Expresso
Nunca a união europeia enviou tanto lixo para fora. nem nunca a UE importou tantos resíduos. Portugal contrariou estas duas tendências em 2021, mas continua a ser fornecedor de um serviço no mercado europeu: trata resíduos de outros países
Fazer o menor lixo possível, tratá-lo o mais próximo da fonte e ser autónomo na gestão dos resíduos — estes são princípios básicos da União Europeia, mas a realidade não é bem assim. Nunca a UE exportou e importou tanto lixo como no ano passado: foram enviados quase 33 milhões de toneladas para fora e recebidos outros 20 milhões. É o que mostram os dados mais recentes do Eurostat sobre o negócio do lixo nos 27 Estados-membros, negócio esse que levanta preocupações ambientais, sobretudo quando os resíduos saem do bloco europeu. Exportamos lixo — e os nossos problemas — para países especialmente atrativos por praticarem preços mais baixos, não por terem melhores infraestruturas de tratamento. A Turquia é, de longe, o principal destino: em 2021 recebeu quase metade das exportações de resíduos da UE (14,7 milhões de toneladas). Seguem-se a Índia e o Egito, em segundo e terceiro lugar, mas com quantidades bem menores. “É certo que nem as legislações nem as práticas de gestão de resíduos destes países são muito recomendáveis, o que é particularmente preocupante, porque aquilo que estamos a fazer é livrarmo-nos do problema e enviá-lo para outro sítio”, alerta Carlos Moura, engenheiro ambiental e coordenador técnico da Quercus. O vazio criado pela China, que deixou de ser um importador significativo do lixo europeu, está a abrir espaço para outros países ocuparem o seu lugar. Isto nota-se especialmente com o Paquistão: cresceu bastante enquanto recetor de resíduos europeus nos últimos anos, com um aumento de 0,1 milhões de toneladas em 2004 para 1,3 milhões em 2021. Se na China não havia controlo de qualidade e os resíduos eram tratados com métodos não adequados aos padrões europeus, agora as preocupações mantêm-se. O “problema permanente” é “não haver forma de saber o que acontece aos resíduos fora da União Europeia”, explica Rui Berkemeier, especialista em resíduos da ZERO — Associação Sistema Terrestre Sustentável. “Isso não nos deixa seguros.” A solução seria tratar tudo no bloco europeu e para isso era preciso “apostar a sério na indústria de reciclagem própria da região”, nota. Mas Carlos Moura acrescenta: “Infelizmente, aquilo que tem vindo a acontecer é um crescimento da produção e uma estagnação das capacidades de resposta dentro da UE.” Entre metal ferroso (aço e ferro), plástico, papel e cartão, borracha ou vidro, muitos resíduos europeus vão parar a diferentes cantos do mundo. O negócio do lixo poderia ser uma oportunidade económica para os países mais pobres, caso tivessem as infraestruturas necessárias para reaproveitar os materiais, lembra o coordenador da Quercus. “Havendo a tecnologia, seria uma mais valia para a economia e até para a sustentabilidade. Não havendo, é mesmo muito problemático” devido aos riscos para o ambiente — o lixo depositado em aterros pode contaminar solos e lençóis freáticos, por exemplo. Se enviar resíduos para países com padrões de qualidade inferiores, só por questões económicas, é uma forma de desresponsabilização, importar lixo é uma transação estratégica. A UE também compra resíduos sobretudo ao Reino Unido, Noruega e Suíça — três países europeus não por mera coincidência. Há o fator da proximidade geográfica, das tecnologias utilizadas e do tipo de resíduos produzidos, mais facilmente tratados pelas nações vizinhas, justifica Moura. Torna-se mais fácil importar dentro da Europa, ainda que fora do espaço comunitário, graças à “legislação e facilidade de mobilidade”, resume. PORTUGAL IMPORTADOR Comprar resíduos gera mais lucro porque, após corretamente tratados, servem como matéria-prima para indústrias. “É preciso analisar caso a caso”, ressalva Berkemeier, mas “em Portugal a indústria de reciclagem de metais é muito desenvolvida, daí importarmos muito este material para a siderurgia: é só fundir outra vez e fica muito mais barato fazê -lo a partir de ferro e aço velhos”, explica. Assim, “em Portugal os principais resíduos importados são os metálicos”. Pelo menos assim era há uns anos, quando a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) ainda divulgava estes dados. O último relatório sobre o Movimento Transfronteiriço de Resíduos (nome dado à entrada e saída de lixo em Estados-membros) é de 2018. O Expresso pediu à APA dados mais recentes sobre a gestão de resíduos, mas não obteve qualquer resposta. Um ano foi particularmente decisivo para inverter uma tendência nacional: a partir de 2015 foram consolidadas várias unidades de tratamento, até então “um pouco incompletas”, nota ainda Berkemeier, que foi coordenador do Centro de Informação de Resíduos da Quercus durante dez anos. “Passámos a ter várias infraestruturas modernas e, estando inseridos no mercado europeu, tornámo-nos fornecedores de um serviço: o do tratamento de resíduos. Isso fez com que Portugal deixasse de ser um país exportador e passasse a ser importador de resíduos” — mas não na mesma lógica da Turquia, Índia ou Egito. Ainda assim, no ano passado houve uma quebra nesta tendência: nunca importámos tão poucos resíduos a países fora da UE como em 2021. Foram cerca de 616 mil toneladas, o valor mais baixo desde 2012 (primeiro ano em que o Eurostat começou a publicar estes dados). O que poderá justificar este declínio? Carlos Moura fala em três hipóteses. A primeira, mais plausível, está relacionada com a pandemia cujos “efeitos seguramente foram mais fortes no ano seguinte do que exatamente em 2020”. A crise pandémica afetou os padrões de consumo e de produção portugueses, e “a paragem de 2020 refletiu-se em 2021”, considera. Além disso, em janeiro do ano passado duplicou o valor da Taxa de Gestão de Resíduos (TGR), passando de €11 por tonelada para €22, com o objetivo de desencorajar a deposição final em aterro e a incineração de lixo indiferenciado. A TGR, paga ao Estado português, aumentando de preço “torna menos interessante a importação de resíduos”, continua o responsável da Quercus. Por último, a suspensão de importar lixo destinado a eliminação em aterro esteve em vigor, em Portugal, entre maio e dezembro de 2020, devido ao aumento dos plásticos descartáveis no primeiro ano da pandemia. Esta medida pode ter impactado o ano seguinte, estima ainda Moura, visto que “toda uma indústria para trás foi afetada”. O ano de 2021 ficou igualmente marcado por uma redução da quantidade de lixo exportado: Portugal enviou quase 217 mil toneladas para fora da União Europeia. Desde 2015 que se verifica este declínio que coincide com a melhoria das capacidades nacionais de tratamento de resíduos. A exportação deverá continuar a cair nos próximos anos, significando que cada vez mais valorizamos o nosso próprio lixo, em vez de o descartarmos noutros países. Esta tendência é positiva, até porque como diz Rui Berkemeier, “a solução não pode ser mandar lá para fora e está resolvido”.