Ambiente Magazine
01/08/2021
É engenheiro civil e homem do Norte. Quando recebeu o convite, já sabia qual o “desafio” que tinha pela frente. Já são quase seis anos que João Pedro Matos Fernandes lidera um Ministério “muito completo”, onde se dedica às questões ligadas ao “Ambiente” e às da “Ação Climática”. O percurso ainda é longo e os desafios tendem a ser cada vez mais ambiciosos. Mas, do percurso já feito, são muitos os motivos de orgulho. Foi sobre o passado, o presente e o futuro que esta “Grande Entrevista” se resume, onde, pela primeira vez, tivemos o privilégio de conversar com o atual ministro do Ambiente e da Ação Climática. Licenciado em Engenharia Civil, passou pela Administração dos Portos do Douro e Leixões e do Porto de Viana do Castelo. Foi presidente da Águas do Porto. O que é que levou João Pedro Matos Fernandes a aceitar o desafio de liderar o Ministério do Ambiente e da Ação Climática? Pela surpresa do convite e pela dimensão da tarefa. Já lá vão quase seis anos: na altura, já era um Ministério maior do que teria sido no passado porque aliava as questões do Ambiente e dos transportes coletivos e esta foi uma decisão tomada pelo primeiro-ministro, na qual não participei. E faz todo o sentido: de facto, 25% das emissões em Portugal são fruto do nosso sistema de mobilidade e a melhor forma de garantir uma mobilidade eficiente é colocá-la nas mãos do Ministério do Ambiente, porque tem metas muito claras para cumprir. Com o tempo e com o compromisso da neutralidade carbónica, passamos a ter também a Energia. Se o setor da mobilidade é um setor essencial, o setor eletroprodutor ainda o é mais: no nosso Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050, as duas áreas que têm metas de emissão zero em 2050 são exatamente o setor eletroprodutor e a mobilidade terrestre. Já a parte da “Ação Climática” concentrou num só Ministério os três verbos de Paris “Mitigar, Adaptar e Sequestrar”: visto que o grande sumidouro de carbono em Portugal é de origem florestal, passamos a ter também a gestão da floresta. Atualmente, qual é o maior desafio de um Ministro do Ambiente? O primeiro grande desafio é afirmar que o investimento na sustentabilidade é o que melhor contribuirá para o crescimento da economia, garantindo que esta é completamente diferente da do passado, porque é neutra em carbono, regenera recursos e cabe dentro dos limites do sistema terrestre. É o ambiente a deixar de ser o cenário para ser o ator principal naquilo que é a transformação da sociedade. O outro desafio é o da transformação da paisagem e, consequentemente, do restauro de ecossistemas associados. Temos uma população cada vez mais urbana e mas distante dos valores da ruralidade e um país muito marcado pelo seu passado, onde a população desenvolvia atividades em todo o território e a biodiversidade foi conquistada e completada por aquilo que foi a atividade tradicional agro-silvo-pastoril. E quando não há pessoas para o fazer, não podemos deixar de o fazer. É óbvio que há coisas mais escatológicas como os fogos rurais, mas a riqueza da biodiversidade está muito associada à intervenção do que podemos fazer na paisagem. Quem é ministro há quase seis anos já não tem propriamente necessidade de mostrar muita coisa e de ter “quick wins” como tivemos no passado. Desde que lidera a pasta do Ambiente, que feitos já viu serem concretizados e que tiveram mais impacto na vida dos portugueses? Aquele que teve mais impacto na vida dos portugueses foi o PART (Programa de Apoio à Redução Tarifária nos Transportes), que fez com que os passes em Lisboa, que custavam 150€, passassem a custar 40€. Ou no Porto, de 90€ para 40€. Isso foi uma revolução na criação de condições de base para que as pessoas utilizassem os transportes coletivos. Direi que, enquanto medida de choque, essa foi a mais importante de todas. Agora, nós somos um Ministério com muitas agendas e todas elas, vão trazendo paulatinamente ganhos. Já disse muitas vezes que as preocupações (ambientais) de hoje não são as mesmas de há uns anos. O que é que mudou? Há, claramente, uma segunda geração de políticas ambientais. A primeira é muito de base infraestrutural para resolver problemas básicos das pessoas. Nunca direi que ela pode estar concluída, mas, há 20 anos, só 46% da água da torneira era boa e hoje é 99%. Direi que, aqui, havendo ainda muito para fazer, demos um salto enorme. Hoje, o que é preciso é afirmar esta primazia do investimento na sustentabilidade como grande motor da alteração da economia. Qual deve ser, hoje, a mensagem quando se fala em políticas ambientais? Não podemos construir o futuro com os instrumentos do passado. Isto obriga a uma transformação que vai mexer com todos. A procura por uma economia regeneradora de recursos e neutra em carbono não se faz sem esforço público, das empresas e dos cidadãos. Um cidadão tem também que pensar: “eu não posso levar este produto para casa porque eu não sei o que fazer com esta embalagem”. Não podemos estar à espera que todo o sistema que a autarquia nos monta nos consiga dar um bom destino a todas as embalagens que levamos para casa. Temos de perceber qual é o sistema de transportes coletivos que está à nossa disposição, acompanhar aquilo que é a melhoria dos passeios e as condições para podermos andar de bicicleta, abandonar o automóvel individual. No caso dos automóveis individuais, quando me tornei ministro, só 1% dos veículos que se vendiam em Portugal eram elétricos. No primeiro trimestre deste ano, já eram 16%. As coisas estão a mudar. Queremos também investir na eficiência energética dos nossos edifícios: lançamos o Programa de Apoio a Edifícios Mais Sustentáveis de 4 milhões de euros no passado mês de setembro (2020), pensando que o mesmo ia durar 15 meses. Enganamo-nos completamente: ao fim de quatro meses, dos 4 milhões prometidos, estávamos a investir 9,3 milhões. Abrimos agora a segunda fase do programa – o primeiro projeto do PRR direcionado para os cidadãos, com 30 milhões de euros de investimento na eficiência energética de edifícios. Contamos pagar 20 mil candidaturas e achamos que ele poderia estar aberto até novembro e já recebemos 8 mil candidaturas, ou seja, temos aqui 135 mil milhões e vamos ter que acelerar tudo isto. Como é que define atualmente as políticas ambientais e quais são os seus principais eixos estratégicos? É um conjunto de políticas que têm que encontrar o justo balanço com a redução objetiva das emissões e, com isso, não só temos metas para apresentar, como a redução de 26% das emissões comparado com 2005, ou medidas muito concretas e que se vêm acelerando, como o encerramento da central a carvão de Sines. Uma segunda dimensão é claramente a adaptação, utilizando soluções de base natural na proteção territorial e nas ribeiras. Temos de perceber, de uma vez por todas, que quem tem que se adaptar somos nós. Não é fazer barragens para ter mas água: a água é vida, sim, mas também é vida para todos os ecossistemas. O restauro dos ecossistemas é essencial. A terceira dimensão é a de olhar para a floresta não como um conjunto de árvores, mas como um grande berço da biodiversidade e deixar de olhar para as árvores pelo tronco, isto é, quanto é que vale a madeira. Portugal assumiu o compromisso de ser neutro até 2050. Acredita que esta prioridade se vai manter com os próximos Governos, independente do partido? Estou muito convencido, respeitando aquilo que é a democracia acima de tudo, que há uma pulsão social que não vai permitir andar para trás. Se este foi o Governo que mais conquistas teve, foi. Um Governo diferente do nosso, nesta mesma legislatura, talvez tivesse menos conquistas. Mas algumas teria tido, porque a pulsão social é muito forte. Por isso, é fundamental, em democracia, não deixar ninguém para trás. Vejamos o que foram os “Gilets Jaunes” (“coletes amarelos): é um movimento em França que nasce da existência dum imposto sobre os combustíveis e que gerou uma enorme revolta popular mas, no mesmo dia em que foi concretizado, retira-se o imposto sobre as grandes fortunas. Ora, nós, em Portugal, fizemos muito melhor porque, no mesmo dia em criamos o adicional de carbono para os combustíveis, pusemos essa receita toda no Fundo Ambiental. Fizemos muito mais: investimentos em prol do ambiente e foi muito mais bem aceite do ponto de vista social. Mas não tenho ilusões: acho que outros Governos podem ter políticas mais progressistas que a nossa, mesmo de alguns dos partidos que se sentem o “rei” desse mesmo progressismo: acho que temos uma sociedade cada vez mais exigente e esclarecida. Fala muitas vezes que o cenário de crescimento económico é aquele onde é mais provável reduzir as emissões, sendo por isso, tão importante o investimento. A consciência dos empresários portugueses já permite que esses investimentos sejam vistos na ótica como o Governo a deseja? Sim. E pela mais pura e dura das razões que move um empresário: criar valor. É cada vez mais evidente que quem depender de combustíveis fósseis vai estar fora do mercado muito em breve. E a taxa de carbono está a crescer vertiginosamente: quando foi assinado o Acordo de Paris, estava a 9€ a tonelada de C02 e, este ano, já ultrapassou os 60€. Quando eu vejo esta corrida aos fundos para a melhoria da eficiência energética dos edifícios, acho que as pessoas não participam neste sprint apenas porque querem ter uma casa mais confortável e estão preocupadas com o Ambiente, fazem-no também porque querem pagar menos na sua fatura. Aumentar o preço do carbono é uma das soluções para se promoverem as energias limpas, e desta forma, atingir a neutralidade carbónica. Que equilíbrio está a ser feito por parte do Governo para que as empresas mais afetadas não sofram com este aumento? Estamos a contribuir para reduzir o défice tarifário e, com isso, reduzir o valor do acesso às redes. Vamos, para os grandes consumidores, publicar uma portaria para fazer a compensação dos custos indiretos da eletricidade, que vai vigorar no próximo ano. Com isto, vamos proteger aqueles que fizeram, no passado recente, uma aposta na eletrificação. Mas não tenho dúvidas: a grande aposta será sempre o fomento das grandes energias renováveis porque essas não pagam nenhuma taxa de carbono. A tradição de um Portugal que fez um modelo de desenvolvimento das energias renováveis, que objetivamente gerou um sobrecusto para o conjunto dos cidadãos, mas também que nos permite ter hoje 60% da eletricidade produzida a partir de renováveis e sermos líderes do mundo neste processo, hoje em dia, tudo se passa ao contrário. Os dois leilões de energia solar que lançamos provam que, afinal, a utilização do mecanismo de mercado – o leilão -mas sem ficar dependente, como pensa o PSD, de valores de mercado, gera sobre-ganho para os portugueses: com a eletricidade que chegou a estar no mercado spot há poucos dias, à volta dos 80€ por MGW. E os valores de preço médio dos leilões do solar são de 20€ por MGW. Pensemos nos milhões de euros que os portugueses vão poupar assim que todos os sistemas entrarem em funcionamento. A energia é o setor onde provavelmente se vai assistir a uma grande transformação. Como é que perspetiva essa transformação nos próximos 10 anos? Temos de passar de quota de incorporação de renováveis elevadíssima, ou seja, 60% da eletricidade que consumimos provém de fonte renovável e, em 2030, serão 80%. Isso significa, por exemplo, naquilo que é a produção solar, onde passamos de 2 GW para 8 a 9 GW. Isto é um esforço enorme e, neste momento, temos estabilidade regulatória, política, legislativa e, sobretudo, procura por parte dos investidores, que nos deixam muito confiantes. Uma segunda dimensão é, claramente, a dos gases renováveis: a eletrificação não é sinónimo de descarbonização. Por isso, há um conjunto de processos industriais, cuja intensidade energética não basta com eletricidade: tem de ter gás. E se tem que ter gás, não pode ser gás natural porque é fóssil e, portanto, tem que ser gás renovável. Por isso, esta grande aposta no hidrogénio verde. Para além da energia, quais são os outros setores onde essa transformação não vai ser tão evidente? Decididamente, o setor dos resíduos, onde Portugal não tem cumprido as metas. Apesar do crescimento do volume de resíduos produzidos per capita ser inferior ao crescimento elevado da economia, queremos mesmo que ele se reduza. E isso não está a acontecer. Temos mesmo que transformar muitos dos nossos hábitos e as novas regras assim o ditarão. Temos de chegar a 2035 com apenas 10% dos resíduos a irem para aterro. Por isso, a recolhas dos biorresíduos vai ser mesmo uma revolução nos tempos mais próximos. É impensável mandar matéria orgânica para aterro, ainda mais num país como o nosso que tem solos tão carentes dessa mesma matéria orgânica. A década de 2020 – 2030 é decisiva para que Portugal consiga ser neutro até 2050. Quais são os ganhos que o país terá com este nível de ambição? Portugal é o país da Europa que mais sofre atualmente com as alterações climáticas. A prova são são os fogos rurais, a perda de 13 quilómetros quadrados de costa nos últimos 20 anos, a seca quase estrutural no sul do país… Temos mesmo de dar o exemplo neste combate. Se pensarmos que o setor das energias renováveis já criou nove mil empregos, dos quais três mil em torno do cluster eólico em Viana do Castelo, aquilo que Portugal vai ganhar é uma posição de destaque no mundo e, por outro, a certeza de que muitos investimentos vão ser feitos neste setor e, com isso, criar riqueza e emprego qualificado. Em várias áreas da modernidade recente, a Europa deixou-se ficar para trás, em comparação com os EUA e com a China. É o caso da digitalização. Na ação climática, a Europa é líder porque uma parte muito expressiva da nossa economia vai andar em torno do combate às alterações climáticas. A Europa e Portugal ganharão em manter esse papel. ‘Tempo de agir: por uma recuperação justa, verde e digital” foi o lema da presidência portuguesa do Conselho da União Europeia ao longo destes seis meses. Na prática, o que é significa uma “recuperação justa, verde e digital”? A recuperação justa, verde e digital é uma recuperação que não deixa ninguém para trás. E muitas vezes diz “verde” e “digital” porque o combate às alterações climáticas depende muito do avanço do digital. Nós não conseguiremos pensar ou definir uma verdadeira economia circular, se não tivermos um sistema blockchain a funcionar que nos permita acompanhar o ciclo de vida dos materiais. Que balanço faz destes seis meses de presidência europeia? Este semestre foi muito positivo. Em primeiro lugar, a aprovação da Lei do Clima: vamos ser o primeiro continente neutro em emissões carbónicas em 2050. Em segundo, a aprovação da Estratégia Europeia para a Adaptação às Alterações Climáticas, porque os países do Norte, até há bem pouco tempo, ligavam pouco a esta questão da adaptação, até porque não tinham problemas de escassez da água ou fenómenos climáticos extremos. É uma grande conquista de Portugal e, de uma maneira geral, dos países do sul da Europa. Em terceiro, a “Renovation Wave -Renovação do Edifícios”: é essencial na melhoria das condições de vida dos cidadãos europeus e na enorme redução das emissões. Há aqui uma criação de emprego muito grande em pequenas empresas e pequenos instaladores. O jornal Público noticiou recentemente que Portugal é dos países onde a componente ambiental tem menos peso nas escolhas dos projetos a executar com o dinheiro do fundo de recuperação europeu. É uma análise preliminar do instituto Bruegel. Concorda com esta visão? Em Portugal, são, no mínimo, 38% porque, quando o Instituto fez a conta, fê-la apenas com aquilo que são as medidas do ambiente do estrito senso. Dos mais de 2 mil milhões que existem para a recuperação do parque habitacional, um milhão é para eficiência energética e cerca de 300 milhões de euros de investimento na saúde é para a melhoria das condições energéticas dos hospitais. E digo, no mínimo, porque vão ser mais: um quinze avos do PRR são as agendas inovadoras para a indústria quer vão ter mais projetos daquilo que comumente se chama a área “tutelada” pelo Ambiente, ainda que iniciativas privadas, do que aquilo que é a área comumente intitulado pelo Ministério da Economia. Mais do que perguntar qual a importância da bazuca europeia no ambiente e na economia e quais os seus efeitos, o que é que os empresários e a sociedade não se podem esquecer? Quando nos explodiu a pandemia nas mãos, havia uma discussão teórica muito intensa: uns diziam que agora é o momento de investir na sustentabilidade, outros diziam que as políticas ambientais iriam passar para segundo plano. Parece muito evidente que esta (última) é uma hipótese que já ninguém fala. A bazuca veio consagrar aquilo que Portugal diz desde 2016, que é investindo na sustentabilidade que vamos fazer crescer a economia. Aquilo que o Green Deal veio estatuir, já antes da pandemia, foi que o desenvolvimento económico da Europa faz-se pelo investimento na sustentabilidade. A bazuca veio consagrar tudo isto. Que lições devemos retirar desta crise de saúde pública? A primeira (lição) é que não é possível discutir saúde humana sem discutir saúde animal, ambiental ou bem-estar das condições do planeta. Precisamos de garantir o reforço da biodiversidade e reduzir aquilo que é o risco de novas pandemias. A segunda coisa é aquisição de um conjunto de valores que espero que não se percam: o valor das cadeias curtas de produção e de consumo. Aprendemos amargamente o que é depender de matérias-primas e de produtos acabados que vêm de muito longe. O valor da ruralidade, do silêncio das cidades, da qualidade do ar melhor. Espero que estes valores não se percam e que passem a ser interiorizados por todos e cada um de nós. Voltando ao início, o que ainda falta ver concretizado para se sentir um ministro totalmente realizado? Nunca serei um ministro totalmente realizado. No dia em que o for, a única coisa que posso fazer é ir embora porque, certamente, já estou muito pouco imaginativo. Sinto que aquilo que ainda falta e aquilo por que Portugal ainda não é conhecido, tenho de ser honesto, é pelo que tem que fazer no domínio do restauro dos ecossistemas e proteção e promoção da biodiversidade. O investimento que estamos a começar a fazer e as novas formas de gestão do espaço e das áreas protegidas e a nova política da paisagem são essenciais. Vai demorar a ter resultados, mas são da maior importância. Se hoje, à escala global, falar de ambiente, é falar de 1,5 graus do que temos de cumprir e, por isso, temos que acabar com o fóssil e promover as renováveis, estou muito convencido que falta pouco tempo para que este tema, continuando a ser importante, seja ultrapassado pela relevância da proteção da biodiversidade. Tenho de reconhecer que Portugal tem um caminho muito grande para fazer e particularmente desafiante, porque construir uma natureza mais biodiversa passa pela forma equilibrada que as atividades humanas se podem espalhar no território. Este é um desafio societário de uma enorme dimensão.