Visão
A assassina silenciosa
As cidades portuguesas têm níveis elevados de poluição do ar. Mas não estão sozinhas: 96% da população urbana da UE está exposta a altos níveis de poluentes. No mundo, todos os anos morrem 7 milhões devido a doenças provocadas ou exacerbadas pela poluição do ar. Quais são as causas e as soluções para este flagelo ambiental?
Vivemos preocupados com os microplásticos na nossa água, com os pesticidas na comida, com o lLxo, com os solos, com a camada de ozono, com (claro) as alterações climáticas. E temos razões para isso. Mas o problema ambiental mais grave, com impactos diretos na saúde humana, é o ar poluído que respiramos. E ninguém está a salvo. Quem o diz é a Agência Europeia do Ambiente (AEA). “É difícil escapar à poluição do ar. independentemente do local onde vivemos. Pode afetar seriamente a nossa saúde e o ambiente. Embora a qualidade do ar na Europa tenha melhorado nas últimas décadas, os níveis de poluentes atmosféricos ainda excedem os padrões da UE e as diretrizes mais rigorosas da Organização Mundial da Saúde [OMS].” A má qualidade do ar é a maior causa ambiental de doenças e mortes prematuras. Estima-se que mate, todos os anos, 7 milhões de pessoas no mundo, o que equivale a 10% do total de mortes – mais do que as mortes de Covid desde o início da pandemia até hoje (6.8 milhões, segundo a contagem da OMS). As crianças estão no olho do furacão. Na África Subsariana. a poluição do ar terá matado meio milhão de recém-nascidos em 2019. diz um estudo da Universidade da Califórnia. EUA. Naquela região do globo. 2.42 milhões de bebés morrem nos primeiros 27 dias de vida, pelo que um em cada cinco é vítima do ar que respira. A União Europeia lidera o combate à poluição e às alterações climáticas, com planos de redução de queima de combustíveis fósseis e limites às concentrações de poluentes. Ainda assim, pelas contas da AEA. no seu último relatório sobre qualidade do ar. morreram 287 mil pessoas em 2020, só devido à exposição a dióxido de azoto e partículas finas (PM2.5, mistura de partículas em suspensão, com um diâmetro inferior a 2,5 micrómetros, capaz de atravessar as paredes dos pulmões e invadir outros órgãos). E isto em ano de confinamentos, quando o ar esteve mais limpo do que alguma vez havia estado nas últimas décadas. Às mortes, somam-se as doenças incapacitantes. Em 2019. as partículas finas deram aos europeus 175 mil anos de vida com doença pulmonar obstrutiva crónica. Os culpados desta tragédia silenciosa são, em grande medida, os tubos de escape dos carros. Mas o tráfego automóvel tem cúmplices – e alguns estão dentro das nossas casas. Do cancro do pulmão ao avc A associação ambientalista Zero alertou no mês passado para os elevados valores de concentração de dióxido de azoto na Avenida da Liberdade, em Lisboa. A média anual em 2022 foi de 45 pg/m3 (microgramas por metro cúbico), quando o valor máximo exigido na lei nacional e europeia é de 40 pg/m3 (e dois dias registaram mais de 200 pg/m3). O valor representa um incumprimento de 12,5%. Mas, se não conseguimos cumprir os limites atuais, será muito pior no futuro próximo: está a ser revista a legislação europeia da qualidade do ar, que deverá definir o valor máximo seguro para a saúde em 20 pg/m3. Francisco Ferreira, presidente da Zero, prevê uma enxurrada de multas por incumprimento, a somar às questões de saúde. “Portugal tem um processo em fase final de decisão, no Tribunal Europeu de Justiça, por este motivo. Como vai ser quando o limite passar para metade?” E os valores europeus para poluentes continuarão muito acima do que a OMS entende serem inofensivos, acrescenta. “Em 2021, a OMS reviu em baixa os valores-guia. O dióxido de azoto, em que ultrapassamos sistematicamente os 40 pg/m3 na Avenida da Liberdade, passou para 10 pg/m3, e as partículas finas para 5 pg/m3, porque se considera existirem danos significativos para a saúde acima disso. ” De acordo com a AEA, 96% da população urbana da UE respira ar com concentrações de partículas finas superiores ao recomendado pela OMS. O objetivo da UE, com o seu “plano de ação zero poluição para 2050” é chegar a 2030 com uma redução de 55% de mortes prematuras causadas pelas partículas finas, face a 2005. Entre os problemas de saúde, provocados ou agravados pela poluição do ar, estão as doenças respiratórias e os acidentes vasculares cerebrais (AVC), mas também asma e cancro do pulmão. Calcula-se que 7% dos casos e 17% das mortes por cancro do pulmão sejam atribuíveis à má qualidade do ar. Estudos recentes apontam ainda para maiores taxas de depressão e ansiedade em pessoas expostas a poluentes do ar. Mesmo o ar que uma grávida respira vai influenciar o seu bebé, com impactos no desenvolvimento mental da criança. As (outras) mortes dos incêndios O principal responsável pelo ar poluído nas cidades é o automóvel. “No caso das partículas ultrafinas, o problema são os navios e os aviões, mas o dióxido de azoto tem origem nos carros”, explica Francisco Ferreira. Pior, continua, apesar de a situação estar identificada, Portugal não toma medidas concretas. “Nós sabemos o que é preciso fazer: retirar trânsito do centro das cidades, que é o que outros países europeus estão a fazer. No caso de Lisboa, por exemplo, devemos estimular o uso pedonal, limitar a entrada de veículos a cargas e descargas, estimular os veículos elétricos. Mas nada se faz. A nossa esperança é que o Tribunal Europeu de Justiça obrigue o Estado a agir, aplicando-lhe multas diárias significativas, para garantir a proteção da saúde das pessoas.” O ambientalista recorda o projeto de criação da Zona de Emissões Reduzidas Avenida Baixa Chiado (ZER ABC), apresentada no início de 2020 pelo então presidente da câmara, Fernando Medina, que prometia tornar aquela zona da cidade exclusiva para veículos de residentes, comerciantes, táxis, motos e carros elétricos. Pouco depois, veio a pandemia, a ideia foi para a gaveta e não foi ressuscitada pelo executivo de Carlos Moedas. “Havia ali coisas discutíveis, outras pouco ambiciosas, mas era um projeto que podia ajudar a resolver o problema. Da mesma forma, também temos um plano de melhoria da qualidade do ar para a região de Lisboa e Vale do Tejo, mas o programa de execução nunca avançou.” Outra fonte importante de poluição do ar são as centrais termoelétricas a carvão. Na Alemanha, a decisão de apressar o descomissionamento das centrais nucleares, após o desastre de Fukushima, em 2011, levou ao aumento da queima de carvão, de modo a cobrir as perdas de produção de eletricidade. Investigadores calculam que essa decisão levou à morte de 1 100 pessoas por ano, vítimas de doenças causadas pela poluição acrescida do ar. Em Portugal, já não há centrais a carvão. Mas, para compensar, temos fogos florestais. Um estudo liderado por Sofia Augusto, do Instituto de Saúde Pública (Universidade do Porto) e publicado na revista científica Environment International, analisou os incêndios de outubro de 2017, comparou a mortalidade diária com a média e concluiu que a concentração de fumo teve um “efeito significativo” na mortalidade. “Por cada 10 pg/m3 adicionais de PM10 [partículas com diâmetro inferior a 10 micrómetros], houve um aumento de 0,89% no número de mortes naturais e de 2,34% no número de mortes por doenças cardiorrespiratórias” É um problema que as alterações climáticas vai agravar seriamente, dado que alguns cenários apontam para um aumento de 50% ao longo deste século. “As consequências dos incêndios florestais são generalizadas e se, como sugerem os modelos, se tornarem mais comuns, podem afetar pessoas e animais numa ampla faixa do planeta”, alertou em novembro Jacqueline Alvarez, chefe da Divisão de Química e Saúde do Programa das Nações Unidas para o Ambiente. mero de mortes naturais e de 2,34% no número de mortes por doenças cardiorrespiratórias” É um problema que as alterações climáticas vai agravar seriamente, dado que alguns cenários apontam para um aumento de 50% ao longo deste século. “As consequências dos incêndios florestais são generalizadas e se, como sugerem os modelos, se tornarem mais comuns, podem afetar pessoas e animais numa ampla faixa do planeta”, alertou em novembro Jacqueline Alvarez, chefe da Divisão de Química e Saúde do Programa das Nações Unidas para o Ambiente. O problema das lareiras e dos fogões a gás No verão, respiramos o fumo dos grandes incêndios. No inverno, o dos pequenos: as lareiras. Uma análise do Departamento de Ciências e Engenharia do Ambiente da Faculdade de Ciências e Tecnologia, da NOVA, tendo por base os dados de qualidade do ar da Agência Portuguesa do Ambiente de final de janeiro e início de fevereiro, encontrou elevadas concentrações de partículas PM10, principalmente na Região Norte, “com efeitos nocivos para a saúde humana”. Numa estação de medição de Paços de Ferreira, os valores atingiram o triplo do limite legal; noutra de Santo Tirso, o dobro. Estes níveis de poluição são explicados pelo facto de as pessoas terem acendido mais lareiras para enfrentar os dias frios. Por outro lado, não houve chuva nem vento, que teriam ajudado a dispersar as partículas. E assim, em vez dos dois picos de poluição habituais, coincidentes com as horas de ponta, os dados mostram que houve um terceiro, entre as onze da noite e a meia-noite. As lareiras também têm impactos negativos no ar interior (recuperadores de calor ou sistemas a pellets são menos nocivos, neste aspeto). Mas há outra ameaça nas nossas casas: o fogão a gás. Uma meta-análise publicada na International Journal of Epidemiology constatou que crianças que vivem em casas onde se cozinha com gás têm uma probabilidade 42% mais alta de desenvolverem asma. Em Nova Iorque, medições na concentração de dióxido de azoto em casas com fogões a gás, durante a preparação da comida, encontraram médias de 197 partes por mil milhões, contra apenas 14 nas casas com fogões elétricos. A preocupação com o gás dentro de casa levou, no mês passado, o comissário da Comissão de Segurança de Produtos de Consumo (entidade do governo federal americano) a sugerir banir ou limitar a venda de fogões a gás. As declarações deflagraram uma polémica tal que obrigou a porta-voz de Joe Biden a garantir que o Presidente americano não apoiava uma eventual proibição. Um senador democrata, Joe Man-chin, e outro republicano, Ted Cruz, uniram mesmo esforços, numa rara parceria bipartidária, para avançarem com o projeto de lei “Proteção e Liberdade do Fogão a Gás” Nas palavras de Manchin, “O governo federal não tem nada que dizer às famílias americanas como preparar o jantar.”