Visão online
Humberto Delgado Rosa: Não podemos esperar que alguém com salário baixo tenha o ambiente como prioridade
O diretor para a Biodiversidade na Direção-Geral do Ambiente da Comissão Europeia defende incentivos económicos, para que as más práticas ambientais nunca sejam mais baratas do que as boas
Foi secretário de Estado do Ambiente durante seis anos, de 2005 a 2011. Em 2012, rumou à Comissão Europeia, passando pela Ação Climática antes de, em 2015, assumir o cargo de diretor para a Biodiversidade na Direção-Geral do Ambiente, responsável também pela unidade de Gestão e Uso do Solo. Foi nessa qualidade que Humberto Delgado Rosa, doutorado em Biologia Evolutiva, veio a Portugal participar, como keynote speaker, na conferência Solos Saudáveis e Gestão Sustentável do Solo, organizada pela AEPSA (Associação das Empresas Portuguesas para o Setor do Ambiente), Ordem dos Engenheiros e Associação Técnica para o Estudo da Contaminação do Solo e Água Subterrânea (AECSAS). E é precisamente por aí, pelo solo, que começamos a conversa.
Porque é que continuamos sem aprovar a lei dos solos contaminados?
Também estamos à espera há muito tempo, no contexto europeu, para termos legislação que proteja os solos. Este compartimento ambiental tem estado órfão, quando temos a legislação para o ar, para a água, para a natureza. Não havia para o solo. Agora, com o Pacto Ecológico Europeu, sabemos que vamos ter uma proposta de legislação para solos saudáveis, da qual uma componente é lidar com os solos contaminados. No enquadramento nacional, será oportuno revisitar a eventual regulação de solos, no contexto deste quadro comunitário.
Mas porque é que acordámos tão tarde para os solos?
Há muita iliteracia sobre o solo e o seu papel no ecossistema. Mas também é algo que está debaixo dos nossos pés e damos como garantido. De um ponto de vista mais político, houve alguma resistência de estados-membros que entenderam ser desnecessária uma intervenção da UE, por já terem legislação própria ou porque algumas partes intervenientes tinham pouco interesse em ver a legislação avançar. Mas isso mudou radicalmente. A vasta maioria dos estados-membros está abertamente a favor, o Parlamento Europeu também. E isso pode enquadrar-se neste sentido de uma perceção pública mais generalizada.
A economia circular também tem um papel a desempenhar na resolução deste problema.
É um conceito que tem muito que ver com solo. Quem é que inventou a circularidade? A natureza, onde tudo se transforma. A ideia de que a economia humana estava à parte dos processos naturais está errada. Quando retiramos materiais do meio natural, devemos utilizá-los o mais possível na economia e depois devolvê-los em condições para retomarem os fluxos. Os solos, desde logo, precisam de matéria orgânica, matéria essa a que muitas vezes não sabemos o que fazer. Vamos pôr um aterro? Vamos queimar, quando tem muita água, quando poderíamos recolhê-la seletivamente, fazer compostagem ou equivalente e devolvê-la em boa condição ao solo? E por outro lado temos de encarar o solo como um recurso escasso, finito e não renovável. Desperdiçá-lo não faz sentido.
Como é ver de fora a performance ambiental de Portugal? É uma análise diferente, comparada com o tempo em que era secretário de Estado, por exemplo?
Portugal era visto como um pouco atrasado no tema do ambiente. Isso mudou, com o grande impulso que demos nos resíduos, nas lixeiras, nas águas… Conseguimos dar passos em frente de grande qualidade e passámos a ser vistos como um país com mais ambição no ambiente. Nalgumas matérias, mais proativos, noutras, menos. Está tudo bem? Não, mas isso em nenhum Estado-membro.
É nas energias renováveis que nos destacamos?
É seguramente um dos destaques. Eu lembro-me da crítica de que se gastava dinheiro demais com renováveis, mas provaram ser uma mais-valia. Agora o que temos também é este contexto conjuntural da guerra na Ucrânia, que nos veio mostrar como é uma má ideia estarmos dependentes de energia importada de um parceiro tão pouco fiável como a Rússia. Este é mais um grande impulso para a necessidade de energia renovável. E precisamos, no contexto do Pacto Ecológico, de conseguir aprovar e desenvolver as energias renováveis com ganhos máximos e sem dano noutras áreas do ambiente.
Estamos agora a ver, nomeadamente na Alemanha, um regresso a curto prazo ao carvão, que é mais poluente do que o gás natural, para fazer face a este problema que vem da Rússia. Mas, a longo prazo, esta guerra vai acelerar a transição energética, com um resultado positivo no clima?
Não só a prazo. Já estamos mesmo a fazê-lo. Se há um caso pontual da Alemanha, com uma dependência tão tremenda do gás russo, que precisa pontualmente de recorrer ao carvão, isso é seguramente limitado no tempo. E a Alemanha é também um grande impulsionador de energia renovável. Esta transição para o renovável, que é a energia limpa que temos, sobretudo solar e eólica, é imparável.
A floresta portuguesa é mais vulnerável a incêndios, porque o clima é quente e seco e, por outro lado, a propriedade é fragmentada. Estamos fadados a arder?
Não é um problema só português. Em 2017, tivemos grandes incêndios até na Suécia. Estamos condenados a isso? Durante algum tempo, sim. Em certas condições climáticas extremas, de vento, humidade, temperatura e acumulação de biomassa no território, o fogo é quase incontrolável. O risco de fogos está ainda muito relacionado com o risco climático, porque os nossos ecossistemas florestais passaram a estar “incompletos”.
Os fogos florestais precedem os seres humanos, mas havia uma dinâmica entre árvores e grandes herbívoros. Nós viemos substituir a maior parte do herbivorismo por um herbivorismo doméstico ou por um uso direto da biomassa. Hoje em dia, em muito do nosso território, isso já lá não está. A própria composição da floresta é diferente.
Não é que haja árvores que não ardem, mas há ecossistemas florestais mais resilientes ao fogo que outros. E em cima disso temos o aumento dos impactos climáticos. Criar as condições socioeconómicas para uma recomposição da floresta, com mais mosaico, diversidade, outras espécies e mais herbivorismo, seja ele doméstico ou selvagem, leva tempo. É um processo que foi bem identificado e que está lançado em Portugal e noutros estados-membros.
Não se espere que os fogos florestais de dimensão considerável deixem de nos visitar, mas tenho esperança que cheguemos lá. Há uma palavra-chave que se aplica aos solos, às florestas e a tudo o que estamos a fazer com o Pacto Ecológico: restauração. Podemos restaurar os ecossistemas de forma a que nos deem os serviços de que precisamos, incluindo o serviço de resiliência ao fogo, até para fins económicos – não me serve de nada plantar se, ao fim de 10 anos, arde tudo e não tirei nenhum rendimento.
Está na hora de começarmos a discutir o pagamento de serviços de ecossistema?
Absolutamente. Aliás, na estratégia florestal europeia há um quadro com exemplos de política florestal, e um dos exemplos é um projeto-piloto feito pelo Ministério do Ambiente português de pagar serviços de ecossistema numa área protegida, para que o proprietário seja compensado ao plantar uma árvore que leva 50 anos a crescer em vez de 12. Esse princípio de estimular o pagamento de serviços de ecossistema está lá e passa por repensar os incentivos para que os proprietários possam dar um uso diferente ao território ou estarem disponíveis para que uma entidade o faça por eles.
Ficou satisfeito com o resultado da COP15 [Conferência da Biodiversidade no âmbito da ONU, que decorreu em dezembro em Montreal]?
Foi um sucesso histórico. E fiquei surpreendido, não porque não tivéssemos trabalhado para isso, mas porque pouco antes tinha havido a COP27 do Clima, que não foi propriamente um sucesso. O que esperar, então, de um tema por muitos visto como menor da biodiversidade, e logo num contexto desta situação internacional com a guerra disparatada que a Rússia lançou? A verdade é que a UE teve um papel-chave ao liderar pelo exemplo, com a nossa estratégia Europeia de Biodiversidade. Será para analisar agora porque é que a biodiversidade consegue um sucesso tão grande neste contexto difícil. E para todos os países signatários da Convenção, UE em particular, há ali pistas de reforço da política de ambiente com uma ligação grande ao clima que decorrem deste novo acordo.
Uma coisa é prometer, outra é cumprir…
O que havia nos acordos de biodiversidade era falta de quantificação. Agora temos metas quantificadas num acordo global para áreas protegidas, para restauração de ecossistemas degradados, redução de risco de extinção, não introdução de espécies exóticas invasoras, financiamento da biodiversidade, redução de pesticidas, redução dos nutrientes… Podem não ser cumpridas? Podem, é verdade.
O acordo não é legalmente vinculativo. Mas é politicamente vinculativo e vem com um sistema de monitorização e de reporting de indicadores que nos vão permitir saber se estamos a chegar lá e o que cada parte está a fazer com o seu plano nacional de biodiversidade. Isto muda o enquadramento político e dá pelo menos hipóteses à biodiversidade de ter um percurso equivalente ao que o clima já atingiu.
Perguntamos a qualquer pessoa se se preocupa com o ambiente, e a resposta é quase sempre que sim. Mas porque é que essa preocupação não se traduz em hábitos de consumo mais amigos do ambiente?
Não basta dar factos às pessoas para elas mudarem os seus comportamentos. Há uma componente de emoções que é muito relevante nos nossos comportamentos. Não podemos esperar que alguém com salário baixo, ou que está em risco de não conseguir pagar a escola dos filhos, ou que não sabe se vai perder o emprego, tenha o ambiente como prioridade.
Mas, quando existe uma certa estabilidade social ou na vida de cada um, é um valor que lá está na hierarquia das pessoas. Precisamos é de incentivos económicos que vão a par com os valores que as pessoas já têm dentro da cabeça, e frequentemente os incentivos económicos não estão lá. Ou seja, a má prática é muitas vezes mais barata do que a boa prática. Temos de usar metodologias de fiscalidade para incorporar nos preços a degradação ambiental, para que as boas práticas climáticas signifiquem poupança.
Como vê o debate sobre a possibilidade ou impossibilidade de crescimento infinito, num mundo de recursos finitos?
Eu sou da área das ciências naturais, e sempre me pareceu extraordinário que os meus amigos economistas tratassem a economia como se o mundo fosse infinito. O termo crescimento sustentável é uma contradição nos termos, no sentido de se poder manter para sempre. Creio que isso já está um bocadinho a ser incorporado pela própria ciência económica. Não se trata de dizer que crescimento é mau, mas sim de encontrar novas formas de crescimento que não impliquem mais impactos ambientais. E a Europa, nalgumas áreas, já o fez: temos hoje uma economia mais desenvolvida e com menos emissões do que há alguns anos.
A estratégia Do Prado ao Prato, da UE, tem uma meta de 25% de área agrícola dedicada à agricultura biológica. Sendo esta menos produtiva, será necessária mais área agrícola. Onde vamos buscá-la? Às florestas? Não é uma pressão acrescida sobre os habitats, que pode pôr em causa a Estratégia para a Biodiversidade 2030?
Ninguém está a dizer que se pode ou deve alimentar o mundo com agricultura biológica. O que estamos a fazer na UE é dizer que há vantagens em ter até 25% de área agrícola biológica útil. Agora, esta não é a única agricultura sustentável. Há uma série de práticas agroecológicas. Há menos produção nalgumas colheitas?
Sim, mas não em todas, e em muitas essa menor produção é compensada pelo facto de haver menos inputs químicos. Isto não significa que em todo o mundo se deva aplicar a mesma receita. No acordo da COP15, está referida a agroecologia, enquanto conceito mais geral que incorpora a agricultura biológica, mas também um conceito de intensificação sustentável para os países em que o problema é uma agricultura muito pouco produtiva, que se expande para áreas naturais. Nesses casos, tem de se aumentar a intensificação, para aumentar a produção, mas de uma forma sustentável. Neste equilíbrio encontraremos uma solução.
A agricultura biológica não é uma manta para cobrir tudo, mas sim para ser decidida caso a caso, região a região?
E colheita a colheita. Onde é que o terreno se presta bem a isso? Onde é que a própria economia subjacente daquele produto faz sentido? Nas avaliações feitas pela Comissão Europeia, estes objetivos são compatíveis com a meta de 25% até 2030.
Há quem defenda uma agricultura o mais produtiva possível, para se poder renaturalizar mais área. Por exemplo, deixando que uma determinada percentagem da propriedade seja para habitats naturais, como se faz em florestas certificadas.
São duas visões: separação e integração. Vemos esse debate no contexto florestal e no agrícola, que é como quem diz, deixem-me intensificar a minha produção florestal ou agrícola à vontade que eu meto aqui uns hectares de floresta natural à volta. Primeiro, há lugar para tudo. Nós precisamos de certos ecossistemas estritamente protegidos, basicamente sem intervenção humana, com biodiversidade. E também precisamos de algumas produções florestais ou agrícolas intensivas por questões de quantidade. Mas, entre estes dois extremos, podemos ter mais serviços de ecossistemas em todos eles.