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Soluções de reciclagem de águas do chuveiro ou do lavatório existem mas ainda são caras face ao preço da água. Não têm apoios do Fundo Ambiental e esbarram numa legislação ultrapassada que tem nova versão pronta há cinco anos, à espera de aprovação. Portugal vai ter de se preparar para períodos de escassez de água cada vez mais frequentes e prolongados. Mas o país, que começou nos últimos anos a reutilizar águas residuais tratadas para necessidades públicas e até para a agricultura, está ainda muito atrasado quando se trata de reciclar e reutilizar boa parte da água consumida nas habitações e edifícios públicos e privados. Autarquias, empresas e famílias portuguesas poderiam reduzir substancialmente a quantidade de água potável que gastam mas o desconhecimento, o preço destes equipamentos face à tarifa da água e uma legislação que tarda em ser actualizada impedem o avanço de uma opção com impactos ambientais positivos evidentes. Em cem litros de água consumidos numa habitação, 60 a 70 litros usados em banhos, duches e lavatórios podem ser considerados águas cinzentas (assim designadas por terem menos sujidade que as negras, as dos sanitários, por exemplo). E há formas seguras de as tratar localmente, permitindo a sua reutilização para descargas de sanitas, limpezas gerais, rega e, dependendo da forma de tratamento, até para lavagem de roupa. Vários países já estabeleceram normas para o uso destes efluentes, que implicam que numa construção nova ou numa reabilitação se faça um projecto de encaminhamento deste efluente para um dispositivo de reciclagem onde ela é tratada, separando este fluxo de tratamento/reutilização do das águas negras, que vão directamente para a rede de esgotos. Estado não apoia Com mais ou menos tecnologia incorporada, as soluções que nos permitiriam reduzir em cerca de 40% o consumo de água existem, há empresas nacionais que vendem e instalam “recicladores” de água para usos não potáveis, mas um equipamento destes nem sequer é elegível para os apoios do programa Edifícios+Sustentáveis, do Fundo Ambiental. Quem hoje decida instalar um designado sistema predial de reutilização e reciclagem de águas cinzentas (SPRAC) terá de arcar com a despesa por inteiro. Hotéis e empresas já começam a ver isto como um investimento com retorno mas, para as famílias, pagar quatro a cinco mil euros por um novo “electrodoméstico” ainda é algo fora das cogitações, e dos bolsos, da esmagadora maioria, assumem os responsáveis de duas firmas contactadas pelo PÚBLICO. O enquadramento legal não ajuda. Apesar de termos aprovado, em 2019, o Regime Jurídico de Produção de Água Para Reutilização , Obtida a Partir do Tratamento de Águas Residuais, na verdade, esta legislação reflecte uma preocupação importante com o aproveitamento das águas das ETAR, e pouco se aponta, ali, para a descentralização de tratamento e consumo de águas cinzentas ao nível de cada habitação. E, se olharmos para o Regulamento Geral dos Sistemas Públicos e Prediais de Distribuição de Água e de Drenagem de Águas Residuais, de 1995, e ainda em vigor, este não não enquadra sequer o conceito de águas cinzentas nem prevê, nas normas de instalação das redes prediais, algumas das opções de projecto necessárias para instalar um reciclador. O novo regulamento das instalações prediais, que prevê regras para o uso descentralizado das águas cinzentas, já está pronto há anos, esteve em consulta pública em 2016, lembra o presidente da Associação Nacional para a Qualidade das Instalações Prediais (ANQIP), Silva Afonso, mas ainda não foi aprovado pelo Conselho de Ministros. Neste momento, uma família que tenha sensibilidade, recursos e vontade de reutilizar a água que consome pode, no limite, esperar que um município lhe aprove esta opção com o apoio do projectista, do instalador e da própria ANQIP, entidade que publicou normas e certifica o projecto e a instalação destes sistemas. Vantagens ambientais Reutilizar água das ETAR é importante , mas implica construir novas condutas e recorrer quase sempre a bombagem para levar a água tratada para pontos que, muitas vezes, se encontram numa cota superior. Tal como acontece com a compostagem doméstica, que diminui a pressão sobre os sistemas de tratamento de resíduos sólidos, o tratamento de águas e sua reutilização o mais próximo possível do local onde ela é usada tem vantagens ambientais e económicas, notam os engenheiros Silva Afonso, presidente da Associação Nacional para a Qualidade das Instalações Prediais (ANQIP) e Ana Galvão, professora no Instituto Superior Técnico, em Lisboa. Ana Galvão espera poder instalar nas próximas semanas, na universidade onde trabalha, um “reciclador” de águas de base natural, que é, na verdade, uma parede verde. Nesta solução, que esta engenheira está a desenvolver com uma empresa, a MiniGarden, e que está em prova de conceito, as plantas, fixadas a um substrato que poderá ser de cortiça ou de outro material reciclado, vão fazer o trabalho de filtração do efluente, que pode depois ser armazenado e reutilizado. Quando esta solução estiver apta para comercialização, será uma alternativa num mercado onde existem, também, soluções tecnológicas. Segundo o director-geral da Ecodepur, empresa do centro do país que há uma década comercializa estes equipamentos sob o nome Ecodepur Biox para habitações unifamiliares, hotéis e complexos hoteleiros, escolas, complexos desportivos entre outros, “a procura tem tido uma evolução crescente”. Mas num país onde a sensação de escassez é pontual, e onde a água chega à torneira a um preço muitas vezes abaixo de custo, o mercado doméstico, assume Bernardo Taneco, é ainda incipiente. E o seu crescimento tem outros entraves: o “preço” destas soluções e a “complexidade dos requisitos de licenciamento por parte das entidades competentes”. Hotéis mais interessados Outro engenheiro do ambiente, Emanuel Silva, director-geral da Environmental Waves, firma que também lida com múltiplas opções de reutilização para os mercados da agricultura e da indústria – áreas em que, tal como a Ecodepur, encontra clientes muito preocupados com esta questão –, passou a comercializar, desde o ano passado, um equipamento residencial. Trata-se do Hydraloop, um sistema compacto, de fabrico holandês , expansível conforme as necessidades, para o qual já tem dúzia e meio de interessados, metade dos quais hotéis, que conseguem recuperar facilmente o investimento. O cliente particular, descreve, ou mora numa zona com problemas de abastecimento de água ou tem já uma consciência ambiental que o impele a ter em conta esta alternativa, apesar dos custos. Quem lhe bate à porta, assume, vem quase sempre primeiro à procura de algo para aproveitar a água da chuva. Um investimento que, hoje em dia, notam os responsáveis por estas duas empresas, não fará muito sentido. Mas, num país em seca, quem comprar um sistema de recolha de águas pluviais pode receber 85% do respectivo valor, até um máximo de 1500 euros, do programa Edifícios+Sustentáveis . Este apoia outras intervenções que conduzam a uma melhoria da eficiência hídrica das habitações, mas os equipamentos de reutilização da água já consumida – que fomentam um uso efectivamente circular deste recurso – estão de fora. O PÚBLICO tentou perceber há já uma semana, junto do Ministério do Ambiente e do Fundo Ambiental, o que motivou esta opção, mas não obteve resposta em tempo útil. Emanuel Silva vai pelo senso comum. Quem fez a lista de soluções a beneficiar pensou como o cidadão comum que chega à sua empresa. Silva Afonso tem outra explicação. O Plano de Recuperação e Resiliência, de onde vem a verba do programa, está muito concentrado na resolução da ineficiência energética das habitações. Ainda não sentimos a água “como um bem que pode ser escasso”, acrescentam Bernardo Taneco e Ana Galvão. O exemplo dos painéis solares No entanto, nenhum dos interlocutores abordados pelo PÚBLICO acredita na disseminação deste tipo de soluções sem uma intervenção do Estado, tal como aconteceu, por exemplo, com os painéis solares térmicos, para aquecimento de águas, ou com os fotovoltaicos para produção de electricidade, cuja compra é apoiada. Ainda mais numa circunstância em que, assumia a própria Agência Portuguesa do Ambiente no Guia para a Reutilização de Água em Usos Não Potáveis , de 2019, “existe na sociedade uma repulsa natural à água que é definida como contaminada”. Esse sentimento, acrescentava a agência que tutela este sector, “pode-se traduzir em oposição à utilização de águas residuais tratadas, mesmo quando a água é comprovadamente de alta qualidade”. A própria APA assumia, nesse documento, que seria importante superar esta “barreira psicológica”, “promovendo a divulgação da reutilização de água, garantindo um sistema de controlo das várias etapas do processo que transmitam segurança na utilização”. Mas, à escala doméstica, pouco foi feito, nesse sentido, e continuamos a deixar escapar cano abaixo um recurso que já deveríamos estar a reaproveitar.