Eco online
Nos últimos dois anos para os quais há dados, 2019 e 2020, Portugal falhou as metas comunitárias para a recolha de resíduos elétricos. Portugal voltou a falhar as metas comunitárias de recolha de resíduos dos equipamentos elétricos e eletrónicos (REEE) em 2020, depois de um registo negativo em 2019. Zero aponta falta de financiamento. Entidades gestoras assinalam falta de fiscalização. As entidades gestoras em Portugal têm a responsabilidade de recolher 65% do peso médio dos REEE que são colocados no mercado nos três anos anteriores, mas foram incapazes de alcançar essa meta . No ano de 2020, os equipamentos colocados no mercado chegaram às 212 mil toneladas, e a recolha não ultrapassou as 59 mil toneladas. “ Portugal tem vindo a baixar [os níveis de recolha] para níveis muito preocupantes, para o fundo da lista ”, refere Rui Berkemeier, da associação ambientalista Zero ao ECO/Capital Verde. “ O sistema de recolha é muito fraco e o problema não tem sido levado a sério ”, diz. Eduardo Marques, diretor da Associação das Empresas Portuguesas para o Setor do Ambiente (AEPSA), subscreve, afirmando que Portugal tem sido “dos poucos países onde as entidades gestoras apresentaram um decréscimo de recolha de REEE”, isto em contraciclo “com o consumo de equipamentos elétricos e eletrónicos que tem aumentado significativamente nos últimos anos”. Segundo a Agência Portuguesa do Ambiente (APA), este é um dos fatores que contribui para o incumprimento das metas a nível europeu , apontando que a colocação no mercado destes equipamentos “sofreu um acréscimo substancial”, devido ao aumento do poder de compra dos cidadãos. Mas 2020 não foi o único ano em que a taxa de recolha mínima de 65% não foi atingida; foi a partir de 2019 que tudo mudou. E ntre 2016 e 2018, os dados da APA indicam que Portugal esteve sempre em condições de ultrapassar a meta comunitária fixada em 45% . Mas em 2019, o Parlamento Europeu e o Conselho Europeu atualizaram a diretiva e determinaram que a taxa de recolha mínima iria subir de 45% para 65% do peso médio dos equipamentos elétricos e eletrónicos colocados no mercado nos três anos anteriores. Ou, em alternativa, para 85% dos REEE gerados no território desse Estado-membro. A decisão, considera a APA, atirou a taxa de esforço das entidades gestoras para níveis muito elevados, “tornando-se numa meta bastante ambiciosa”. Em 2019, foram recolhidas 52 mil toneladas de REEE, “ não permitindo atingir a meta comunitária fixada em 65% do peso médio destes equipamentos colocados no mercado nos três anos anteriores ”, revela a entidade liderada por Nuno Lacasta. A Eletrão, ERP Portugal e E-Cycle são as três principais entidades gestoras responsáveis pela recolha destes equipamentos quando chegam ao fim de vida e, segundo o diretor da AEPSA, estas “têm vindo a apresentar metas entre 15% a 25% abaixo daquelas a que Portugal está vinculado”. “ Não é possível ignorar que Portugal deveria recolher cerca de 10 a 11 quilos de REEE por habitante e sabemos que as entidades gestoras apenas têm conseguido recolher 2,4 quilos ”, refere ao ECO/Capital Verde. “ Há uma enorme diferença entre as metas a atingir e a realidade nacional”. Em 2020, a Eletrão, a entidade com a maior quota de mercado (61%), recolheu 16 mil toneladas de REEE; a ERP Portugal compilou cerca de nove mil toneladas e a E-Cycle, a entidade mais recente a juntar-se à missão, coletou cerca de 73 toneladas. Portugal tem vindo a baixar [os níveis de recolha] para níveis muito preocupantes, para o fundo da lista. O sistema de recolha é muito fraco e o problema não tem sido levado a sério. Mas o aumento da ambição não foi o único fator que dificultou a concretização das metas comunitárias. Rui Berkemeier explica que o cálculo também mudou. Segundo o responsável da Zero, até 2018, a APA contabilizava para as metas de reciclagem todos os resíduos elétricos e eletrónicos, indiferenciadamente. Ou seja, não havia separação de resíduos. “Imaginemos um sucateiro, que não faz o tratamento dos resíduos. Este tira o metal que interessa dos REEE que lhe chegam e remete para os fragmentadores”, isto é, empresas que trituram resíduos metálicos, conta Berkemeier. Lá, esses resíduos são triturados misturados com outros que não são elétricos e eletrónicos, e era a partir daí que a APA fazia uma análise e estimava quantos resíduos elétricos e eletrónicos tinham sido recolhidos. “Em 2019, isso foi alterado e deixou de contar para a meta os resíduos que não eram recolhidos seletivamente”, ou seja, que não dava para perceber se eram efetivamente REEE ou REEE misturados com outros resíduos, revela. A partir desse ano, Portugal deixou de cumprir as metas europeias. “Se tivessem mantido o cálculo, continuavam a cumprir as metas”, afirma o responsável da Zero. E os números confirmam a tendência decrescente: em 2017 e 2018, a APA revela que as entidades gestoras recolheram cerca de 70 mil toneladas, por ano, mas logo em 2019 esse valor cai para os 52 mil toneladas de resíduos recolhidas. “ Não foi só porque a meta aumentou, o novo cálculo permitiu acabar com as batotas”, acusa. Mas estas três entidades não são as únicas responsáveis pela recolha dos resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos. A responsabilidade também é partilhada pelas empresas retalhistas que colocam estes equipamentos no mercado , recorda a AEPSA. “Atribuir a totalidade desta falha a uma só parte não será justo”, considera Eduardo Marques. “Certo é que o sistema de gestão dos REEE assenta na chamada responsabilidade alargada do produtor , sendo atribuída ao produtor do equipamento elétrico e eletrónico a responsabilidade pela gestão do resíduo, quando este atinge o final de vida”. Por outras palavras, uma empresa que venda um eletrodoméstico deve, por lei, financiar a recolha e tratamento do resíduo para quando este chega ao fim de vida. E embora esta realidade conste da lei, Berkemeir explica que esse sistema “não compensa às empresas” e, por isso, a alternativa adotada em Portugal é passar essa responsabilidade a uma entidade gestora licenciada pelo Estado para assumir o cumprimento das metas de recolha e tratamento de resíduos. “Essa passagem de responsabilidade é feita através do pagamento de uma prestação financeira, ou o ecovalor”, que é pago pelas empresas às entidades gestoras ressalva. É a partir daqui que surgem os problemas. Verbas bloqueiam taxas de recolha maiores? Mas que fatores estão no caminho das entidades gestoras para atingirem os seus objetivos? Para Rui Berkemeier, o foco recai principalmente sobre dois: o ecovalor (valor que uma empresa paga por tonelada a uma entidade gestora por colocar um determinado equipamento no mercado) e a falta de fiscalização “ As entidades gestoras estão todas a funcionar com verbas muito abaixo do necessário para cumprirem a sua função . [O ecovalor apresentado] só dá para recolher 15% dos REEE ”, diz, partilhando que, na sua opinião, os culpados são fáceis de identificar. “ O problema está na APA e na Direção-Geral das Atividades Económicas (DGAE), porque autorizam esse valor. As entidades gestoras funcionam com muito pouco dinheiro. Não há dinheiro, não há festa” , acrescenta. De acordo com as licenças publicadas e com disposto em decreto-lei, as entidades gestoras devem apresentar à APA e à DGAE um modelo de prestação financeira onde são incluídas todas as variáveis (custos com recolha, triagem, tratamento, armazenagem, de estrutura, entre outros, assim como receitas associadas à recuperação dos materiais), que irão servir de base à prestação financeira que irão cobrar aos produtores dos REEE. Por outras palavras, o valor pago pelas empresas devia ser correspondente ao dinheiro que seria necessário para a entidade gestora cumprir a meta, ou seja, para recolher 65% e tratar os mesmos 65%. “O financiamento da recolha e tratamento dos fluxos específicos dá-se exclusivamente com o orçamento dos ecovalores”, explica Eduardo Marques. “ Dessa forma, o não correto funcionamento desses ecovalores compromete a estabilidade e a boa execução de todo o sistema de gestão ”, frisa o responsável pela AEPSA. Em 2020, a ERP Portugal tinha apresentado um ecovalor de 5,2 milhões de euros e o Eletrão tinha uma prestação financeira de cerca de 7,4 milhões de euros – esta última, liderada por Pedro Nazareth, afirma ao ECO/Capital Verde que “ se a recolha seletiva de elétricos usados fosse maior, maior seria também o custo de recolha e reciclagem destes equipamentos. E, em consequência, maior a prestação financeira cobrada às empresas e aos consumidores ”. Sobre esta questão, a APA é perentória: “caso existam valores de prestações financeiras que se possam encontrar desfasados da realidade e não sejam suficientes para o cumprimento das metas impostas, as entidades gestoras irão sentir a necessidade de os alterar com a apresentação de novos modelos, ou serão penalizadas pela TGR [taxa de gestão de resíduos]” , isto é, um imposto pago pelas entidades gestoras por incumprimento. Rui Berkmeier faz as contas: “A entidade gestora recebe das empresas, em média, 50 euros por tonelada. A taxa de gestão de resíduos é de 22 euros por tonelada de resíduos. Se a entidade gestora não cumprir com a recolha, paga 7 euros. Compensa não fazer nada “. O responsável dá ainda um exemplo prático: “É a mesma coisa que passar na Ponte 25 de abril, a portagem é 1,90 euro e a multa por não pagar portagem é 1 euro. Ninguém paga portagem. É o que se está a passar. Por cada tonelada de incumprimento ganham mais do que 40 euros”. Desvio para mercados paralelos Mas a fiscalização é também uma agravante para o incumprimento das metas comunitárias. Segundo a E-Cycle, “o não cumprimento da meta de 65% de recolha não advém da inércia da atividade” das entidades gestoras, “mas sim do desvio deste tipo de resíduos”. Rui Berkmeier recorda que a lei é clara e diz que quem vende estes equipamentos é obrigado a recolher os artigos velhos. “Mas isto não está acontecer”, diz o responsável da Zero. A título de exemplo, o próprio indica que o nível de recolha dos frigoríficos é inferior a 30%. “Os outros 70% são desviados”, alerta, considerando tal como “escandaloso” “ As entidades gestoras concordam connosco, mas a APA, que sabe disto, não toma medidas suficientes” , acusa Rui Berkmeier, ressalvando, no entanto, que embora a entidade não seja fiscalizadora — ao contrário da Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT), as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) e o Serviço de Proteção da Natureza e do Ambiente — a APA “tem uma obrigação que não tem estado a cumprir: a gestão dos resíduos”. “ A APA não cria condições, nem políticas que evitem o desvio de resíduos”, sublinha. Os desvios, conta, acontecem em algumas situações, nomeadamente, na falta de recolha do equipamento velho aquando da entrega de um novo, obrigando ao consumidor a descartá-lo junto a um ecoponto; ou na recolha do equipamento, tal como prevê a lei, mas no despejo do mesmo em locais indevidos, como por exemplo, em sucateiros, diz o responsável da Zero. O que é indubitável é que o nosso país está – sem dúvida – entre aqueles que maiores dificuldades e desvios apresentam às metas europeias. As próprias entidades gestoras também revelam já terem feito denúncias destes desvios junto da APA e das autoridades competentes mas o problema mantém-se. “ Há uma questão muito concreta para a qual já alertámos por diversas vezes e que nos continua a preocupar, que está relacionada com o mercado paralelo ”, diz Pedro Nazareth, informando que um estudo da Eletrão concluiu que três em cada quatro equipamento elétricos e eletrónicos usados e colocados na via pública ou nos circuitos municipais “vão parar ao mercado paralelo”. E, à semelhança da Eletrão, também a E-Cycle colocou chips com GPS em eletrodomésticos usados e verificou que mesmo que estes sejam recolhidos no local destinado para o efeito, acabam por ser desviados, desmantelados noutro local e vendidos à peça. “ O que deve ser feito é aumentar a fiscalização e policiamento sobre as atividades paralelas de desvio de resíduos , algo que está fora da esfera de competência da ERP Portugal” e das restantes entidades gestoras, diz a ERP Portugal. A entidade liderada por Nuno Lacasta foi contactada sobre esta matéria, mas o ECO/Capital Verde não obteve resposta até à publicação deste artigo. Certa de que os dados a serem divulgados em meados do próximo ano, e referentes a 2021, não irão cumprir, uma vez mais, as metas comunitárias, a Zero reitera duas propostas que já tinham sido apresentadas ao ex-ministro do Ambiente e da Ação Climática, João Matos Fernandes, mas que ainda não tiveram resposta . A primeira prevê que a APA e o Ministério do Ambiente e da Ação Climática criem mecanismos para a IGAMAOT fazer uma inspeção direta junto das retalhistas de forma a aceder às informações relativamente ao que foi vendido e ao que foi recolhido. “Só seria necessário atuar sobre cinco ou seis empresas, as grandes cadeias. Mas o MAAC não quis avançar” tendo em conta a falta de resposta, explica Rui Berkemeier. A segunda proposta prevê que sejam inspecionadas as cargas de metais que entram nos principais fragmentadores de forma a identificar as cargas que contenham resíduos elétricos ou eletrónicos. “ Enquanto não se fizer nada para mudar a situação, Portugal vai continuar a falhar as metas” , frisa o responsável da Zero.