milhões e não recebesse material da entidade gestora. sim. ficaria frustrado. Mas não há aqui um bando de mal-intencionados. Simplesmente o material não aparece.” Os perigosos POP A exportação dos resíduos tem vários efeitos perversos, começando pelos económicos. “Perdemos know how, dinheiro e empregos”, lamenta Eduardo Marques, da AEPSA. Já há mesmo empresas a encerrar portas. A Ambicare, a única empresa portuguesa de tratamento de lâmpadas, que investiu centenas de milhares de euros num sistema sueco que é considerado o melhor da Europa, decidiu fechar atividade este ano por não ter material para trabalhar. O representante do setor em Portugal lembra ainda que está em causa a independência nacional nos recursos, em especial numa altura de crise internacional, devido aos confrontos geopolíticos. “Quando um REEE vai para um fragmentador. torna-se lixo. Não é aproveitada a matéria-prima. Se os exportamos, é a mesma coisa: são materiais raros que deixam de estar disponíveis para a nossa indústria. Não admira que sejamos dos piores da Europa na incorporação de material reciclado em novos produtos.” Neste ponto. Pedro Nazareth concorda com Eduardo Marques. “Há matérias-primas críticas para a transição climática. Podíamos estar a sustentar sistemas como as baterias de iões de lítio com os reciclados dos REEE. Há materiais que não temos na Europa. A reciclagem pode representar uma parte muito relevante desses materiais. Andamos a tratar como sucata materiais importantíssimos para a nossa estratégia e soberania.” Portugal tem a quarta menor taxa de circularidade da UE: em 2021, apenas 2,5% do material usado na produção proveio da reciclagem (toda ela, incluindo embalagens de vidro, papel e plástico), quase cinco vezes menos do que a média, de 11,7%. Nos Países Baixos, um terço da matéria-prima é material reciclado. Apesar de todas as campanhas e apelos à reciclagem, a nossa taxa de circularidade manteve-se inalterada nos últimos dez anos. Mesmo quando o material reciclado tem como destino a exportação, é fundamental descontaminá-lo, nomeadamente destruindo por processos químicos os poluentes orgânicos persistentes (POP). E apenas uma pequeníssima parte está a ser tratada. No último relatório em que os POP foram discriminados (2019), só foram removidas 380 toneladas, de um total estimado em 2 240 toneladas. Estas substâncias acumulam-se nos tecidos gordos e são altamente perigosas, podendo provocar problemas de saúde graves, como mau desenvolvimento dos fetos, doenças cardiovasculares, depressão, infertilidade e cancro. “Se mantivermos estes materiais na cadeia de reciclagem, eles vão aparecer em produtos com um impacto mais direto”, alerta o consultor António Lorena. “Muitos destes plásticos vão para países onde se produzem os produtos que usamos no dia a dia. como a índia e o Paquistão, e lá não há qualquer controlo destes poluentes.” Os POP desse material reciclado acabam por surgir em todo o tipo de produtos, incluindo colheres para mexer a comida ou brinquedos, que as crianças tendem a levar à boca. Um estudo europeu de 2018 concluiu que 12% dos 420 artigos de plástico analisados acusaram concentrações de POP acima do permitido por lei. O pior de todos, uma guitarra de brincar em que 0,3% do peso era POP. estava à venda em Portugal. Quem ganha com a estagnação? Uma das soluções para aumentar as taxas de recolha de resíduos em geral é a implementação de um sistema de depósito e reembolso (SDR), em que os consumidores recebem por cada resíduo colocado num ecoponto (valor que já foi refletido no preço do produto novo). No caso das embalagens de bebidas, esse sistema foi aprovado na Assembleia da República em 2018 e deveria ter entrado em vigor em janeiro de 2022. mas dificilmente estará em funcionamento antes de 2025. devido à pressão das autarquias, acusa Rui Berkemeier, da Zero. “Este sistema pennite taxas de reciclagem brutais, de 90%, mas tem passado a mensagem de que as autarquias iam perder dinheiro com a recolha seletiva, porque deixariam de recolher os materiais mais nobres, como o PET e o alumínio. Mas isso é um mito: só os sistemas municipais geridos pela EGF [holding privada] perdem €20 milhões com a recolha seletiva, segundo a Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos. Pelas nossas estimativas, se somarmos os outros sistemas, o défice total ascende a €35 milhões.” Um SDR para os REEE poderia ajudar a acabar com o mercado informal, sobretudo os mais pequenos, sugere Eduardo Marques, da AEPSA. “Se houvesse um valor residual pago pelo consumidor português, que lhe é devolvido quando enviar o equipamento para destino final, deixaria de haver este mercado paralelo.” É essencial, contudo, garantir a segurança dos ecopontos, sejam de que tipo forem. “Um familiar tem uma unidade comercial com um ecoponto. Há tempos perguntei-lhe com que regularidade chama a entidade gestora para ir buscar os equipamentos, e ele respondeu que nunca chamou, porque aquilo nunca chega a encher: há sempre alguém que vai lá buscar o material.” Pedro Nazareth confirma que os roubos são um problema (“Os meus Pontos Electrão são assaltados todas as semanas”), mas aposta na recolha porta a porta como forma de os combater. O mês passado, a Electrão anunciou ter recolhido desta forma mais de 3 500 eletrodomésticos, num projeto iniciado em 2021.0 serviço é gratuito, mas o diretor da entidade gestora queixa-se de que há questões políticas e ideológicas a impedir o alargamento do conceito. “Não é uma questão financeira. Há quem entenda que a recolha deve ser da esfera do município e não quer os privados envolvidos.” O facto de os valores de contrapartida (o que as entidades gestoras pagam aos sistemas municipais de gestão que fazem a triagem de resíduos urbanos) não serem atualizados há sete anos não incentiva as câmaras a melhorarem os números. Os valores para o plástico, por exemplo, rondam os €600 por tonelada (há ligeiras diferenças entre municípios), dos quais cerca de €400 são para tratamento e os restantes €200 são pagos à câmara pela recolha, um valor que não cobre o custo, explicando-se assim o défice de €35 milhões. O ministro do Ambiente e da Ação Climática, Duarte Cordeiro, anunciou há três semanas que o trabalho de revisão dos valores já começou, em entrevista ao jornal Água & Ambiente. A verdade é que a inação é do agrado de muita gente – a começar pelas empresas que vendem os produtos. Afinal, quanto menos resíduos forem recolhidos, menos ecovalor têm de pagar pelo seu tratamento. “Quem coloca os produtos no mercado tem um interesse financeiro: quer gastar o menos possível”, assinala Rui Berkemeier, da Zero. “A reciclagem estagnou, e isso beneficia as grandes empresas.” —– A guerra dos números As nossas taxas de reciclagem são baixas – e mesmo assim parecem ser insufladas Há em Portugal um historial de apresentar números de reciclagem “estranhos”, com milhares de toneladas a surgirem nas estatísticas que ninguém sabe bem de onde vieram. Um dos casos mais polémicos aconteceu em 2018. quando os números oficiais de tratamento incluíram 18 mil toneladas de resíduos de equipamentos elétricos e eletrônicos (REEE) que haviam sido fragmentados (misturando com a sucata substâncias como mercúrio e chumbo). A Zero exigiu à Agência Portuguesa do Ambiente (APA) provas de que aqueles resíduos tinham recebido tratamento adequado. nomeadamente pedindo as quantidades das frações perigosas removidas, mas nunca recebeu uma justificação. No ano seguinte, a APA já não incluiu resíduos triturados nas contas enviadas à Comissão Europeia, e a taxa de recolha de REEE das entidades gestoras caiu de 45% para 20%. Na reciclagem em geral, a Zero volta a acusar o Estado português de batota. Nos dados oficiais de resíduos urbanos de 2021, a reciclagem e a compostagem juntas dão 21%, mas a APA considera que tudo o que entra nas unidades de tratamento mecânico e biológico conta como valorizado, apesar de estas unidades terem taxas de eficácia entre os 10% e os 70%. Mesmo assim, é garantido que não nos vamos aproximar das metas europeias, ainda que assumindo os números otimistas da APA de 30% – em 2025, a taxa de reciclagem terá de ser de 55%. Atendendo a que nos últimos dez anos a taxa se manteve virtualmente igual, com subidas e descidas anuais negligenciáveis, podemos começar já a preparar–nos para multas pesadas. —– Fraude de milhões Uma empresa espanhola está em tribunal por triturar milhares de frigoríficos, apesar de ter recebido dinheiro para os tratar. \las continua a ganhar concursos em Portugal O escândalo rebentou no verão de 2020. quando cinco diretores da Recilec foram detidos e acusados de vários delitos, incluindo uma fraude no valor de €16 milhões. De acordo com o Ministério Público espanhol, a empresa andaluza ganhava concursos de tratamento de frigoríficos oferecendo propostas abaixo das outras. Mas depois, em vez de separar os resíduos e tratar os gases perigosos, um processo caro. triturava os eletrodomésticos na calada da noite. Para muitas empresas portuguesas. que se têm queixado de perder concursos porque os valores apresentados pelas concorrentes espanholas não permitem o tratamento adequado dos resíduos, esta era a prova que faltava. Mas não foi suficiente para as entidades gestoras deixarem de convidar as empresas espanholas de concorrer – incluindo a própria Recilec. No final de 2021. a empresa indiciada venceu mesmo o concurso da Electrão para tratar 75% dos frigoríficos e arcas congeladoras à conta da entidade gestora, durante o ano de 2022 (num total de 4 280 toneladas de resíduos). A empresa que ficou no segundo lugar, a também espanhola Induraees. ficou com os restantes 25% (1 427 toneladas). À VISÃO. Pedro Nazareth defendeu a opção, garantindo que a empresa havia sido alvo de uma “profunda reestruturação” e que estava debaixo do escrutínio das entidades de supervisão espanholas. “A empresa em causa cumpre todos os critérios internacionalmente estabelecidos e encontra-se devidamente licenciada pelas entidades ambientais competentes.” —– Império da Sotkon investigado pela Justiça O gigante internacional em armazenamento de resíduos urbanos foi para tribunal, procurando impedir uma pequena empresa de Braga de comercializar contentores subterrâneos, alegadamente protegidos por patentes. Queixa seguiu para o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) Num jogo à partida desequilibrado, uma pequena empresa de Braga, a 3EcoLopes. consegui ganhar uma ação judicial contra um gigante internacional em sistemas de resíduos urbanos, a Sotkon. Presente em 40 países, esta multinacional arrogava ser detentora de duas patentes relativas a equipamentos de depósitos de lixo. mas os tribunais declararam-nas nulas por falta de qualquer característica inventiva. Uma análise pelo portal do contratos públicos (www.base.gov.pt) mostra que. entre 2009 a 2023. a Sotkon foi adjudicatária de 339 contratos públicos, faturando, deste modo. 25.5 milhões de euros. Ainda assim, em 2021. a empresa tentou impedir que a 3EcoLopes entrasse neste mercado. avançando com uma providência cautelar no Tribunal da Propriedade Intelectual (TPI). Em síntese, alegou que a sociedade de Braga estava a comercializar contentores subterrâneos de armazenamento de lixo em tudo semelhantes aos seus. os quais estavam protegidos por duas patentes. “Lutei contra isto durante muitos anos”, referiu à VISÃO José Luís Lopes, gerente da sociedade de Braga. Na contestação à providência cautelar, a 3EcoLopes alegou que as patentes invocadas, afinal, não poderiam ter sido assim classificadas, porque não trouxeram nada de novo ao chamado “estado da técnica”. E isto mesmo foi confirmado na decisão de primeira instância. Numa das patentes em causa, defendia-se, como principais características para o contentor subterrâneo, a existência de uma “tampa (abatível) de abertura de depósitos dispor de dobradiças que lhe permite bascular até um ângulo de 90o” com um “fecho na extremidade oposta que bloqueia na posição fechada” mais um “cilindro de atuação fluida cuja camisa e êmbolo articulam a respetiva extremidade livre num par de suportes solidários à tampa abatível e ao depósito”. O TPI afirmou que as características, apontadas como inovadoras para a obtenção da patente, mais não passavam do que opções óbvias, replicadas “frequentemente em mobiliário urbano, como caixas de eletricidade, gás, saneamento, etc.”, o que se mostra “evidente para um perito em matéria de sistemas de aberturas de depósitos subterrâneos de resíduos, sem necessidade de qualquer espírito inventivo”. No recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), a Sotkon. através da sociedade de advogados Telles, defendeu a validade das suas patentes, insistindo na proibição da 3EcoLopes em comercializar produtos semelhantes aos seus. Na resposta. José Carvalho Araújo, advogado da empresa de Braga, sustentou que uma das patentes (102748) invocadas mais não era do que uma “cópia” de patentes europeias, além de que se tratava de um “prolongamento artificial e ilegal do prazo de validade” de uma patente nacional. O TRL confirmou, em maio do ano passado, a decisão de primeira instância em toda a linha. “O que os tribunais disseram é que não há nenhuma capacidade inventiva. E não há. Mudar um parafuso da esquerda para a direita não dá direito a patente”, declarou à VISÃO José Luís Lopes, acrescentado esperar que. com esta decisão, a sua empresa entre nos concursos públicos em igualdade de armas com a Sotkon. Mas. ao mesmo tempo que a ação sobre as patentes decorria, o gerente da 3EcoLopes apresentou uma queixa ao Ministério Público, a qual foi reencaminhada. segundo José Luís Lopes, para o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). Aliás, na resposta inicial à providência cautelar, a empresa descreve as suas suspeitas: “Os concursos públicos para sistemas soterrados de deposição seletiva de resíduos sólidos urbanos (Câmaras de Almada. Lagoa. Lagos. Ponte de Lima. Sertã. Peniche. Sines. Barreiro. Braga e Funchal) parecem ser feitos à medida dos contentores da requerente [Sotkon] e das patentes (nulas) por ela registadas, o que já conduziu a uma investigação atualmente em curso na DCIAP “Custou-me a perceber porque era excluído dos concursos, quando os meus equipamentos eram exatamente iguais e mais baratos 30% a 40%”, justificou-se José Luís Lopes. A posse de patentes relativas a contentores subterrâneos terá sido. nos últimos anos. um dos principais argumentos da Sotkon para ganhar concursos públicos. A VISÃO questionou algumas autarquias que adjudicaram contratos à Sotkon. Só a Câmara de Lisboa admitiu que o argumento foi utilizado: “No início do ano de 2016. foi lançado um Concurso Público Internacional para aquisição de contentores subterrâneos. o qual foi adjudicado à empresa Sotkon Portugal. No âmbito do concurso suprarreferido. a Câmara Municipal de Lisboa foi informada à data de que alguns componentes deste sistema de contentorização têm características que são patenteadas e com direitos de autor.” As autarquias de Lagoa e Almada garantiram que tal argumento nunca foi colocado em cima da mesa. A Câmara de Cascais – que adjudicou os mais altos contratos à Sotkon, três milhões de euros, em 2020, e 1,2 milhões. em 2010 – não respondeu. Em resposta à VISÃO, a Sotkon referiu que a “decisão do Tribunal da Relação de Lisboa não declarou como caducadas as patentes reivindicadas pelo Grupo Sotkon. Com efeito, e para um cabal esclarecimento, informa-se que o acórdão do referido Tribunal se tratou de uma decisão provisória e não definitiva, uma vez que foi proferida no âmbito de um procedimento cautelar e não de uma ação declarativa comum, razão por que não produziu caráter de caso julgado material e formal”. A empresa declarou ainda que uma das patentes em causa no processo judicial tinha “caducado dois meses antes” da decisão do TRL. “tendo sido esta a razão por que o Grupo Sotkon se conformou com o mesmo, atenta a falta de utilidade de qualquer reação”. “Até à data de hoje. não foram intentadas contra o Grupo Sotkon quaisquer iniciativas judiciais ou administrativas a questionar a validade de nenhuma das muitas patentes”, acrescentou ainda a Sotkon. Entre 2016 e 2022, a 3EcoLopes (que chegou a usar o nome Lopes&Lopes), entre concursos e ajustes diretos, apenas ganhou 12 contratos públicos, faturando 1.5 milhões de euros: “O lixo é um dos principais negócios em Portugal. Há muitos milhões em jogo e não é fácil para uma pequena empresa entrar”, declarou José Luís Lopes.