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Todos os anos entram no mercado mundial cerca de 1,5 mil milhões de novos telemóveis, que consomem recursos como ouro, cobre, prata, e que cuja produção tem um impacto ambiental enorme. Globalmente desperdiçamos quase 54 mil milhões de toneladas de equipamentos elétricos e eletrónicos – nas quais estão quase 50 mil milhões de euros em matérias-primas -, sendo que apenas 17% destes resíduos entram na economia circular. Portugal está ainda muito atrasado na resolução deste problema ambiental.
A economia mundial está desenhada para usar e deitar fora. Os recursos naturais do planeta estão a ser extraídos até à exaustão e as reservas de muitas matérias-primas estão a chegar ao seu limite. A sustentabilidade do planeta não é apenas um chavão usado nas grandes reuniões de líderes mundiais e tem de começar a ser uma preocupação de todos os consumidores.
O Pacto Ecológico Europeu prevê um compromisso com um consumo mais consciente, e, para isso, todos são chamados a colaborar. “O uso de recursos triplicou desde 1970 e poderá duplicar até 2060 se continuarmos a fazer os negócios da mesma forma. Este sistema está a deixar o planeta à beira do abismo. Está na base da crise climática que contribui para o sofrimento humano”, escreve Frans Van Houten, CEO da Philips e chairman da PACE – Platform for Accelerating the Circular Economy, no site desta organização. Sedeada na Holanda, esta iniciativa nasceu em 2018, pela mão do Fórum Económico Mundial para mobilizar governos e lideranças no sentido da transição para uma economia circular.
Acredita-se que a preocupação das grandes empresas seja genuína, mas a verdade é que pouco ainda foi feito para alterar este modelo de consumismo em que vivemos atualmente. Vejamos: desde 2015 que entram, anualmente, cerca de 1,5 mil milhões de telemóveis e smartphones no mercado mundial. Isto quer dizer que boa parte destes equipamentos vão substituir outros já em uso, contribuindo assim para o aumento significativo do chamado lixo eletrónico (designado de REEE – Resíduos de Equipamentos Elétricos e Eletrónicos). Muitos estão em perfeitas condições de uso, mas muitos utilizadores, atraídos pelos novos lançamentos e pelas novas funcionalidades das marcas, optam por substitui-los antes do seu fim de vida útil.
O mercado global de eletrodomésticos, equipamentos de aquecimento e refrigeração, computadores, telemóveis, e outros equipamentos, ascende a cerca de um bilião de dólares americanos (cerca de 855 mil milhões de euros) e estima-se que continue a crescer a bom ritmo, sobretudo com o acelerar da digitalização das economias impulsionada pela pandemia de covid-19. Uma recomendação do Comité Económico e Social Europeu sobre a economia circular revela que, quando sofrem avarias, apenas 44% destes equipamentos são reparados, descendo esta fasquia para 20% quando estão fora das garantias. Mostra ainda que o ciclo de vida dos eletrodomésticos, que há 20 anos era de dez a 12 anos, se situa agora nos seis a oito anos. Ou seja, quando ouvimos os nossos pais e avós dizer que antigamente tudo durava mais tempo, isto é, de facto, verdade.
Lixo eletrónico, um dos males do século XXI
E porque este consumo desenfreado é um problema global? Segundo dados recolhidos pela PACE, o planeta produz anualmente 54 milhões de toneladas de lixo eletrónico, o tipo de desperdício que mais cresce atualmente, e por esse facto, o que maior preocupação gera. Deste volume apenas 17% é encaminhado para a reutilização ou para reciclagem, deixando sem solução mais de 80% destes resíduos.
São cerca de 50 mil milhões de euros em matérias-primas desperdiçadas, sobretudo ouro, cobre, prata e platina, um valor superior ao PIB de muitos países no mundo. Neles estão presentes também uma série de outros componentes químicos que, não sendo devidamente tratados, contaminam terrenos e provocam problemas de saúde às populações que os recebem. A China é o maior produtor mundial de resíduos elétricos e eletrónicos, com um total de 10,2 milhões de toneladas, seguida dos Estados Unidos com 6,9 milhões de toneladas e da Índia com 3,2 milhões. Na Europa, a Alemanha, o Reino Unido e a França são os maiores produtores de REEE, montante situado entre 1,6 milhões e 1,3 milhões de toneladas. Boa parte destes resíduos são enviados para lixeiras a céu aberto em países como o Gana e a Nigéria, onde milhares de pessoas trabalham informalmente e sem condições de segurança.
Por outro lado, produzir todos estes equipamentos têm, também, um impacto ambiental fortíssimo. Para conceber um computador são necessários 240 quilos de combustíveis fósseis, 22 quilos de compostos químicos sintéticos e cerca de 1.500 litros de água, num total de 1.700 quilos de matérias-primas. O impacto de um novo smartphone não é muito diferente: só para produzir um novo equipamento a pegada de carbono atinge os 85% a 90% das emissões totais de CO2 do mesmo equipamento durante dois anos de uso. Ora, se a média mundial de renovação de smartphones ronda os 20 meses, manter o mesmo equipamento durante mais alguns anos ajudaria a minimizar este problema. Talvez não tenha consciência, mas quase todos os elementos da tabela periódica estão presentes nos componentes de um telemóvel: ouro, prata, cádmio, cobre, estanho, tungsténio, cobalto, silício, fósforo, entre tantos outros.
Se pensarmos em toda a energia gasta na extração destes minérios, na poluição dos ecossistemas associada, e ainda nos combustíveis fósseis utilizados para as partes plásticas e embalagens, conseguimos facilmente perceber o impacto que tem, por exemplo, trocar de modelo cada vez que sai um novo. Se os equipamentos eletrónicos, como portáteis, tablets e smartphones, representavam em 2007 cerca de 1% das emissões totais de carbono, estima-se que, em 2040, esta percentagem atinja já os 14%. Este é um mercado que não tem parado de crescer, embora em 2020, segundo dados da Gartner, tenha decrescido (foram comercializados 1,35 mil milhões de equipamentos) devido à pandemia e à falta de componentes. No entanto, no primeiro trimestre de 2021, as vendas cresceram 26% face ao período homólogo do ano anterior, o que indicia um aumento do desperdício nos próximos anos.
Economia circular é parte da solução, a obsolescência programada não
Por todos estes motivos anteriores, a economia circular é uma exigência que o mundo dos negócios não pode deixar de enfrentar. Este conceito traduz-se num modelo de produção e de consumo que assenta na partilha, no aluguer, na reutilização, na reparação, e na reciclagem dos materiais e produtos, aumentando o ciclo de vida dos produtos e reduzindo o desperdício e resíduos ao mínimo. O atual sistema de produção linear está esgotado, pelo que a transição para a circularidade é uma urgência – infelizmente a taxa de circularidade média (percentagem dos materiais e recursos reintroduzidos na economia) na Europa é ainda de 12%, e a portuguesa está pouco acima dos 2,2%.
Segundo um relatório da Ellen MacArthur Foundation, organização sem fins lucrativos que se dedica a estudar esta temática, são colocadas, anualmente, no sistema produtivo mundial, cerca de 82 mil milhões de toneladas de matérias-primas. Um europeu, por exemplo, consome 43 quilogramas de recursos por dia, um africano cerca de 10. Muitos desses recursos estão a acabar: as reservas de cobre, por exemplo, estarão esgotadas em 2040. Reutilizar cobre processado a partir de lixo eletrónico tem vantagens também ao nível dos recursos energéticos, já que consome muito menos energia processar cobre já extraído do que retirar o minério do solo. Mas, para que esta economia circular seja possível, as empresas produtoras têm de colaborar, e por exemplo, facilitar a recuperação destes elementos nos seus produtos. Estima-se também que uma tonelada de lixo eletrónico contenha muito mais ouro do que uma tonelada de minério de ouro extraído do solo e que cerca de 7% de todo o ouro existente no mundo esteja “armazenado” em equipamentos eletrónicos.
Os princípios de uma economia circular não podem coabitar com a chamada obsolescência programada, uma prática que há muito as organizações de consumidores pedem que seja resolvida Esta consiste em determinar, na fase do design e da produção, o fim de vida útil do produto com o intuito de incentivar a compra de um novo. “A obsolescência programada é muito difícil de comprovar. É preciso conseguir provas que houve má fé e isso não é fácil”, explica Bruno Santos, especialista da Deco Proteste, associação nacional de defesa dos consumidores. Segundo esta organização, o consumidor sente que há certas categorias de produtos, como automóveis e eletrodomésticos, televisores em que as intervenções técnicas de reparação se tornaram mais difíceis, e nalguns casos, de total inacessibilidade. “Sentimos que há estratégias claras de obsolescência programada, com uma progressiva perda de qualidade dos materiais e componentes utilizados”, explica.
A Apple tem sido um dos casos mais falados nesta questão, por desenhar smartphones, tablets e laptops difíceis de reparar ou de atualizar, e os especialistas afirmam que estas são decisões de marketing bem planeadas. Entre 2007 e 2017 a empresa introduziu 14 novos modelos de iPhone, um modelo a cada 37 semanas, e as primeiras gerações passam a ser obsoletas. Em 2018, a AGCM, autoridade da concorrência italiana, impôs multas à Apple e à Samsung por estarem a forçar os clientes a realizar atualizações de software que deixam os seus telemóveis mais lentos. Em finais do ano passado, a Deco Proteste, que faz parte da Euroconsumers, intentou, como os seus congéneres da Itália, Espanha e Bélgica, uma ação judicial para levar o caso a tribunal, alegando obsolescência programada dos equipamentos, prática comercial que lesa os consumidores e o ambiente, pedindo uma indemnização de 60 euros para cada lesado. A Deco Proteste afirma que não quer com isto fazer um boicote à marca, mas sim garantir que esta atue de forma leal.
Pequenos passos na União Europeia, mais pequenos ainda em Portugal
A Comissão Europeia, empenhada em cumprir o Pacto Ecológico Europeu, tem tentado promover a sustentabilidade através do incentivo à reutilização, à reparação e através do combate as estas práticas, mas até agora os resultados obtidos são muito pouco satisfatórios. Anunciou, em março de 2020, um Novo Plano de Ação para a Economia Circular, um dos principais pilares do Pacto Ecológico Europeu, no qual propõe medidas a aplicar ao longo de todo o ciclo de vida do produto. Segundo este plano, as ações serão concentradas em setores que utilizem a maior parte dos recursos e cuja potencialidade para a circularidade seja elevada, como a eletrónica, baterias e veículos, embalagens, plásticos, têxteis, construção de edifícios e alimentos, e será dada prioridade à prevenção da produção de qualquer tipo de resíduos e à sua transformação em recursos secundários de elevada qualidade. A aprovação da medida que impõe um carregador único para smartphones, tablets e outros dispositivos é já um passo positivo para reduzir o consumo de acessórios e, consecutivamente, o lixo eletrónico.
Segundo um inquérito realizado pelo Eurobarómetro, 77% dos cidadãos da União Europeia preferem reparar os seus dispositivos a substituí-los, e 79% consideram que os fabricantes deveriam facilitar a sua reparação. Foi com este objetivo que a Comissão Europeia aprovou já este ano legislação no sentido de obrigar as empresas que vendem produtos elétricos e eletrónicos, como frigoríficos, máquinas de lavar, televisores, a garantir o fornecimento de peças para reparação durante um período de dez anos. Esta é, há muito, uma das reivindicações das associações de consumidores europeias. “Qualidade, durabilidade, e índice de reparabilidade, são questões importantes para satisfazer a expectativa do consumidor. Comprar mais barato não pode significar falta de qualidade ou de não reparabilidade”, explica, a propósito, Bruno Santos. Para a Deco Proteste, o produtor tem de se responsabilizar por todo o ciclo de vida do produto, da fase do desenho ao fim de vida, para que se assim se possa resolver não só a questão da obsolescência programada como o excesso de lixo eletrónico.
Porém, não são apenas os equipamentos tecnológicos que sofrem com a obsolescência programada. “A moda, por exemplo, é uma área que tem também uma forma de obsolescência programada. É o marketing a funcionar e joga com a pressão social. O maior desafio é a mudança de mentalidades. Só percebendo o que se passa é que corrigimos os nossos comportamentos individuais”, afirma Bruno Santos. O setor têxtil é um dos que mais contribui para as emissões de gases com efeito de estufa e que mais desperdício acumula — em média produzimos 13 milhões de toneladas de desperdício têxtil todos os anos e apenas uma pequena parte é reutilizada ou reciclada. A aposta nos princípios da economia circular por parte desta indústria em tudo beneficia a sustentabilidade do planeta. A Patagonia, marca norte-americana de roupa outdoor é um dos bons exemplos nesta área: fez uma inovadora campanha anti-consumo, em 2011, na época do Black Friday, apelando ao consumidor que não comprasse um dos seus blusões mais vendidos, desincentivando a compra do que não for estritamente necessário. A campanha é um case study e a marca é considerada um dos expoentes máximos do capitalismo sustentável. Em Portugal também temos alguns exemplos do que é possível fazer na economia circular, quer na reutilização e recondicionamento de equipamentos móveis, com a marca ForAll Phones, que comercializa telemóveis iPhone usados, e a R-coat, que reutiliza velhos chapéus de chuva para produzir casacos e chapéus. Ricardo Jorge, responsável de marketing da Forall Phones, explica que esta marca tem na sua origem uma componente de responsabilidade social, pois comercializa um produto sustentável só por si, equipamentos que iriam diretamente para o lixo se não lhes fosse dada uma segunda vida. “Esta é uma missão cada vez mais urgente”, diz.
Portugal abaixo das metas na recolha de lixo electrónico
Ricardo Vidal, vogal da direção da Smart Waste Portugal e administrador da Interecycling afirma que, ao nível da recolha de REEE para tratamento e reciclagem “estamos muito aquém das metas europeias, um problema que deveria ser resolvido com um plano de comunicação dinâmico. É preciso voltar a definir uma agenda de trabalho em torno deste tema”. Este responsável refere que estamos a falhar todos os objetivos e que falta mobilização quer da parte dos consumidores quer da parte dos produtores. “Se conseguimos pôr 10 milhões de portugueses a usar máscara, porque não conseguimos que tenham uma atitude responsável também nesta matéria?”, questiona.
A Smart Waste Portugal é uma associação sem fins lucrativos criada em 2015 para potenciar a utilização dos resíduos como um recurso, atuando em toda a cadeia de valor. Tem mais de uma centena de membros, entre os quais empresas deste setor, da indústria, universidades e associações setoriais. “Estamos focados na sustentabilidade e na concretização da Agenda Verde da Comissão Europeia, sobretudo na chamada reindustrialização. Esta é uma excelente oportunidade para as economias maduras se tornarem inovadoras, tendo por base a circularidade, gerando matérias primas secundárias, que serão reintroduzidas na economia”, explica Ricardo Vidal. A empresa que gere, a Interecycling, recolhe diversos tipos de resíduos, incluindo os REEE, e faz a descontaminação e o processamento especializado de componentes, como plásticos, metais e cablagens. “Portugal tem, em média, um consumo de 220 mil toneladas de novos equipamentos elétricos e eletrónicos ao ano. Segundo a diretiva que obriga à recolha de 65% da média dos equipamentos vendidos nos últimos três anos, teríamos de recolher perto de 130 mil toneladas. E não estamos nem sequer próximo disso”, explica este responsável.
A organização ambientalista Zero tem denunciado esta situação e já pediu até ao Governo para cassar licenças às entidades gestoras que não estão a cumprir a sua parte. Segundo as contas feitas por esta associação, em 2020 foi feita uma recolha máxima de 53 mil toneladas de REEE, o que corresponde a uma taxa de recolha de 31% face às 173 mil toneladas de equipamentos comercializadas, ainda que a associação entenda o valor real ronde apenas os 20%. Ou seja, este é um problema que Portugal terá de enfrentar em breve, uma vez que a Comissão Europeia tem o assunto em cima da mesa e a legislação terá mesmo de ser cumprida em função das ambiciosas metas da descarbonização total da economia em 2050.
GANA, A LIXEIRA DO MUNDO
Europa e Estados Unidos enviam toneladas de lixo eletrónico para África, onde ficam em lixeiras a céu aberto a poluir o ambiente e a prejudicar a saúde de milhares de africanos. É junto a Acra, capital do Gana, que se encontra a Agbogbloshie, umas das maiores lixeiras de equipamentos elétricos e eletrónicos do mundo. São centenas e centenas de toneladas de lixo que chegam todos os anos da Europa e da América do Norte e que põem em risco a saúde das populações. Ali, mais de dez mil trabalhadores informais circulam diariamente entre toneladas de lixo eletrónico, carregados de metais pesados, e outras substâncias tóxicas, na esperança de encontrar entre os resíduos metais valiosos e assim completar o orçamento familiar. Num país em que um quarto da população vive abaixo do limiar da pobreza, esta é uma forma de sobrevivência que pode compensar financeiramente, mas acarreta riscos para a saúde. Mercúrio, arsénio, chumbo e cádmio são algumas das substâncias perigosas com que têm de conviver, e que podem conduzir a doenças cancerígenas, entre outras. Ativistas afirmam que uma parte destes resíduos são enviados para este local de forma ilegal, mas a maioria é autorizada. A única forma de acabar com estas montanhas de lixo autorizadas é reduzir a produção e o consumo. Parte dessa responsabilidade reside em todos nós.