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Associações ambientalistas apontam o dedo ao fraco nível de tratamento e de reciclagem. Electão reconhece que números ficam aquém do desejado e que todos perdem. Opinião é unânime: falta fiscalização.
São muitas as irregularidades no sistema público de gestão de resíduos elétricos e eletrónicos. A começar pelas metas de tratamento e reciclagem, que estão muito aquém do legalmente definido. As associações ambientalistas queixam-se das entidades gestoras e acusam o Governo e a Associação Portuguesa do Ambiente (APA) de fecharem os olhos ao que está a passar-se.
Os números falam por si. Em 2020 foram colocadas no mercado 212 mil toneladas destes resíduos. De acordo com as metas impostas pela União Europeia, as três entidades gestoras – Eletrão, ERP Portugal e E-Cycle – deveriam ter recolhido, no mínimo, 138 mil toneladas. Feitas as contas, recolheram apenas 27 mil toneladas, ou seja, só 20% quando estavam obrigadas a um mínimo de 65%.
Ao i, Rui Berkemeier, da associação ambientalista Zero, diz não ter dúvidas: “Não está a funcionar bem este sistema” e lembra que quem coloca um equipamento no mercado tem de pagar a uma entidade gestora o valor necessário para que este quando chega ao fim de vida seja recolhido e tratado. “O que é que acontece?”, questiona. E responde: “As entidades gestoras do equipamento elétrico e eletrónico estão todas a funcionar com verbas muito abaixo do necessário para cumprirem a sua função”. E, na sua opinião, os culpados são fáceis de apanhar. “Diria que também são as entidades gestoras mas, em primeiro lugar é a Agência Portuguesa do Ambiente e a Direção-Geral das Atividades Económicas (DGAE)”.
Isto porque são estas as duas entidades que “autorizam as entidades gestoras a funcionarem com custos muito abaixo do necessário que precisam para funcionar”. E deixa exemplos: “No início do ano, quando uma entidade gestora apresenta a essas entidades públicas – a APA é do ministério do Ambiente e a DGAE da Economia – uma proposta de eco valor (valor que é pago por uma empresa que coloca, por exemplo, frigoríficos no mercado paga por tonelada de frigorífico colocado no mercado), ele devia ser correspondente ao dinheiro que seria necessário para a entidade gestora cumprir a meta, ou seja, para recolher 65% e tratar os mesmos 65%. O que é que acontece? A entidade gestora apresenta o valor que só dá para recolher 15% ou 20%. E a APA e a DGAE aceitam esse eco valor porque são elas que o autorizam.
Alerta que não é novo. Já não é a primeira vez que a Zero chamou a atenção para o colapso na recolha dos resíduos elétricos e eletrónicos, acusando o Ministério do Ambiente de não atuar. A lei é clara e diz que quem vende estes equipamentos é obrigado a recolher os artigos velhos. E o responsável da Zero diz que “isso não está a acontecer”, afirmando que esta obrigatoriedade “não está a ser fiscalizada, nem penalizada”. E deixa exemplos: “Uma grande superfície vende 100 frigoríficos e quando leva o novo é obrigado a trazer o velho. O comerciante contrata uma empresa para esse trabalho, só que a empresa que leva o novo vai vender o velho a um sucateiro. Conclusão 80% a 75% dos frigoríficos desaparecem e, com isso, o frigorífico não é tratado como deve ser, o gás que está na espuma perde-se para atmosfera e temos o problema das alterações climáticas”.
Também o diretor-geral da Electrão reconhece o problema. “Assumimos claramente as responsabilidades que temos nesse sistema. Tudo temos feito para que o país esteja noutra condição e com outros números naquilo que está ao nosso alcance. Temos 15 anos de atividade, temos aumentado de ano para ano todas as quantidades recolhidas e recicladas na nossa rede. Mas não somos o único player, nem a única entidade a funcionar em Portugal”, disse ao i Pedro Nazareth. E lembra que já alertou para essa situação as entidades públicas, os meios políticos porque é que o país não cumpre as metas de recolha e reciclagem. “Publicámos uma agenda onde apontámos um conjunto de caminhos e onde explicamos por A mais B quais são os grandes aspetos do sistema de recolha e reciclagem que estão a falhar para que o país”.
Face a este, cenário não deixa margem para dúvidas: “Perdemos, em primeiro lugar, porque não estamos a cumprir o objetivo que é a proteção da saúde pública e do meio ambiente. Quando não estamos a recolher os equipamentos elétricos usados nos canais que devíamos, com o cuidado que devíamos e a promover a reciclagem que devíamos, então significa que todos estamos a perder. Estamos a perder materiais, estamos a não controlar poluentes que deviam estar a ser controlados, a ser tratados e a ter um destino adequado”.
Pedro Nazareth reconhece que existe um conjunto de operadores informais, a que chama de mercado paralelo. “Ganham a vida a promover transações informais destes equipamentos, não garantem o adequado tratamento, nem a adequada reciclagem. Aproveitam apenas alguns componentes que têm um valor de mercado positivo com o qual podem ganhar dinheiro e não têm qualquer tipo de problema ou de consciência em, se for preciso, lançar para o meio ambiente poluentes”, diz ao nosso jornal.
Falta de regulação? Existem duas tutelas sobre os produtos que são taxados para suportar a cadeia de valor de recolha/reciclagem/encaminhamento. Entre os Ministérios da Economia e do Ambiente, fala-se numa ausência de regulação e, posteriormente, de fiscalização. O i sabe que tem havido atitude permissiva por parte dos sucessivos governos, o que permitiu a criação de um negócio paralelo, que está a lesar a economia portuguesa.
Ao i, o responsável da Zero diz que “temos uma APA completamente opaca em relação a este assunto”. O responsável recorda uma “guerra” com a APA para que fossem dadas evidências de que os resíduos, efetivamente, foram tratados. Mas nada aconteceu até agora. “O equipamento elétrico eletrónico é importante ser reciclado mas mais importante de tudo é que seja tratado e removidas as componentes perigosas para o ambiente”, diz. “E neste momento temos uma Agência Portuguesa do Ambiente que validou esses dados. Primeiro as entidades todas validaram os dados dessas empresas de fragmentação em 2018. Depois a APA validou os dados das entidades gestoras e entregou-os ao Ministério do Ambiente que contente da vida enviou para a Comissão Europeia a dizer que Portugal tinha cumprido a meta, quando é totalmente falso. Além do mais é uma situação de fraude porque houve dinheiro que foi pago e o dinheiro das entidades gestoras – é preciso não esquecer – é dinheiro que vem dos consumidores. Pagamos uma taxa quando compramos um equipamento elétrico eletrónico. É esse valor que as empresas depois usam para pagar às entidades gestoras”.
Assim, diz em 2018, “houve uma fraude gigantesca de 18 mil toneladas e a APA não nos quer dar os dados. Já pedimos, já fizemos queixa à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), que avalia se as entidades públicas nos devem responder ou não, eles deram-nos razão mas a APA continua a não responder”. E a Zero já apresentou uma queixa à Provedoria de Justiça.
“Não há um controlo efetivo sobre as empresas porque também não interessa haver. No dia em que houver esse controlo, as empresas já não vão poder contratar empresas baratas. As entidades gestoras continuavam a contratar empresas só pelo preço e não pela qualidade que, no fundo é para isso que elas existem, para descontaminar”.
E volta a falar em números lembrando que, em 2019, as entidades gestoras recolheram “muito poucos resíduos”. Em 2020 foi 15%, em 2019 foi 20%, 32 mil toneladas. “Mas a APA considerou que foram recolhidas 52 mil toneladas, mais 20 mil toneladas fora do sistema das entidades gestoras, que é uma coisa estranha”, diz o responsável da Zero que acrescenta: “Quem é que vai andar a tratar resíduos se não tiver apoio financeiro? Pedimos à APA que nos mostrasse a evidência que essas 20 mil toneladas tinham sido efetivamente tratadas. E mais uma vez a APA não nos dá nenhuma evidência”.
E acusa: “Os seis anos deste ministro e dois anos desta secretária de Estado têm sido a alimentar, sistematicamente, uma gestão ilegal de equipamento elétrico e eletrónico que, de facto, não se compreende”.
A verdade é que os atrasos e as derrapagens levaram o Ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, a reconhecer falhas no sistema e a prometer intensificar a fiscalização sobre as entidades gestoras, responsáveis pela recolha e reciclagem.
Sobre isto, Rui Berkemeier é perentório: “O Governo admitiu falhas mas, em 2017, a Inspeção Geral do Ambiente (IGAMAOT), fez um relatório sobre os vários fluxos de resíduos e sobre o equipamento eletrónico. Uma das coisas que diz lá é que os dados não são fidedignos. E dizem, inclusivamente, que a APA não está a cumprir a sua função. O que é uma coisa engraçada: dois departamentos do Ministério do Ambiente, um dizer que o outro não está a cumprir e, de facto, não está. O ministro pura e simplesmente arquivou o relatório”.
O caso não teve qualquer consequência e “pior ainda”: “desde 2017 o sistema tem vindo a degradar ainda mais”. E garante: “Isto é um sistema que não funciona mas não é por falta de denúncias. A Zero tem feito n denúncias, temos feito reuniões com a secretária de Estado, dissemos que isso era meio criminoso e não há forma de o Ministério do Ambiente – e não será já esta equipa, penso eu – que vai resolver o problema”.
Questionado sobre se é então um problema de falta de fiscalização, o responsável da Zero diz que é mais que isso. “As entidades gestoras dizem que os canais paralelos, como não há fiscalização, aquilo vai as sucateiras. Isso é tudo verdade só que as entidades gestoras também não estão a cumprir o seu papel e a fiscalização, essencialmente, não está a existir é sobre as entidades gestoras”.
E recorda outro processo. Às entidades gestoras é-lhes passada uma licença por parte do Estado e têm de cumprir condições. Mas, “mesmo não cumprindo, o Estado ainda agora renovou a licença das entidades gestoras do equipamento elétrico eletrónico. Já pedimos ao Ministério do Ambiente para revogar as licenças das três entidades gestoras”. Só que, garante, “o Ministério do Ambiente não lhes quer tirar a licença”.
Entretanto, a Zero lembra que esteve para ser aprovado no Parlamento, no verão passado, o regulamento geral de resíduos sobre a alteração da Taxa Gestão de Resíduos (TGR). Esta taxa é paga pelas entidades gestoras por vários motivos mas um dos motivos é por incumprimento. As contas são fáceis de fazer: “Cada tonelada de incumprimento de meta paga a TGR. Só que a TGR, para as entidades gestoras, é 6,6 euros” a pagar ao Estado. “Só que as entidades gestoras recebem, do tal eco valor, 50 euros por tonelada”. Ou seja, mesmo não cumprindo, fica a ganhar. O exemplo é prático. “É a mesma coisa que passar na Ponte 25 de abril, a portagem é 1,90 euro e a multa por não pagar portagem é 1 euro. Ninguém paga portagem. É o que se está a passar. Por cada tonelada de incumprimento ganham mais do que 40 euros”.
No entanto, a alteração à lei foi chumbada no Parlamento com votos contra do PS e do PCP. “Hoje ainda a lei é: o crime compensa. Estamos metidos num beco sem saída”, diz Rui Berkemeier que não tem dúvidas: “As empresas de reciclagem portuguesas estão a ir praticamente todas à falência, estão a desistir do setor e o ambiente e a saúde são quem ficam a sofrer mais. É um quadro perfeitamente negro”.
E termina: “Nunca vi um fluxo de resíduos a ser tão mal tratado. E nunca vi uma situação tão grande de impunidade e de o Estado olhar para o lado perante as evidências mais que evidentes. Este é dos casos piores mas há outras situações”.
Concursos debaixo de fogo O i sabe que a Associação das Empresas Portuguesas do Sector do Ambiente (AEPSA) denunciou à Autoridade da Concorrência (AdC) a violação dos princípios de transparência, igualdade e concorrência no âmbito dos procedimentos concursais lançados pela Eletrão que, enquanto entidade gestora, está sujeita ao cumprimento das regras da contratação pública, relativas aos princípios da transparência, da igualdade e da livre concorrência de mercado.
Já em agosto passado, a AEPSA interpôs judicialmente um pedido de anulação de quatro concursos de Resíduos de Equipamentos de Elétricos e Eletrónicos (REEE) promovido pela entidade gestora sem fins lucrativos Electrão – licenciada pelos Ministérios do Ambiente, da Economia, respetivamente, pelos organismos APA e DGAE – pelo facto de estes concursos não cumprirem as exigências ambientais previstas na legislação sobre gestão de resíduos nacional e europeia. Ao i, o diretor-geral da Electrão garante que gere uma rede com mais de 7000 pontos de recolha e faz anualmente concursos para selecionar os recicladores. “Fizemos um concurso, como é normal, na segunda metade do último semestre de 2021 e, alguns recicladores entenderam manifestar-se contra os critérios e os procedimentos”, daí ter sido avançada a providência cautelar, mas Pedro Nazareth diz que este processo em primeira instância.
“O tribunal disse que foi respeitada a lei, a legalidade dos procedimentos concursais que o Electrão lançou e, portanto, não só já tínhamos o conforto das autoridades regulatórias de ambiente portuguesas – a APA com quem partilhámos todos os elementos – como também de entidades que participam e validam este procedimento”
Ao que i apurou, a AEPSA lembra neste novo processo que, no fluxo de resíduos existe uma componente muito importante de frações perigosas, ou seja, de substâncias que são altamente tóxicas e prejudiciais, em termos de saúde pública e de proteção ambiental. E face a esse cenário devem ser encaminhadas para o destino final ambientalmente adequado, o que não está a ser assegurado parte das entidades gestoras. E garante que não são as empresas licenciadas para tratar a perigosidade destes componentes que estão a receber e, como tal, garante que o sistema integrado de gestão de REEE não está a funcionar corretamente.
E as acusações vão mais longes. Estes resíduos estarão a ser desviados para destinos ilegais ou para fora do país.
Ligações perigosas
A par das falhas neste mercado também a teia de ligações aperta-se em torno de quem está nas entidades gestoras, nas assessorias jurídicas, nos organismos que fiscalizam essas entidades e no centro de decisão política. Um dos casos que já foi noticiado diz respeito à atual Secretária de Estado do Ambiente. Entre 2016 e 2018, enquanto adjunta de Matos Fernandes para a área da economia circular, Inês dos Santos Costa era também sócia da empresa 3Drivers, que faturou milhares em negócios com o Ministério do Ambiente. Ao i, o gabinete da secretária de Estado esclareceu que nunca esteve em situação de incompatibilidade e garantiu nunca ter tido qualquer intervenção em decisões que envolvessem aquela empresa. No entanto, A 3Drivers também prestava serviços a duas das entidades gestoras dos resíduos elétricos e eletrónicos, a Electrão e a ERP Portugal, assim como à Valorcar e Valorpneus, empresas que agora tem de regular e fiscalizar. E as ligações não ficam por aqui. A 3Drivers teve como sócio Pedro Nazareth, atual Diretor-geral da Electrão.
Também o atual Presidente da Agência Portuguesa do Ambiente APA), Nuno Lacasta foi chefe de gabinete do antigo secretário de Estado do Ambiente, José Eduardo Martins. O ex-governante está agora a trabalhar num escritório de advogados e ao que o i apurou tem como cliente a ERP Portugal e Novo Verde, empresas gestoras de resíduos eletrónicos e de embalagens.