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A fasquia do Governo de 20% de reutilização de água em 2030 mais parece uma miragem. Hoje são pouco mais de 1%. Para um melhor aproveitamento das águas residuais tratadas é preciso investir, alerta a ambientalista ZERO. As águas residuais podem ser tratadas e reutilizadas depois para rega na agricultura e jardins, lavagem de espaços públicos e viaturas. Podem, mas não são, pelo menos, em número que se veja. “Em 2020, apenas 30 entidades gestoras, das quais 20 em baixa e 10 em alta, produziram águas residuais tratadas para reutilização, correspondendo a 8,1 milhões de metros cúbicos, ou seja, apenas cerca de 1,1 % da água residual tratada em estações de tratamento”, referem os dados da Entidade Reguladora dos Serviços de Água e Resíduos (ERSAR) consultados pelo Jornal Económico, que são os últimos disponíveis sobre o sector. Um facto que o argumento de Sara Correia, técnica na ZERO —Associação Sistema Terrestre Sustentável, corrobora:“Temos que aumentar a percentagem de água tratada que é reutilizada”. Esta engenheira do Ambiente esclarece em declarações ao JE que a água residual tratada não serve para tudo, nem nunca poderá ter uma utilização a 100%. “Precisamos garantir que alguma dessa água chegue aos ecossistemas, em alguns casos onde ela é descarregada. Muitas vezes, a água que corre nessas linhas de água é precisamente a que sai da ETAR, a água tratada. Se não existisse, essas linhas ficariam praticamente sem água”. No que diz respeito ao reaproveitamento na agricultura, que é responsável pelo consumo de 70% a 75% de toda a água, Sara Correia explica que existem “muitos receios de contaminação, na rega do tomate, por exemplo, que está em contacto direto com a terra e vai estar em contacto direto com a água”. Mas, adianta, há legislação nacional e a nível europeu que define quais são os critérios de qualidade para que a água residual tratada possa ser reutilizada em função das diferentes culturas e das diferentes utilizações. Ou seja, nenhuma destas razões justifica que um país que está na linha da frente das alterações climáticas pouco tenha feito em cinco anos para melhorar o aproveitamento das águas residuais tratadas. Recuemos a 24 de julho de 2017. Uma notícia da agência Lusa publicada pelo Diário de Notícias, com base em dados de 2015 da mesma ERSAR, traçava um retrato em tudo idêntico ao que encontramos em 2020. “Somente 1,2% das águas residuais tratadas são reutilizadas, metade da média registada na União Europeia”, escrevia o DN. Nessa altura, como hoje, já era possível apontar o bom exemplo do Algarve e das Águas do Algarve, onde a percentagem de reaproveitamento é superior à média do país, havendo viçosos campos de golfe que prosperam com base na água residual tratada. “Para podermos aumentar de forma significativa a percentagem de água reutilizada, temos que ter um sistema que faça essa água chegar aos locais onde pretendemos utilizá-la e esse é um problema. Não temos esse sistema de distribuição”, justifica Sara Correia. Há neste campo muito trabalho a fazer, considera a técnica da Associação ZERO. Um trabalho que “implica que o Governo invista para permitir o melhor aproveitamento dessas águas resíduos tratadas”, concretiza. Os dados da ERSAR referentes a 2020, revelam também que a maior parte da água residual tratada foi utilizada pelas entidades gestoras para uso próprio e apenas 12 % foi fornecida a outras entidades para ser reutilizada. Em janeiro deste ano, o Presidente da República promulgou o diploma do Governo sobre a reforma e simplificação dos licenciamentos ambientais, o Simplex Ambiental, como é conhecido. A ZERO criticou, na altura, a iniciativa do Governo, não só quanto à reutilização de águas residuais, mas também. “É uma área onde se simplificou muito pouco, focando-se quase exclusivamente na utilização para uso próprio passando nessa situação a estar sujeita apenas à necessidade de comunicação prévia e não à obrigatoriedade de licença”. Para utilizações fora dos locais de produção, explica a ZERO, mantém-se a obrigatoriedade de licença para utilização de águas para reutilização na rega de culturas agrícolas, mas também de jardins públicos e privados. “Não podemos deixar de relembrar que a atual taxa de reutilização de águas residuais tratadas é de 1,2%, sendo que o Governo apregoa quer chegar a uma meta de 20% de reutilização de água em 2030”. Política e estratégia O país só recentemente acordou para o debate sobre a água. Há menos de dois anos, o estudo “O uso da água em Portugal: olhar, compreender e atuar com os protagonistas-chave”, promovido pela Gulbenkian, fez soar campainhas: Até 2040 pode faltar água para as atividades mais básicas. Sara Correia alerta para o perigo da inexistência de uma verdadeira política hídrica num país frequentemente afetado pela seca: “Não podemos continuar a fazer a gestão da água da maneira que fazemos, com medidas avulsas, definidas em cima do joelho”. A água, diz a técnica da ZERO, exige uma estratégia nacional, pensada, com tempo, para se colocar em prática e com horizonte de médio e longo prazo. Não o fazer é uma irresponsabilidade.