Ambiente Magazine
Quando se faz um balanço do ano anterior ou quando se perspetiva o futuro, é inevitável que a pandemia da Covid-19 fique de fora. O ano de 2020 ficou marcado pela incerteza sobre uma realidade jamais conhecida, podendo mesmo dizer-se que o mundo “parou”. Ainda assim, houve setores que tiveram que garantir os serviços de primeira necessidade, como foi o caso da Água que continuou a correr em todas as torneiras dos portugueses. Tal como várias empresas tiveram que se adaptar a uma nova realidade, também as entidades gestoras nacionais tiveram que preparar de um dia para o outro os cautelosos planos de contingência que todos os dias sofriam alterações. A Ambiente Magazine juntou várias entidades que contam em “primeira mão” as dificuldades, os desafios e as aprendizagens que tiram desta pandemia.
A gestão da água em Portugal
Quando questionado sobre a gestão de água em Portugal, relativamente a outros países, o presidente do Conselho de Administração da Águas do Algarve, Joaquim Peres, é perentório: “Só podemos comparar o que é idêntico. E a gestão do bem deve ser considerada pelo lado da procura e pelo lado da oferta. E, no caso do Algarve, essa gestão está sendo feita”. Ainda assim, Joaquim Peres atenta que as “estratégias fundamentais” devem ser “delineadas” fora dos momentos de crise: “Devem ser estudadas, refletidas, aceites e consumadas”. No entanto, por vezes, isso não acontece, lembrando que, em 2005, aquando de uma “seca severa”, foram feitas propostas de atuação: “Dessas propostas, estavam incluídas, entre outras, a da execução da barragem de Odelouca e a construção da EE reversível, que permitiria a colocação de água de Barlavento no Sotavento, mas também o contrário. Como choveu alguma quantidade, nada mais foi feito”. Para o responsável, a “consistência na persecução dos objetivos indicados”, é fundamental para que, em “situações de crise”, não se ande a improvisar. E nestas matérias, o “Plano de Eficiência Hídrica para o Algarve” é uma ferramenta “muito importante” e “estudado por todos”, atenta, acreditando que a “situação financeira expectável” criada pela designada “Bazuca” possibilita encarar com “otimismo” a realização das medidas do plano.
O futuro é visto com esperança: “Fundada na certeza de que tudo iremos fazer para cumprir a nossa parte no compromisso global, mesmo sabendo das muitas dificuldades que se perfilam pela frente”.
Temos que ter tarifas justas
Para o administrador Executivo da Águas de Gaia, Miguel Lemos Rodrigues, Portugal é hoje um “exemplo mundial” no setor da água e no ambiente: “A maior evidência desse facto são os índices de qualidade da água pública em praticamente todo o território nacional e a enorme preocupação na boa gestão dos recursos hídricos”. No entanto, Miguel Lemos Rodrigues considera que falta ao país “mais diálogo” entre os vários intervenientes e “mais cooperação e partilha” de boas práticas: “Julgo que já vínhamos a fazer isso mas esta pandemia ensinou-nos a trabalhar mais em conjunto e a cooperar uns com os outros”. Também “falta ainda uma maior sensibilização da população” para a “necessidade” de “gerir bem” os recursos hídricos: “A água não pode ser gratuita. Temos que ter tarifas justas mas o sistema tem que ser sustentável”.
E os políticos têm um papel “muito importante” na medida em que as “decisões políticas” têm impacto direto na vida das pessoas: “A aposta política no ambiente, na sustentabilidade, na qualidade dos serviços de fornecimento de água e saneamento foram determinantes para o avanço do país”.
Quanto ao futuro, Miguel Lemos Rodrigues não tem dúvidas que passa pela “digitalização”, pela “telemetria”, pelo “incremento do sistema de apoio à decisão” e por uma cada vez “maior proximidade com o cliente”. E passa ainda excelência: “As entidades gestoras têm de assumir essa ambição”, sustenta.
Elaborar planos para a reutilização das águas provenientes do tratamento em ETAR
Quando a questão é sobre a gestão de água em Portugal, o diretor delegado dos SMAS de Sintra (Serviços Municipalizados de Água e Saneamento SMAS de Sintra), Carlos Vieira, considera que, relativamente à qualidade da água para consumo humano e a sua distribuição, o país está no bom caminho: “O indicador de água segura que evoluiu de forma muito significativa, passando de 80% em 2000 para 99% em 2019”. Já no que diz respeito à “renovação da infraestrutura”, a realidade é muito diferente: “Precisamos reforçar a capacidade de investir na reabilitação das redes mais antigas e, neste ponto, deparamo-nos com situações muito distintas entre entidades gestoras, ou seja, é impossível comparar a capacidade de investimento de uma entidade como os SMAS de Sintra (que tem mais de 190 mil clientes) com pequenas entidades com 5 mil clientes”. Além dos “mecanismos de financiamento” que, para Carlos Vieira, devem ser reforçados, “é desejável a agregação de pequenas entidades para permitir uma maior capacidade de realização dos investimentos necessários”.
Questionado sobre o que falta ao país, o responsável refere que, em matérias de “reutilização da água”, seja a proveniente dos “tratamentos em ETAR”, seja a “gestão das águas pluviais”, o caminho é difícil e longo: “Importa, portanto, pensar essencialmente no médio e longo prazo e elaborar planos para a reutilização das águas provenientes do tratamento em ETAR, mas também um plano estratégico para a gestão das águas pluviais”. Na vertente dos resíduos, esperam-se grandes desafios, desde logo o “processo de recolha de um novo fluxo” – os biorresíduos – e toda a “complexidade que daí advém”, nomeadamente, a “sensibilização da população” para esta necessidade de “aumento da recolha seletiva”. Depois, está o “aumento para o dobro” da Taxa de Gestão de Resíduos que veio lançar novamente uma questão que, há muito, deveria estar resolvida e minimizada, ou seja, “as quantidades de resíduos indiferenciados” que continuam a ser “depositados em aterro” são extremamente elevadas. Nestas matérias, o diretor delegado dos SMAS de Sintra não tem qualquer dúvida: “Por muito que se aumente a recolha seletiva, vai sempre existir uma fração considerável que não tem solução possível”.
Relativamente aos políticos, o responsável considera que cabe-lhes, por exemplo, saberem “o que fazer com a fração de resíduos que não têm valorização”. Além disso, necessitam, ainda, de “perceber” se as “entidades que tutelam” têm “capacidade” para “realizar os investimentos que são necessários” e, em “caso negativo”, procurar “mecanismos de agregação” que permitam “concretizar esses investimentos”. Já à sociedade no geral, passa pela “compreensão” da fatura da água: “Aliás, esta fatura devia chamar-se fatura do ambiente. A fatura que todos os meses é entregue na casa dos nossos munícipes, agrega três serviços, desde logo o abastecimento de água, o tratamento de águas residuais domésticas e ainda a recolha e transporte de resíduos urbanos”.
Sobre o futuro, os SMAS de Sintra vão prosseguir a aposta na “renovação de infraestruturas mais antigas”, com maior índice de “roturas”, prioritariamente em “fibrocimento” e “ramais de ligação”, por forma a “garantir taxas de renovação das redes dentro dos parâmetros de sustentabilidade”. No ano em curso, a empresa vai prosseguir também o projeto ECOÁGUA, iniciado há mais de 15 anos, e que visa a “reutilização de águas residuais tratadas” para fins múltiplos como a “lavagem” e “higienização” de contentores de superfície, “varrição urbana” e “lavagem de arruamentos” ou “limpeza e desobstrução de coletores de drenagem de águas residuais” e “limpeza de mecanismos de ETAR”. Ainda em 2021, e numa perspetiva de futuro, os SMAS de Sintra pretendem desenvolver, em parceria com outros municípios, um “projeto de investigação para estudo dos processos de dessalinização” e a sua possível implementação no município, destaca o responsável. Ao nível dos resíduos, o responsável adianta que a recolha seletiva de resíduos alimentares vai ser reforçada, abrangendo mais 75 mil munícipes, a juntar aos 15 mil que integraram o projeto piloto. Os SMAS de Sintra vão implementar, ainda, a “recolha seletiva” junto de alguns agentes económicos, nomeadamente do “setor da restauração”, e em “estabelecimentos de ensino”, com “circuito dedicado” e “recolha porta-a-porta”, por se tratarem de “produtores de grandes quantidades” de biorresíduos. Ainda na área dos resíduos urbanos, a estratégia a curto e médio prazo reside na “criação” da rede de ecocentros municipais: “O princípio orientador dos ecocentros é o aumento da recolha seletiva, permitindo a receção de resíduos através da sua deposição ordenada num único local”.
As gerações mais novas são mais exigentes e disponíveis para novas práticas
Para o presidente do Conselho de Administração da AdCL (Águas do Centro Litoral), Alexandre Oliveira Tavares, a gestão da água em Portugal ou no mundo já não é somente uma “questão de acesso e qualidade”, de “conservação das massas de água” ou de “manutenção dos ecossistemas e da biodiversidade”. Para Alexandre Oliveira Tavares, a gestão da água transformou-se num “desafio societal” como é bem visível na “expressão em inúmeros de ODS”, mas também no “desígnio para processos de transformação”, como sejam a “alteração do ciclo urbano da água”, de “reutilização numa lógica de circularidade”, de “perequação na gestão de perdas e desperdícios”, na “inovação, otimização e redução dos consumos energéticos”, de “desenvolvimento tecnológico na operação e na relação com utilizadores e clientes”, de “comunicação de boas práticas de consumo individuais e coletivos”, de “sustentabilidade económica e ambiental dos sistemas a médio prazo” e da “resiliência dos sistemas operacionais”, nomeadamente associados às “alterações climáticas” ou a “outros eventos disruptivos”.
Alexandre Oliveira Tavares considera que há um caminho a percorrer que necessita de “estabilidade organizacional e regulatória”, de “inovação e capacitação técnica”, de “capacidade concretizadora temporal e financeira”, de “comunicação transversal à sociedade sobre o valor e os custos associados à utilização e tratamento da água”, de “sensibilização para as boas práticas de consumo da água” e de “utilização dos sistemas”. E Portugal pode orgulhar-se de ter uma “sociedade ativa” na “defesa” dos “princípios da preservação ambiental” que tornou o país em três décadas “muito melhor” no “acesso” e “gestão dos desperdícios do recurso água”, ou na “conservação das massas de água fluviais, subterrâneas, de interface e marinhas”. Além disso, as gerações mais novas são, simultaneamente, “mais exigentes e disponíveis para novas práticas”, sendo necessária a “transmissão e o entendimento” das “necessidades e exigências territoriais”, da “sustentabilidade económica e ambiental associadas”.
Sobre o futuro, a AdCL, na qualidade de empresa participada do Grupo AdP, vai procurar uma “melhoria do funcionamento organizacional” com a “valorização do capital humano”, a par da “promoção do conhecimento e inovação” em permanente “simbiose” e “interação com a comunidade”. Para obter a “excelência dos processos”, a empresa está empenhada em “criar resiliência” para as infraestruturas e a incrementar a “eficiência” das operações, melhorando a “qualidade do serviço e a sustentabilidade económica”. Na demonstração da utilidade social, a empresa procura a “inovação tecnológica” e a “acreditação dos processos”, criando “eficiência e melhorias de desempenho, novos negócios e formas de cooperação organizacional”, remata.
Portugal reúne as condições necessárias para concretizar a ambição de um “setor competitivo e sustentável
Depois de um “forte desenvolvimento” do setor na primeira década do século, o CEO do Grupo Indaqua, Pedro Perdigão, considera que, na década que agora termina, observa-se uma estagnação e falta de ambição generalizadas. Para Pedro Perdigão, falta uma “gestão mais eficiente dos recursos”, não só da água em si mas também dos “recursos económicos, tecnológicos e humanos”. Quanto à gestão da água, a redução de perdas na rede (Água Não Faturada) continua longe de ser um “sério compromisso” por parte de muitos operadores: “A falta de uma correta operação e manutenção de redes contribui não só para este problema, mas também para o galopante envelhecimento de infraestruturas”, atenta. A “baixa taxa de adesão” às “redes públicas de abastecimento de água” e de “saneamento de águas residuais” que, mesmo quando estão disponíveis, são dispensadas pelos consumidores também “compromete a operação”, por exemplo, pela “contaminação por origens não controladas” como fossas ou poços, para além de representar um “risco” para a saúde pública.
Pedro Perdigão não tem dúvidas de que o país reúne as “condições necessárias” para “concretizar a ambição” de um “setor competitivo, sustentável que, para além de assegurar qualidade e eficiência nos serviços essenciais que presta, contribui para uma economia exportadora”. Para tal, é fundamental não esquecer que a “sustentabilidade económica deve advir de tarifas que cubram os custos presentes e futuros”; aos “impostos caberá a dimensão social que deve existir para quem dela efetivamente precisar”: a “ligação às novas redes públicas que tanto custaram a construir, por milhares de alojamentos com soluções próprias tem finalmente de acontecer”, sustenta. Além disso, os “subsídios ao investimento, muitas vezes instrumentalizados para centralizar e condicionar os municípios, a existir”, deverão ser “previsíveis e agnósticos a todas as suas opções de gestão”, exceto aquelas que garantam um “ambiente de compromisso em resultados, transparência e competitividade, quer entre operadores, quer no acesso à gestão”. Os períodos prolongados de seca e fenómenos de precipitação intensa vão acentuar-se: “Antes de novos investimentos para reforço de captações, reservas ou dessalinizações, será fundamental a redução das perdas reais nacionais para valores adequados, por forma a amenizar as necessidades hídricas e a aumentar a duração das reservas existentes”. Por fim, os protagonistas do setor são e deverão continuar a ser os municípios: “Às instituições nacionais, deve caber apenas um papel nos investimentos multimunicipais e na criação de condições que incentivem a competitividade e serviços com qualidade, acessíveis e economicamente sustentáveis”. Já aos municípios, o responsável defende que deverá exigir-se a “determinação de tarifas” num “quadro de gestão profissional e de prestação de contas” em que os “níveis de qualidade e eficiência” demonstrados “limitem o acesso a apoios do estado central ou alterem as tarifas em alta que suportam”.
Quanto ao futuro, Pedro Perdigão acredita que a “cooperação”, com a “partilha de conhecimento e experiência”, fará parte do “trabalho futuro do setor”, na procura de respostas para uma gestão mais eficaz.
Elevada qualidade das águas balneares atestada pelo número crescente de bandeiras azuis em Portugal
Para o presidente do Conselho de Administração da AdP (Águas de Portugal), José Furtado, a água tem uma “importância transversal” no contexto do “desenvolvimento económico, social e ambiental” a nível mundial. E a pandemia da Covid-19 veio mostrar que a “saúde pública e o ambiente” são “mais importantes do que nunca”, o que reforça a “relevância dos serviços de abastecimento de água, de saneamento de águas residuais e de produção de água para reutilização”. Relativamente a outros países, José Furtado afirma que Portugal está no “bom caminho” no que respeita à gestão da água em face dos novos desafios societais e ambientais: “As taxas de cobertura dos serviços de abastecimento são elevadas e a qualidade da água tem atingido níveis crescentes de excelência”. No que respeita ao saneamento, destaque para a “elevada qualidade das águas balneares atestada pelo número crescente de bandeiras azuis em Portugal”, o que coloca o país “acima da média europeia” de acordo com os dados da Agência Europeia do Ambiente, remata.
Este artigo foi publicado na edição 86 da Ambiente Magazine.