Água & Ambiente
01/07/2022
O jornal Água&Ambiente questionou especialistas e stakeholders do setor sobre as vantagens e desvantagens de uma liberalização da gestão de resíduos em alta face! Ao previsível aumento das tarifas que decorre dos exigentes objetivos ambientais Portugal tem objetivos ambientais cada vez mais ambiciosos de recolha seletiva e valorização de resíduos para atingir ao longo da próxima década, o que deverá exigir a mobilização de cada vez mais recursos para assegurar este serviço público. Segundo o plano estratégico de resíduos urbanos (PERSU 2030), só na vertente em alta, haverá necessidade de investir cerca de 335 milhões de euros em novas infraestruturas de tratamento. Atualmente, há 23 entidades a operar no serviço em alta e o setor privado tem já um peso relevante neste domínio: os 11 sistemas multimunicipais geridos pela EGF asseguram o tratamento de resíduos a cerca de dois terços da população nacional, em 1 74 municípios. Já as empresas municipais ou intermunicipais servem 21% da população, enquanto as associações de municípios abrangem 12%, segundo o relatório anual dos serviços de águas e resíduos (RASARP 2021). Cada um destes 23 sistemas opera em regime de monopólio legal, ou seja, estão legalmente obrigados a receber a totalidade dos resíduos recolhidos na sua zona de influência e os sistemas em baixa têm também de entregar todos os resíduos recolhidos à respetiva entidade em alta, pagando uma tarifa pelo seu tratamento. Em 2020, a média ponderada das tarifas praticadas nos sistemas que prestam serviços em alta atingiu 33,48 €/t, o que representou já um aumento de 7,4 % face ao ano anterior e a necessidade de novos investimentos faz antecipar “uma trajetória de incremento tarifário no futuro próximo”, revela o RASARP 2021. Será que uma maior liberalização do setor em alta traria oportunidades de eficiência e uma maior capacidade de mobilizar volumes relevantes de investimento, por via da abertura à concorrência? O jornal Água&Ambiente lançou a questão ao setor, sobre as vantagens e desvantagens deste cenário. Para José Manuel Palma, há “três bombas-relógio” a pressionar o setor: “sistemas descapitalizados”, “infraestruturas que estão a acabar o seu período de vida útil”, como sucede com as instalações de incineração e diversos aterros; e cada vez “menos subsídios” europeus no horizonte. Tudo isto numa altura em que o setor “tem de fazer investimentos” relevantes, nomeadamente face ao fim da vida útil de algumas das instalações existentes. Neste contexto, para o professor de Psicologia Ambiental na Universidade de Lisboa, uma das soluções possíveis é o “reforço da intervenção dos privados”, ainda que isto possa suceder em moldes distintos, que não envolvem necessariamente o fim da exclusividade legal dos sistemas. Na sua perspetiva, os sistemas em alta podem investir “ainda mais na separação e secagem dos resíduos” para poderem entregar ao mercado frações “com valor positivo”, assim como entregar, “por valor negativo, os resíduos para serem solucionados pelos privados”, quando não existe tratamento para estes ou esta opção é menos competitiva. Desta forma, os sistemas mantêm-se monopolistas, na sua área de intervenção, mas entregam, progressivamente, ao mercado “pequenos eixos com valor negativo”, cuja importância e abrangência irá “aumentar cada vez mais” e, numa segunda fase, o quantitativo total dos resíduos não valorizáveis – fração-resto – para ser solucionado pelos privados. Este cenário não implica uma mudança legal: “não há restrição porque o sistema pode pagar um valor negativo se o valor que ele está a pagar fora é mais racional economicamente do que tratar dentro”, argumenta. Numa terceira modalidade – que replica o sistema inglês – a totalidade dos resíduos pode ser enviada para uma entidade privada, contratada pelos municípios por um determinado período. “Essa é uma solução mais longínqua”, observa José Manuel Palma, que já implicaria uma revisão legal, mas que, “provavelmente em 10 ou 15 anos” pode ser uma realidade. Ainda assim, a curto prazo, “o mais provável de acontecer é um reforço da entrada dos privados que vão começar a ajudar os sistemas em alta a resolver, com valor negativo, os problemas que eles não vão conseguir resolver”, antecipa José Manuel Palma. “Como existe um conjunto de restrições muito fortes à subsidiação das soluções finais de tratamento de resíduos, isto vai acabar por acontecer”, confia. O presidente da AEPSA – Associação de Empresas Portuguesas para o Setor do Ambiente só vê vantagens numa maior liberalização do setor em alta, ainda que prefira abordar o tema de forma genérica, dada a sua complexidade. “Por princípio, a liberalização de um setor de atividade” como este, argumenta Eduardo Marques, “é do interesse das populações e dos municípios, pois terá todo o potencial para permitir um melhor serviço a custos mais baixos, já que estará sujeito às regras da concorrência e do mercado, condição imprescindível para se atingir um serviço de qualidade ao menor custo possível, com garantia da concretização em tempo útil dos investimentos necessários e constantes nos procedimentos concursais”. Na sua perspetiva, “a desejável alteração da gestão de resíduos urbanos em alta fora do universo da EGF, deverá ser feita via concursos públicos de concessão da gestão dos serviços”. Estes concursos deverão “transferir para o concessionário privado um risco razoável, identificado numa matriz de riscos legal e contratual, alicerçada em rigorosos critérios ambientais, bem como todos os investimentos necessários à prestação de um serviço de qualidade às populações”, acrescenta ainda. A estabilidade é uma das vantagens que identifica neste modelo: esta solução permite “uma total previsibilidade contatual e tarifária ao longo do período da concessão e um efetivo controlo por parte dos municípios concedentes do cumprimento contratual”. Evolução tecnológica faz questionar monopólio legal Já a possibilidade de o monopólio legal dos sistemas cair por terra é uma questão abordada com mais cautela, até porque a privatização da EGF, em 2014, entregou a gestão de 11 sistemas, neste regime, por um período de 20 anos. O que não significa que este cenário não mereça ser estudado. Sem se focar em considerações administrativas ou contratuais que possam limitar os cenários possíveis, João Pedro Rodrigues, CEO da GIBB Portugal entente que a questão central passa por saber se, “na alta, existem ou não existem economias de escala permanentes para todas as dimensões e para todo o tipo de infraestruturas”. Isto porque, contextualiza o gestor, a teoria económica estipula que “havendo economias de escala significativas no tratamento dos resíduos”, então “a solução mais económica é a do único prestador do serviço”, ou seja, um modelo monopolista. Já se a resposta for negativa, então “faz sentido tratar de outra forma” o tema. O consultor não tem resposta certa para esta pergunta, mas recorda que a realidade não é estática. “À medida que o paradigma tecnológico avança, soluções de mais pequena escala que até há pouco tempo eram deseconómicas do ponto de vista produtivo, podem, ao longo do tempo, passar a sê-lo”, ilustra. No plano técnico, já existe alguma “discussão teórica” sobre se o futuro assenta em soluções centralizadas de tratamento, como até aqui, ou em soluções de mais pequena escala, em que o tratamento do resíduo é assegurado próximo do local de produção. Nuno Castro Marques, da SP&M Advogados, não identifica, à partida, “óbice nenhum” ao alargamento do âmbito da concorrência no quadro da gestão de resíduos urbanos, mas sublinha a necessidade de estudar a questão, antes de qualquer decisão. “Não estamos a falar de monopólios naturais, nem de atividades que tenham uma perigosidade ou um interesse público que os condene exclusivamente a serem tratados pelo Estado”, observa o advogado, ainda que reconheça que há efeitos de escala que levam a que, por exemplo, numa rede de municípios faça sentido que exista só um centro de tratamento não só por razões económicas, mas também “por questões de localização dos impactos ambientais” e de “eficiência do tratamento”. Contudo, “a eficiência tecnológica neste campo tem sido brutal”, recorda Nuno Castro Marques, o que não permite dizer com certeza e de antemão que há um monopólio natural, “no sentido que os mercados geográficos não têm dimensão suficiente para aguentarem mais do que um operador”. Em termos teóricos, “não há um monopólio natural no setor dos resíduos em alta”, contextualiza, por seu lado, Paulo Lopes Marcelo, coordenador executivo do curso de pós-graduação em Concorrência e Regulação do Instituto de Direito Económico, Financeiro e Fiscal da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. “Portanto, não há nenhuma razão para que o legislador não reveja os monopólios legais e a exclusividade de entrega e tratamento de resíduos em alta que, neste momento, estão previstos na lei”, observa. Ainda assim, na sua perspetiva, “isso só pode ser feito com uma avaliação do processo que conduziu à privatização do grupo EGF, para que se possa tomar decisões legislativas e de políticas públicas de acordo com dados e elementos factuais”, sublinha. Também Nuno Castro Marques considera que antes de se avançar para um modelo “relativamente inovador”, mais aberto à concorrência, se deve “fazer testes, localizados, com indicadores de medição”. “E esses indicadores de medição deviam comparar o que é comparável”, salienta. Um problema “transversal” a muitos setores reside no facto de os indicadores de monitorização definidos nos contratos de concessão a privados não serem os mesmos que são exigidos às entidades públicas, o que não permite uma comparação efetiva entre as duas opções, realça. No setor dos resíduos, os 23 sistemas em alta são regulados pela Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR), quer ao nível da qualidade de serviço prestado, quer no plano económico, mas não são aplicadas as mesmas regras para a fixação de tarifas. Uma eventual liberalização do setor em alta “implicará, obviamente, alterações legislativas e o necessário acompanhamento pela entidade reguladora, reconhece também Eduardo Marques. Monitorização próxima Aliás, para Nuno Castro Marques, a principal dificuldade poderá ser garantir que existe capacidade, na esfera municipal e intermunicipal, para criar “um enquadramento contratual que abra suficientemente à concorrência” e que, depois, “permita também uma monitorização absolutamente apertada e rigorosa das obrigações de serviço público”. “A minha maior dúvida é saber se existe know-how e expertise”, salienta, para assegurar esta monitorização, dado que a liberalização introduz “mais níveis de complexidade”. Isto porque quando se liberaliza a gestão, pretende-se retirar benefícios disso, recorda o advogado, seja no plano económico, ambiental ou de qualidade do serviço. “Se eu não conseguir monitorizar muito proximamente e com muito rigor aquilo que for a liberalização do serviço, aqueles benefícios que eu estimava que poderia ter, no limite, posso não ter”, concretiza. Ou seja, “posso estar a pagar menos, mas ter menos qualidade ou posso estar a pagar o mesmo e não valorizar tanto os resíduos, por exemplo, prejudicando o ambiente”, ilustra. Que papel poderia desempenhar o regulador nesta monitorização? Para o advogado, o regulador, sendo independente e não a parte contratante, deve apenas servir “de mediador para os problemas e dificuldades de execução do contrato”. No entanto, pode definir “um patamar mínimo de exigência”, aplicável a “todo e qualquer contrato de concessão de serviço público de gestão de resíduos”, para garantir “transparência e concorrência” ao processo. Quanto aos sistemas, pelo menos para já, preferem não abordar a possibilidade de uma maior liberalização do setor. Questionado pelo Água&Ambiente, Paulo Praça, presidente da ESG RA – Associação de Gestão de Resíduos, prefere não comentar o tema “em abstrato”. “A única coisa que posso dizer é que exercemos atividade em regime de exclusividade face ao quadro legal existente”, justifica, “se o quadro legal se alterar, tem de haver as devidas correções”. A EGF optou também por não se pronunciar sobre o assunto.