Expresso
É provável que o seu ultimo smartphone ou frigorifico sejam parte de um problema ambiental, social e económico à escala global. Portugal ainda não sabe gerir o lixo eletrónico – mas o governo promete uma nova estratégia ate ao final do ano.
O Agbogbloshie é um antigo pântano no coração de Acra, capital do Gana, transformado numa das maiores lixeiras eletrónicas do mundo. Há cinco anos, a banda britânica Placebo gravou um vídeo no exato local onde todos os dias jovens e crianças esmagam e queimam equipamentos eletrónicos para obter os metais que estes contêm. No fim, a mensagem do vídeo era simples — “quando te livras do teu telemóvel, computador ou eletrodoméstico, [esses restos] vão muitas vezes numa viagem até Agbogbloshie” —, mas insuficiente para descrever a tragédia ambiental e social em curso naquele país. A situação não melhorou desde então: a Europa continua a enviar toneladas e toneladas de lixo eletrónico, carregado de metais pesados e outras substâncias tóxicas, para Agbogbloshie e para outras lixeiras a céu aberto em países em desenvolvimento. “Os resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos [REEE] são o fluxo de resíduos com crescimento mais rápido em todo o mundo”, começa por explicar ao Expresso Elsa Agante, team leader de Energia e Sustentabilidade da Deco Proteste. O último relatório “The Global E-waste Monitor”, publicado no ano passado, prevê que em 2030 os REEE totalizem cerca de 74 milhões de toneladas em todo o mundo. Segundo o Eurostat, em 2011 foram colocadas à venda no mercado europeu 7,6 milhões de toneladas de equipamentos elétricos e eletrónicos; em 2018, foram 8,7 milhões de toneladas em produtos novos. E o que aconteceu aos antigos, velhos, em fim de vida? Em 2018, 4 milhões de toneladas foram recolhidas (mais 30% do que em 2011), 3,9 milhões foram tratadas (mais 19,5%), 3,6 milhões foram recuperadas (mais 30,3%) e 3,2 foram recicladas e preparadas para voltarem a ser usadas (mais 26,2%). Estes aumentos não chegam para acompanhar o ritmo do consumismo atual — e as marcas têm culpa. “Há equipamentos que se avariam antes do tempo considerado usual em termos de vida útil e que não têm possibilidade de reparação por ausência de peças ou pelo valor da reparação ser elevado face a um equipamento novo similar”, alerta Elsa Agante, referindo-se a uma prática que já é um conceito: obsolescência prematura. Os dados europeus mostram que apenas cerca de 35 % dos produtos eletrónicos em fim de vida acabam em sistemas oficiais de recolha e reciclagem para serem devidamente tratados de forma a poupar o ambiente. “Os restantes 65% são exportados e reciclados em condições não conformes ou ilegais, enviados para deposição final junto com o lixo comum, ou ficam guardados em casa dos consumidores mesmo já não estando a ser usados”, aponta Elsa Agante. Aliás, o relatório europeu “Countering WEEE Illegal Trade” aponta que, destes 65%, a esmagadora maioria (70%) nem sequer é lixo, mas sim equipamentos eletrónicos que ainda funcionam e, por isso, deveriam ser aproveitados. “Estes equipamentos têm componentes valiosos, como placas de circuito impresso, metais e materiais preciosos. Quando não são recolhidos e reciclados, há uma séria perda de materiais e recursos para as empresas europeias que processam os resíduos em conformidade”, adianta Elsa Agante. O “Countering WEEE Illegal Trade” estima que todos os anos estas empresas percam entre 800 milhões e 1,7 mil milhões de euros. “Face a estes dados, consideramos que tem de ser feito mais no que diz respeito ao controlo da exportação destes resíduos e à exportação de equipamentos que ainda funcionam”, sublinha a especialista da Deco Proteste. Problemas portugueses Entre os 27 Estados-membros da União Europeia, Portugal é dos que menos recolhe equipamentos eletrónicos em fim de vida: apenas 6,8 quilos por habitante em 2017, um número inferior à média europeia de 8,9 quilos. Há vários fatores que explicam o falhanço dos números, a começar pelo não cumprimento da lei: na compra e entrega ao domicílio de um grande eletrodoméstico — como um frigorífico —, a loja é obrigada a recolher o antigo. “Este sistema de troca não está a funcionar da melhor forma. Há várias lojas que não estão a cumprir a legislação”, aponta Elsa Agante. Em maio deste ano, a Deco Proteste publicou um estudo em que eram analisadas as práticas de 34 lojas online, e 14 destas indicaram que não faziam a recolha de equipamentos usados a pedido do cliente ou que só asseguravam essa recolha para determinados produtos ou em certas zonas do país. Além disso, foram sinalizadas três lojas que cobravam pela recolha. Práticas como esta desviam logo à partida os equipamentos dos sistemas oficiais de recolha e reciclagem: os consumidores recorrem quase sempre às autarquias para recolher os produtos antigos, mas na maioria das vezes o procedimento passa por colocá-los junto aos contentores num determinado dia da semana. “O que se verifica é que há operadores ilegais que fazem a sua recolha antecipadamente e, por vezes, até efetuam o desmantelamento ilegal na via pública”, denuncia Elsa Agante, que vai mais longe: “As entidades governamentais terão falhas ao nível da inspeção destes operadores ilegais.” “Os resíduos que não são tratados acabam na atmosfera, no solo e nas águas, por isso só estamos a prejudicar o nosso próprio território”, lamenta Rui Berkemeier, membro da Zero. Um exemplo concreto: os frigoríficos contêm gases nocivos para o ambiente, por isso quando deixam de ser usados têm de ser tratados com métodos específicos — e há poucas empresas no país habilitadas a fazê-lo. “No entanto, a esmagadora maioria dos frigoríficos velhos em Portugal vão para sucateiros, que ficam com a chapa e vendem-na às empresas que trituram metal”, explica ao Expresso o ambientalista. “Propusemos ao Ministério do Ambiente que fiscalizasse essas empresas recetoras para descobrir que sucatas estavam a receber frigoríficos ilegalmente. Mas o Governo disse-nos que não quer fazer isso”, garante. Ao Expresso, o Ministério do Ambiente garante que vai apertar a fiscalização: “É intenção do Governo apostar na fiscalização sistemática deste fluxo, desde a colocação no mercado até à gestão dos REEE e seus componentes, estando previsto o lançamento de uma campanha neste âmbito a anunciar brevemente.” No ano passado, foram realizadas 162 ações de inspeção e fiscalização a operadores de gestão de REEE. Depois das autarquias, entram em jogo as entidades gestoras deste tipo de resíduos — ERP, Electrão e Weeecycle —, que em 2020 recolheram 28 mil toneladas de REEE, apenas 15,4% dos produtos que foram colocados no mercado nos três anos anteriores (182 mil toneladas), segundo dados da Zero. Esta percentagem é bastante mais baixa do que a meta fixada por Bruxelas e acordada entre as entidades e o Governo: 65%. Conclusão: a maioria dos REEE fica por recolher. “Estas entidades gestoras são financiadas através de uma taxa paga pelos produtores de equipamentos, que no total chega atualmente aos 14 milhões de euros”, explica Berkemeier. Mas esse valor não chega: “É como eu dizer que consigo fazer Lisboa-Porto com cinco litros de gasóleo. O Governo sabe que isso é impossível, mas dá-me a licença para fazer a viagem na mesma.” O Ministério do Ambiente diz que está neste momento a criar um novo modelo de licenças para estas entidades gestoras. “Considerando que os termos gerais da redação das novas licenças devem ser amplamente discutidos com os diversos intervenientes de forma a potenciar a eficácia e eficiência das mesmas, foi criado um Grupo de Trabalho [que] terá de apresentar as suas conclusões até ao final do ano”, aponta a tutela. Berkemeier quer que o Governo seja mais exigente com as entidades gestoras, mas lembra que só isso não chega: “Há um problema de falta de meios. Em Portugal, a rede de recolha deste tipo de produtos em fim de vida é muito fraca. Há várias cidades do país que não têm um único ponto de recolha”, finaliza.