Água & Ambiente
Há 715 milhões de euros para apoiar a descarbonização da industria ate 2025, mas este é ainda um valor insuficiente e um prazo demasiado curto para uma verdadeira transformação. medidas mais disruptivas só avançam a médio prazo
A descarbonização da indústria é um objetivo central do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que destina 715 milhões de euros, até 2025, a projetos nesta área. Entre as iniciativas passíveis de apoio estão a eletrificação, a incorporação de energias renováveis e combustíveis alternativos ou a promoção de simbioses industriais e medidas de economia circular. Cerca de 22% das emissões nacionais têm origem na indústria, refere o PRR. Segundo o último inventário nacional de emissões, as indústrias transformadoras e de construção foram responsáveis, em 2019, por 7.85 Mt de emissões de gases com efeito de estufa (GEE). A categoria de minerais não metálicos — que abrange as indústrias do cimento, vidro e cerâmica – foi responsável por um terço destas emissões (2,66 Mt, 33,9%). A indústria papeleira (1.42 Ml, 18,1%), química (1.34 Mt, 17.1%) e do ferro e aço (0.09 Mt, 1.2%) têm também contributos relevantes. O jornal Agua&Ambiente contactou as associações industriais destes subsetores para saber que medidas de descarbonização poderão avançar até 2025 e qual o impacto expectável dos apoios disponíveis. Todas estas indústrias garantem já ter dado passos relevantes rumo à descarbonização e a maioria também já identificou ações para promover a transição nos próximos anos (ver caixa). Apoios insuficientes No entanto, se os apoios financeiros são bem-vindos, várias associações salientam que não são nem suficientes nem adequados ao ciclo temporal dos investimentos necessários. “De um orçamento de mais de 3 mil milhões de euros que o PRR alocou à transição climática, apenas 715 milhões de euros se destinam à descarbonização da indústria, o que parece manifestamente insuficiente, dados os desafios que a indústria nacional tem pela frente neste capítulo”, critica a AIMMAP – Associação dos Industriais Metalúrgicos, Metalomecânicos e afins de Portugal. Uma crítica subscrita peia CELPA – Associação da Indústria Papeleira: “Temos neste PRR um claro pendor de financiamento do Estado em detrimento da Economia”. “As grandes empresas, geradoras de inovação, com forte poder de arrasto no desenvolvimento da economia e das empresas, motores de exportações, são deixadas de fora de grande parte das iniciativas”, apontam. Já a AIVE – Associação dos Industriais de Vidro de Embalagem nota que os apoios não se adequam ao setor que representam. Desde logo, porque “não são destinados a grandes empresas e não estão adequados á dimensão têmpora) dos ciclos de investimento nos fornos (8 a 1 2 anos), altura em que as melhorias na eficiência energética são potenciadas”, diz a associação. Por outro lado, não estão “alinhados com projetos experimentais”, nem preveem o financiamento “de custos operacionais acrescidos, resultantes da transição energética”. Outras indústrias realçam que este é apenas o primeiro passo de muitos rumo à descarbonização. “Os apoios disponibilizados, no âmbito do PRR serão de extrema importância, mas não serão suficientes, seja pela quantidade de fundos disponibilizados, seja pelo prazo em que as medidas terão de estar implementadas”, sublinha a APICER – Associação Portuguesa das Indústrias de Cerâmica e de Cristalaria. Até porque “só após 2025 é que muitas das tecnologias necessárias estarão disponíveis” recorda a associação. “Serão necessários grandes investimentos e infraestruturas adequadas para a implementação e operação de futuras tecnologias”, salienta Luís Fernandes, CEO da Cimpor Portugal e Cabo Verde. Só na cadeia de valor do cimento e do betão, estima a ATIC – Associação Técnica da Indústria de Cimento, que tenham de ser realizados investimentos na ordem dos 500M€ até 2030. Por outro lado, se os apoios do PRR surgem “no momento certo para alavancar esta transição”, tudo vai depender ainda “da forma como forem desenhados e disponibilizados”, acrescenta Carta Pedro, da Associação Portuguesa da Química, Petroquímica e Refinação {APQuímica). A componente burocrática do PRR preocupa a indústria, até porque 2025 é já amanhã. Várias indústrias alertam para a necessidade de processos de licenciamento dos projetos mais céleres e menos burocráticos. A implementação de “um sistema de apoios robusto e desburocratizado” acautela também a competitividade da indústria nacional, acrescenta a AIMMAP, Até porque, no âmbito do pacote de recuperação da União Europeia para apoiar os estados membros atingidos pela pandemia COVID-19. “os restantes países europeus, com os quais Portugal compete no plano industrial, irão beneficiar de apoios semelhantes para as mesmas prioridades, na maioria dos casos em muito maior escala”, sublinha Carla Pedro, diretora-geral da APQuímica. Medidas disruptivas só na próxima década Apoios à parte, a fatia de leão do processo de descarbonização da indústria só deverá avançar a partir de 2030, quando se espera que as tecnologias mais disruptivas possam ter atingido a escala comercial, Mesmo a eletrificação de processos ou a utilização de hidrogénio verde não fazem ainda parte dos planos de muitas empresas para o horizonte imediato. Para isso, é não só necessário que estas opções estejam efetivamente disponíveis e a preços competitivos, mas também que as tecnologias de produção sejam adaptadas e testadas. “O peso da energia nos custos globais é de 20 a 35%, e pode atingir os 40 a 50% na cerâmica estrutural, e o hidrogénio não é custo efica2 nem Melhor Técnica Disponível (MTD), ilustra a APICER. “Mesmo a sua incorporação com gás natural necessita ser desenvolvida e testada”, adianta. Assim, será também necessário que se apoiem projetos de investigação e desenvolvimento ou de demonstração de tecnologias que vão preparando o terreno para a década que se segue. Em paralelo, deverá avançar o “desenvolvimento e construção de infraestruturas devidamente dimensionadas para as necessidades de energia elétrica renovável e para a estratégia do hidrogénio”, refere a ATIC. Já a indústria metalúrgica e metalomecânica alerta que o enquadramento legal do autoconsumo tem de ser simplificado para facilitar a “massificação”, enquanto a indústria química refere que a criação de comunidades de energia renovável ainda não está adaptada a projetos de âmbito industrial. Em muitos casos, a descarbonização da industria está também dependente de outros setores. A indústria de vidro de embalagem está disponível para integrar mais casco reciclado no seu processo produtivo, mas para isso, é necessário que a recolha de resíduos de embalagens de vidro acompanhe esta evolução. Já as cimenteiras estão recetivas a usar combustíveis alternativos derivados de resíduos com um conteúdo elevado em biomassa, mas será necessário garantir “o acesso a quantidades adequadas”, o que poderá implicar a adoção de politicas que minimizem a deposição de resíduos em aterro. —–
O desafio da descarbonização indústria a indústria
Indústria cerâmica e cristalaria Nas indústrias cerâmica e da cristalaria, as emissões de C02 estão associadas à utilização de combustíveis fósseis (75 a 90%) em fornos, secadores, atomizadores, arcas de recozimento e caldeiras, ao recurso a matérias-primas e alguns aditivos, como o calcário ou dolomite que são carbonatos, e. numa escala residual, ao tratamento de gases poluentes de fim de linha, esclarece a APICER – Associação Portuguesa das Indústrias de Cerâmica e de Cristalaria. Até 2025, as medidas a desenvolver para a descarbonização do setor assentam em quatro eixos – eficiência energética, eficiência de processos, energias renováveis e economia circular/ecodesign – e podem incluir, por exemplo, o isolamento térmico de condutas e equipamentos térmicos, o uso de fundentes para promover temperaturas de fusão mais baixas, a utilização de sistemas automáticos de controlo dos secadores e fornos ou o recurso a energias renováveis. A estimativa da indústria é que seriam necessários cerca de 15% dos 715 milhões disponíveis para as implementar. Estes dois setores “irão reger-se pelas medidas de descarbonização existentes e disponíveis, que se coadunem com as suas caraterísticas”, e que “não sejam demasiado onerosas para as empresas”, esclarece a associação. As medidas mais disruptivas terão de avançar num prazo mais alargado: “muitos dos desenvolvimentos necessários serão demorados e só após 2025 é que muitas das tecnologias necessárias estarão disponíveis”. No caso do hidrogénio verde, para além de ter de haver produção e distribuição, falta também adaptar e testar os equipamentos industriais, para que não haja alterações no produto final. Quanto à eletrificação, há limitações técnicas a ter em conta, como a necessidade “de atmosferas oxidantes para a produção de alguns produtos cerâmicas, só conseguidas com combustão”. Além disso, o uso de fornos elétricos “não é viável para alguns setores ou não é custo-efícaz”, resume a APICER. Indústria cimenteira A ATIC – Associação Técnica da Industria de Cimento já apresentou, em março deste ano, um roteiro para atingir a neutralidade carbónica em 2050, tendo sido estimados investimentos, só na cadeia de valor do cimento e do betão, na ordem dos 500 milhões de euros até 2030. Até final da década, é esperada uma redução das emissões de CO2, face a 1 990, de cerca de 48% (404 kg C02/t cimento) ao longo de toda a cadeia de valor. Mas só através de tecnologias mais disruptivas é que se espera, a médio prazo, atingir a descarbonização. “Cerca de 2/3 das emissões de C02 derivam do processo de fabrico e da transformação do calcário em clínquer, o elemento base do cimento”, explica Luís Fernandes, CEO da CIMPOR Portugal e Cabo Verde. Mas aqui existe uma “margem escassa de diminuição quando considerados os meios convencionais”. Por isso, “os esforços para descarbonizar totalmente o setor dependerão fortemente da captura de carbono na fábrica de cimento e da sua subsequente utilização e armazenamento” (tecnologia CCUS), sublinha. Ora, só a partir de 2030 se concretizará “a entrada progressiva e acelerada de tecnologias de rutura que já existem hoje em pilotos industriais, mas que ainda não são economicamente viáveis à escala industrial, como as tecnologias CCUS, eletrificação parcial do processo e uso massivo do hidrogénio”, acrescenta Otmar Hubscher, CEO da Secil. Até ao final desta década, “a indústria apostará na maximização das tecnologias de ponta atualmente disponíveis e economicamente viáveis”. O conjunto de medidas surge elencado no roteiro, organizado em cinco áreas de atuação, seguindo a abordagem dos “5C”: Clínquer, Cimento, Betão (Concrete, em inglês), Construção e (re)Carbonatação. Assim, na produção de clínquer, prevê-se, por exemplo, a utilização de matérias-primas descarbonatadas ou a utilização de biomassa enquanto combustível. A eficiência elétrica ou o recurso a eletricidade renovável são ações a implementar na produção de cimento. Em geral, o caminho futuro passa por promover uma menor incorporação de calcário no clínquer, menor incorporação de clínquer no cimento, menor incorporação do cimento no betão e menor incorporação de betão nas estruturas e infraestruturas em betão. Perspetiva-se ainda mais circularidade, por via da reciclagem do betão de resíduos de construção e demolição para ser usado como matéria-prima na produção de cimento, entre outras medidas. Indústria metalúrgica e metalomecânica Segundo a AIMMAP – Associação dos Industriais Metalúrgicos, Metalomecânicos e Afins de Portugal, as empresas do setor têm já tomado medidas para contribuir para o cumprimento das metas de descarbonização como o “recurso crescente a fontes de energia renováveis, desenvolvimento de processos mais eficientes e menos poluentes e implementação de práticas que promovem maior circularidade”. No entanto, identificam outras oportunidades, nomeadamente no âmbito da economia circular, que não têm sido plenamente exploradas, e colocam a temática da desclassificação de resíduos no topo da agenda. “Têm sido desenvolvidas técnicas suscetíveis de reciclagem e reutilização dos resíduos como verdadeiras matérias-primas que são”, adianta a associação. “Mas para que esse caminho seja um caminho de transformação efetivo, é indispensável que o Estado português acompanhe esta evolução e consagre a desclassificação de muitos resíduos para que as empresas possam verdadeiramente apostar em processos produtivos mais circulares”, acrescenta. As empresas do setor reivindicam ainda “uma simplificação do processo do autoconsumo que permita a sua massificação”. “Todas as empresas independentemente da área de especialização ou da sua dimensão, são de enorme importância para a economia nacional e devem ser incentivadas e apoiadas para também terem o seu autoconsumo, individual ou coletivo”, argumentam. Indústria papeleira Nos últimos dez anos, a indústria papeleira investiu mais de 117 milhões em ações e tecnologias de proteção ambiental, refere a CELPA – Associação da Indústria Papeleira, e reduziu as emissões de gases com efeito de estufa (GEE) em 23% por tonelada de pasta, papel e cartão produzida. Os investimentos futuros para a descarbonização da indústria portuguesa de pasta, papel e cartão, já estão identificados e surgem enquadrados em quatro linhas de ação: redução de emissões de carbono fóssil; aumento da eficiência energética e eletrificação dos consumos; implementação da estratégia de biorresíduos; e da estratégia nacional para o hidrogénio e gases renováveis. Entre as ações previstas, incluem-se a instalação de novas caldeiras a biomassa, a substituição de equipamentos por outros menos eletro-consumidores, assim como a eletrificação de equipamentos que atualmente utilizam combustíveis fósseis. A substituição de combustíveis fósseis por alternativas renováveis (biomassa, hidrogénio ou fotovoltaico) já está na agenda. Para promover uma indústria mais circular, prevê-se a valorização material de resíduos do processo de fabrico ou a reutilização de resíduos no próprio processo; a reciclagem ou recirculação de efluentes, para minimizar o consumo de água; e ainda a produção de fertilizantes e composto a partir de resíduos. As iniciativas identificadas pelas empresas associadas da CELPA envolvem um investimento total de 400 milhões de euros para assegurar a redução de 408.683 toneladas de C02 até 2025. Todas elas integram já os planos de descarbonização das empresas e algumas estão já em fase de execução. No entanto, adianta a CELPA, “para o desenvolvimento de alguns destes projetos será necessário que existam linhas consistentes de apoio ao investimento, bem como um esforço de simplificação da regulamentação e redução da burocracia associada”. Indústria química As emissões de GEE da indústria química resultam não apenas dos seus processos industriais, mas também do consumo de energia não renovável: “o setor é um dos principais consumidores nacionais de energia elétrica e térmica”, observa Carla Pedro, diretora-geral da Associação Portuguesa da Química, Petroquimica e Refinação (APQuímica). A indústria já fez “um primeiro levantamento” de medidas, incluindo, desde logo, ações de eficiência energética e descarbonização do processo produtivo, “muitas das quais com potencial para avançar já a curto prazo”. A associação destaca também projetos industriais, alguns dos quais já em curso ou em fase de conceção ou análise, para a valorização económica do C02. Está igualmente prevista a substituição de consumos energéticos assentes em fontes de energia fóssil por fontes renováveis, nomeadamente através da produção local de energia solar ou eólica para autoconsumo individual ou no âmbito de Comunidades de Energia Renovável em áreas industriais. O hidrogénio verde está também nos planos para a descarbonização da indústria química, quer enquanto vetor energético (como alternativa à eletrificação), quer enquanto matéria-prima para novos produtos. Mas aqui há que avançar a ritmos diferentes. “Dependendo das condições de partida, a produção de hidrogénio verde em si terá condições para avançar num horizonte temporal mais curto, enquanto que os projetos industriais que lhe poderão estar associados terão naturalmente tempos de concretização mais longos”, observa Carla Pedro. A indústria química sublinha ainda “algumas indefinições” na frente regulamentar, que “poderão inviabilizar a concretização de alguns projetos” a curto prazo. Desde logo “o não ajustamento do atual regime legal” de autoconsumo coletivo ao desenvolvimento de comunidades de energia renovável de índole industrial, que “apresentam situações de partida e características muito distintas de outros tipos de autoconsumo”. Indústria de vidro de embalagem O processo produtivo de embalagens de vidro envolve um consumo intensivo de energia, estando as emissões de C02 desta indústria associadas à utilização de gás natural como combustível no processo de fusão do vidro (mais de 70%), à utilização de carbonatos e outras matérias-primas com carbono no leito de fusão (20 a 30%), assim como utilização de eletricidade produzida a partir de fontes não renováveis (carbono indireto), esclarece a AIVE – Associação Dos Industriais De Vidro De Embalagem. A descarbonização deste setor industrial passa então por atuar, na vertente das matérias-primas, através de uma maior incorporação de resíduos de embalagens de vidro (casco) no processo produtivo; e na vertente energética, por via da substituição da utilização de energia fóssil por energia de fontes renováveis. Contudo, “a disponibilidade de casco para reciclar está muito aquém das necessidades do setor e a disponibilidade existente de energia elétrica e o seu elevado custo, não tornam esta opção viável para um uso intensivo”, adianta a associação. Quanto à utilização de hidrogénio, para que tal seja uma realidade, “é necessário que a produção e distribuição de hidrogénio seja feita à escala industrial e a preços competitivos”. No plano energético, a associação propõe assim o apoio no processo de produção de energia renovável, bem como no seu armazenamento e distribuição, facilitando “uma adaptação rumo à eletrificação”. Por outro lado, defende que tem de haver investimentos em zonas cluster para a produção e distribuição de hidrogénio, que numa primeira fase, deverá ser misturado com gás natural “pois não exige transformação tecnológica significativa dos fornos”. A indústria vê também oportunidades de “substituição parcial” do gás natural por bíocombustiveis, que está igualmente dependente da promoção da sua produção e distribuição. Já no que respeita às matérias-primas, para facilitar o aumento da disponibilidade de casco reciclado, a indústria defende investimentos na rede de recolha de embalagens, “principalmente no canal HORECA, assegurando equipamentos mais adequados”.