Dinheiro Vivo
Secretária de Estado do Ambiente destaca importância de envolver todos, pessoas, empresas, atividades económicas e políticas públicas, na preservação da água. E explica o trabalho transversal que tem sido feito – e que deve continuar. “É importante que esta visão não se esgote com o governo”, frisa a governante.
Um estudo agora revelado mostra que perdemos 20% da disponibilidade de água em duas décadas, consumimos dois Alquevas. E no final do século o Algarve terá metade da água que hoje tem disponível. Os planos em ação são suficientes contra isto?
O estudo que refere é o da avaliação das disponibilidades hídricas, feito pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e por um grupo de peritos, nomeadamente do Técnico, que avaliam quatro cenários de evolução das temperaturas médias e suas consequências no território – em precipitação, mas também nos consumos, do lado da oferta e da procura, porque com a temperatura a subir o consumo de água também tende a aumentar. O ministro até o equiparou, em importância, ao roteiro nacional para a neutralidade carbónica por esse efeito de enquadramento de todas as estratégias de planeamento do recurso água que teremos de fazer. E vai influenciar os planos de gestão de inundação, hidrográficos, as estratégias de beneficiação de rios e ribeiras… todos os planos que cruzam a vertente território com a de preservação e utilização da água. O estudo dá-nos uma ferramenta útil e dinâmica, que está constantemente a ser alimentada e é útil para qualquer tipo de investimento que se pense no território que tenha esta vertente de componente de uso de água vincada no processo produtivo.
Projetos agrícolas, industriais…
Exato, isto permite perceber a que ponto o investimento é sustentável tendo em conta tecnologias atuais ou como precisa de preparar-se para esta evolução, há este lado de prevenção de determinadas atividades económicas.
Será necessário limitar projetos que consomem muita água, virar para a economia circular?
Não se faz essa avaliação, mas não temos de ter receio das palavras planeamento e licenciamento. Este trabalho será muito útil para orientar os serviços para a avaliação nomeadamente na atribuição de licenças – dá-lhe outro tipo de robustez. Por exemplo na avaliação de impacto ambiental e capacidade de modular a ação no terreno de acordo com os cenários.
O poder local está sensibilizado para a importância da mudança?
Tem sido feito um importante trabalho com as autarquias nos planos de adaptação e mitigação de alterações climáticas. E tudo o que temos feito de trabalho a nível da rede hidrográfica, os 1400 km que o ministro refere que têm sido abordados de forma muito integrada, norte a sul, este a oeste, são intervenções que por si próprias já ajudam à mitigação e adaptação. Quando falamos de recuperação de um rio ou ribeira, da conservação da galeria ripícola, de métodos de engenharia natural, de zonas de buffer anticheias, tudo isso contribui para melhor gestão da água e preservação da qualidade. É muito mais fácil detetar efluências indevidas, os “tubinhos marotos”, mas também – e aqui se vê a transversalidade – quando intervimos nisto no território contribuímos para melhorar fluxos ecológicos, quando renaturalizamos uma ribeira ajudados a melhorar qualidade do ar, a diversidade, o controlo de temperatura e mitigação de efeitos de ilha térmica… há uma multiplicação de benefícios que indiretamente acontecem com a proteção do recurso. Inclusive de saúde pública, que também tem impacto económico. As contas certas com o ambiente são um mote nosso, porque há muitas coisas não contabilizadas que superam em muito o que vemos como investimento ou custo num serviço essencial.
Muitas empresas estão a trabalhar para ser autossustentáveis em energia. Também já olham para a água?
A questão do fecho de ciclo industrial da água está já no radar de muitas empresas, é muito visível por exemplo no têxtil – durante muitos anos sabíamos a cor da moda ao ver a cor do rio; hoje temos as empresas da área a trabalhar novos métodos, a inovar na tinturaria, a usar pigmentos naturais, a eliminar o uso de água no circuito com novas tecnologias para tingir tecidos. Tudo isto reduz substancialmente a utilização de água. Temos investimentos a norte, por exemplo, em Nelas, em que já se usa o sistema de circulação (Circulação Urbana de Água -CUA) para fazer tratamento das águas residuais tornando-as reutilizáveis industrialmente. Cada vez mais as empresas sabem que reduzir a sua pegada hídrica também reduz o consumo de energia. Água/tratamento/energia têm um nexo muito forte, por isso quanto mais procurarmos simbioses industriais mais poupamos. E as indústrias estão crescentemente conscientes disso e querem tornar-se mais eficientes no uso de recursos.
Que investimento está a ser feito para melhorar a gestão dos nossos recursos hídricos?
Quando falamos de água, temos uma visão integrada. É o elemento mais circular que existe: a água é sempre a mesma, hoje, ontem e amanhã; temos de ter essa abordagem integrada ao ciclo da água. E vemos isso nas nossas políticas de ambiente como um dos elos entre descarbonização, valorização de território e economia circular – que se espelha em termos de CUA, Recurso Hídrico e Litoral. Tentamos emular essa abordagem em todos os planos. A nível do CUA, é inegável o nosso esforço nos últimos 30 anos: mais de 13 mil milhões foram investidos, permitindo uma enorme evolução. Por exemplo, em 1993, tínhamos 630 casos de hepatite A ligados a problemas de abastecimento de água, hoje são zero; tínhamos 28% de rede de saneamento, hoje temos 84,4%. O salto que demos em três décadas foi brutal e obviamente com grande apoio europeu, grande esforço nacional e também municipal. Este ciclo que finda agora foi de 560 milhões, de que executámos 72% (no CUA) e vamos ultrapassar esse montante, algo na ordem de 680 milhões. Certo é que já são muitos ciclos de investimento europeu dedicados ao CUA e há muita incerteza sobre se haverá mais. Agora temos de pegar no que fizemos na infraestrutura, qualidade de serviço e bem-estar dos cidadãos e manter, reforçar, aperfeiçoar, monitorizar a infraestrutura. Acredito que o próximo ciclo comunitário será sobretudo apostado na digitalização do setor, na ajuda à manutenção e redução de algumas perdas que ainda existem – e que é uma questão particularmente séria. No Pensaarp (Plano Estratégico para o Abastecimento de Água e Gestão de Águas Residuais e Pluviais 2030), fez-se uma avaliação de quais seriam as necessidades a dez anos do setor da água e eram cerca de 5 mil milhões. Neste momento os municípios têm de planear muito bem as suas intervenções no terreno aproveitando este novo ciclo para planear as intervenções e tornar o sistema cada vez mais eficaz.
E há fundos do Orçamento Plurianual e do PRR a ajudar?
Exatamente. Por exemplo, no CUA tivemos 560 milhões do Programa Operacional Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos (POSEUR), 35 do REACT (fundos de coesão) muito focados no saneamento e cerca de 80 milhões dos 200 previstos no PRR específico do Algarve, alocados a melhorias de eficiência e redução de perdas, monitorização da rede e digitalização. Porque qualquer região com grande potencial de escassez de água tem de trabalhar a oferta mas também a procura. A eficiência da utilização no território é fundamental, sobretudo quando a redução da oferta é gritante, como se vê nos estudos de disponibilidades hídricas.
A agricultura tem também um papel. Já há essa sensibilidade?
É inegável que é esse setor o maior consumidor de água no país: são 73% do consumo.
Mas se há seca…
Lá está, voltamos ao mesmo, se as temperaturas sobem, o consumo tende a subir também. Mas a agricultura está a dar importantes passos na concretização no terreno das necessidades em termos de monitorização de consumos, aplicação da melhor tecnologia disponível e melhorias substanciais de eficiência. Qualquer agricultor que faz um investimento tem de ter consciência da situação. Ainda nesta quinta-feira foi aprovada em Conselho de Ministros a Estratégia Nacional Para os Efluentes Agropecuários, que é um exemplo gritante da boa articulação entre ministérios do Ambiente e da Agricultura. O primeiro tomo foca-se nos efluentes de pecuária intensiva e quer a Agricultura quer o Ambiente, desde primeiro momento, estabeleceram o objetivo de proteger as nossas águas. A Agricultura entendeu o seu papel, dialogámos e trabalhámos juntos para perceber como melhor agir, sabendo que estamos a falar de uma atividade económica que tem particular relevância na qualidade dessas massas de água. E já está no terreno – fizemos a revisão da portaria, temos ferramentas de traceamento de efluentes, um mapa georreferenciado com as áreas do país em que existem zonas sensíveis para um produtor saber onde pode fazer valorização agrícola dos seus efluentes, temos uma hierarquia de tecnologias associadas à valorização desse efluente (extração de nutrientes para outras indústrias, por exemplo). E houve uma coisa notável: a agricultura teve um aviso aberto para apoiar a valorização desses efluentes e a procura dobrou a oferta, foram 40 milhões, algo inédito. Tivemos também o Plano Nacional de Fiscalização e Inspeção Ambiental (PNFIA), que teve particular ação nas suiniculturas e isso levou a notícias sobre ações no terreno do Serviço de Proteção da Natureza e Ambiente (SEPNA), da DGMAOT, da APA e da agricultura… Portanto, podemos ter uma relação virtuosa entre áreas governativas. O que queremos agora é continuar esta boa relação e a seguir ao tomo um vamos tratar do bagaço de azeitona – e já estamos a trabalhar com a Agricultura nesse sentido, a auscultar tecnologia, a falar com interessados em explorar esse recurso como matéria-prima. É desta forma que vamos conseguindo andar: formando e informando as pessoas no terreno. Neste trabalho do NAPAI, fizemos workshops no terreno e levámos tecnologia aos produtores, e recebemos imensos contactos a agradecer porque não conheciam aquelas soluções, até bastante razoáveis em termos de investimento, que permitem resolver problemas de anos.
E também ouviram aos agricultores ideias inovadoras?
E também ouviram aos agricultores ideias inovadoras?
O meu background é trabalhar a simbiose industrial em economia circular, portanto a utilização desse tipo de efluentes como matéria-prima para outras indústrias é algo com que lido diariamente. Mas foi engraçado ver estratégias de fora que empresas nacionais já têm: por exemplo usar efluentes de agroindústria para produzir nomeadamente para proteína vegetal que alimenta e o calor que produz microalgas que, secas, se transformam em ração… ou seja, já existe essa movida nacional muito interessante, com projetos integrados. Temos um lagar e pode-se adicionar outro tipo de estruturas/empresas/negócio que utiliza os efluentes dessa unidade ali no local, sem transportar meios. E depois é possível gerar mini-ecossistemas associados a um produtor âncora, que se multiplica em pequenas unidades que podem extrair produtos de elevado valor acrescentado no local, empregando pessoas, valorizando território, etc. Já há essa movida no país e o potencial é muito interessante. Financiámos com a EDIA o projeto URSA (de agricultura circular), em que se criou essa dinâmica com os agricultores do Alqueva: no final das colheitas, os restolhos vão para uma unidade de compostagem na EDIA e devolve-se o composto aos agricultores gratuitamente para substituir fertilizantes. A ideia é replicar este tipo de abordagens noutras áreas, como a compostagem comunitária dos biorresíduos – lá está a transversalidade destas temáticas, que se multiplicam ao longo de outros sistemas de valor.
O Tejo continua a ser uma preocupação. Há intervenções planeadas?
Tivemos uma intervenção de despoluição com abordagem inovadora, liderada pela Águas de Portugal (AdP), e que pode ser exportada, o que é interessante; mas também reforçámos redes de monitorização dinâmica e interativa, estamos constantemente a controlar como correm as coisas a nível do Tejo e assim também o cumprimento da Convenção de Albufeira. E ela tem sido cumprida. Podemos discutir se os regimes são melhores ou piores, mas tem sido cumprida. A questão é que não podemos olhar só o nosso território, ver como unidades isoladas e independentes os nossos problemas de escassez – também Espanha os vai enfrentar. Aliás, nós per capita consumimos mais água do que Espanha. E se ponderamos bem as questões dos dois lados, se calhar saímos pior na fotografia. Ainda há pouco houve o evento de bloom das algas com efeitos na qualidade das águas, e isto reflete-se na tal abordagem integrada CUA, Litoral e Recursos Hídricos: não podemos estar sempre a apontar o dedo e não saber arrumar a nossa casa. Temos de ser mais eficazes na forma como atuamos, quer no CUA quer no território, em termos de recuperação da rede hidrográfica. E a adesão das pessoas, os esforços de todos, tudo isso que se tem feito tem ajudado a tornar as pessoas mais conscientes do seu papel. Pessoas e empresas. Mais conscientes da sua responsabilidade na manutenção de um equilíbrio de sistema saudável que traz múltiplos benefícios.
Como se convence as pessoas a gastar menos água?
Cada vez mais há consciência do cidadão de que a água é um bem escasso. A minha mãe, por exemplo, é muito mais sensível a isso do que à poluição do ar, incomoda-se com o desperdício de água. Eu ainda me lembro de ir encher jerricãs para levar ao poço do meu avô! Essa ligação ao passado ajuda e os efeitos das alterações climáticas e seus impactos também.
Mas a água que consumimos é barata?
Temos de dividir esse tema em dois patamares: uma coisa é o custo do recurso, e esse é praticamente zero. O que pagamos são taxas associadas à água que ajudam a financiar a proteção e a resiliência das fontes. Outra coisa é o serviço, as infraestruturas, a energia, o tratamento, os recursos humanos, o transporte, tudo que possibilita a água disponível na torneira. E isso é que os investimentos no CUA influenciam – e vão continuar a ser feitos, porque as redes vão-se deteriorando, precisam de ajustes, intervenções, recursos humanos especializados. Esse custo, à medida que este tipo de apoios se vão esgotando e os serviços têm de funcionar e ser resilientes, tendencialmente sobe. A maneira como se repercute isso na tarifa que o cidadão paga é competência dos municípios. E é importante a digitalização, o controlo, a redução de perdas para tornar essa gestão muito mais sustentável e menos onerosa para o cidadão. É nessa fatia que temos de ponderar muito bem onde é preciso intervenções, como se repercutem e como se explicam. E essa fase da informação muitas vezes falha.
Se a água for mais cara, as pessoas gastam menos. Isso pode ser uma estratégia?
Em situações em que temos claramente escassez e vai piorar, é muito difícil não falar em repercutir essa escassez no valor do recurso. Mas isso é válido não só na tarifa municipal, é transversal. Não é só a questão do que a pessoa paga mas do que é o valor da água enquanto matéria-prima para uma atividade económica , seja turismo, agricultura, indústria pesada, o que for. A verdade é que tudo aponta que vamos ter menos água. Não fazer repercutir essa tendência de escassez no valor do recurso é uma abordagem errada. Porque isso contribui para que se tenha outro incentivo para atuar nos sistemas de produção, consumo doméstico, agrícola, de forma a sermos mais eficientes.
O governo alocou 180 milhões ao litoral. Um dos projetos passa por pôr um milhão de metros cúbicos de areia nas praias da Costa de Caparica e São João…
Perdemos 13km2 de costa em 50 anos. Em todas as intervenções que temos feito temos de pensar que estamos a pagar uma renda ao mar. O trabalho que desenvolvemos em termos de proteção do litoral tem sido feito com pensamento estratégico: onde é preciso intervir com obras de engenharia pesada, fá-lo-emos, mas temos de saber aproveitar o ecossistema, a hidrodinâmica da nossa costa, em nosso benefício. Daí a questão dos shots de areia na Caparica.
Mas não estamos sempre a fazer o mesmo?
Mas fazemos cada vez menos. Temos duas ferramentas essenciais: o Cosmo, que nos dá todo o balanço hidrodinâmico da costa, e o Quimera, que nos dá todas as bolsas de recursos disponíveis – areia para fazer essas intervenções. E é uma combinação das duas que nos permite saber onde devemos depositar areia para que a hidrodinâmica costeira permita alimentar naturalmente a nossa costa. Com esses dois programas e monitorizando as intervenções no tempo, podemos hoje dizer que é cada vez menos quantidade e menos frequente essa intervenção. Isto é acoplado a outro tipo de intervenções: proteção de dunas, intervenções de restauro de linhas de proteção, até replantações. Falamos do Pinhal de Leiria e as pessoas associam-no à produção de madeira para as caravelas, mas originalmente ele foi plantado para criar uma barreira que impedisse a entrada de areia nos campos agrícolas, é uma barreira de proteção costeira. Lá está de novo a transversalidade. E é importante isto: onde não é necessário obras de engenharia pesada, vamos apostar na engenharia natural.
Como é que se liga a água com novas formas de renováveis, incluindo painéis solares em albufeiras?
A AdP foi a primeira entidade europeia a apresentar um plano de neutralidade energética, trabalhando na redução de necessidades por um lado e explorando por outro nas suas infraestruturas desperdícios estruturais, por exemplo, para aplicar painéis fotovoltaicos. Há um projeto muito interessante em teste, de turbinas que aproveitem as quedas de água na distribuição para gerar energia. Nas albufeiras foi isso: utilizar área que pode considerar-se desperdício estrutural. Claro que a APA fez um trabalho importante de cruzar todas as utilizações das albufeiras – porque há o recreio, as tomadas de água para combate a fogos, que exigem corredores bem definidos, etc. – e com todas as cautelas para ter a certeza de que chegava a um negativo de áreas muito concretas, especificas, dentro das selecionadas para aproveitar isso. E depois temos o fator de ensombramento, etc., que geram benefícios associados. E conseguiu-se essa combinação muito feliz. Que surjam mais destas. Por exemplo, uma área muito interessante que tenho visto lá fora é o uso dos canais de rega para colocar painéis fotovoltaicos e produzir energia para motores, pivôs e afins. São áreas muito interessantes, que devem ser estudadas e são menos intrusivas no território.
Estas políticas terão continuidade?
É importante que esta visão não se esgote com o governo. Quando entrámos para o gabinete na legislatura anterior, tivemos esta visão de combinar as três vertentes o mais possível e torná-las transversais às políticas do governo. Anos mais tarde, o European Green Deal acaba por concretizar esse trio em políticas europeias – portanto Portugal até tomou essa dianteira de ter essa abordagem às políticas públicas todas, verdadeiramente transversal. É o caminho que estamos a fazer, que a Europa está a fazer, e que terá de continuar a ser feito, porque cada vez mais se não cuidarmos da nossa base, do nosso sistema natural e último fornecedor por excelência de toda a atividade económica e social, aos limites que existem, inovar nos comportamentos, tecnologia, regulação, não conseguimos preservar o sistema. Temos de continuar este trabalho, que não é fácil nem glamoroso, é muito de bastidores, de diálogo e interação com todos os outros ministérios. É trabalho de formiguinha.