Ambiente Online
Conforme já aqui abordei em artigo anterior, o Orçamento do Estado para 2021 aprovou alterações dos poderes regulatórios da ERSAR, designadamente no que concerne à fixação de tarifas, nos termos da proposta de lei do Partido Comunista Português, que vem introduzir mudanças na lei que aprovou os estatutos da ERSAR e no Decreto-Lei que estabeleceu o regime jurídico da concessão da exploração e da gestão em regime de serviço público dos sistemas multimunicipais de tratamento e de recolha seletiva de resíduos urbanos, atribuída a entidades de capitais exclusiva, ou maioritariamente privados.
Alterar os estatutos da entidade reguladora, uma peça fundamental à prossecução da sua missão, num anexo da Lei do Orçamento de Estado, só pode suscitar interrogações. Que razões imperiosas terão levado a evitar uma profunda discussão, que se impunha, sobre os fundamentos desta alteração?
Que culpa é que “nós” temos que as expetativas quanto à privatização dos sistemas de tratamento de resíduos, relativas à redução desse custo, não se tenham concretizado? Se a expetativa era que a tarifa de resíduos fosse, em média, 20% mais baixa, mas, ao invés, ela veio a subir, em média, na mesma percentagem que se perspetivava que descesse – até um pouco mais – o que é que “nós” temos a ver com isso?
Apanhado neste fogo cruzado, o setor do abastecimento de água e saneamento de águas residuais vê-se, subitamente, sem regulador, porque os municípios não sabem exatamente o custo dos serviços que lhes são prestados na área dos resíduos. A EGF diz que as tarifas são baixas e os municípios queixam-se que as tarifas são altas, não sabendo para o que é que pagam. Estarei a exagerar? Se calhar estou (não é a primeira, nem será a última vez). Então interpretem vós o que é que se pretende quando se passa de “regulamentar, avaliar e auditar a fixação de tarifas”, para “avaliar e auditar a fixação de tarifas”; e se passa de “aprovar regulamentos tarifários”, para “aprovar recomendações tarifárias”. Apetece perguntar (e quando me apetece, eu pergunto), para que é que serve aprovar um novo regulamento tarifário? A menos que estas alterações configurem o seu epitáfio de “nado-morto”. Não vos faz lembrar nada? IRAR…
Sempre reclamei por uma maior e cada vez mais consolidada afirmação da regulação económica independente, pelo que não poderia estar mais de acordo com o ainda presidente, da ainda entidade reguladora, Orlando Borges, quando caracteriza este processo como sendo um claro retrocesso nesse caminho, particularmente importante dada a forte presença do Estado e dos municípios nos sistemas multimunicipais. Nem sempre alinhámos pelo mesmo diapasão, mas quando ele diz não haver nenhuma interpretação racional para estas alterações, só posso subscrever.
Vejamos o que o futuro nos reserva, aproveitando para desejar ao meu estimado amigo, Orlando Borges, as maiores venturas e manifestar-lhe um justo reconhecimento pelo (difícil) trabalho desenvolvido, agora que se antecipa o final do seu mandato. Reafirmo que nem sempre estivemos de acordo, ainda aguardo um pronunciamento sobre a gestão das águas pluviais (nomeadamente no que diz respeito à imputação e integração dos respetivos custos de recolha, escoamento e eventual tratamento e reutilização), mas talvez seja uma boa altura para afiançar da grande admiração e respeito que por ele nutro e que, por mim, perdurará para além desta convivência, por vezes um pouco tumultuosa. Mas é como ele diz, “se o regulador e as empresas reguladas estivessem sempre de acordo, algum deles não estava a fazer bem o seu trabalho”.
Por último, quero prestar uma homenagem à grandeza e à sabedoria do prof. Fernando Santana, que perdurou até ao último fôlego, quando, a propósito do tema deste artigo, escreveu, “restringir o âmbito de atuação vinculativa da ERSAR, desvirtua-a como regulador (…), potencia a diluição da sua responsabilidade e (…) reconduz-nos à famosa interrogação shakespeariana”. Nunca privámos muito, mas foi o suficiente para colher razões, fundadas, para lhe prestar a minha singela homenagem, nos termos em que o faço. Paz à sua alma e condolências à família. O céu está a ficar cada vez mais culto.
“To be, or not to be?” Diz que é uma espécie de regulador…
Nuno Campilho é licenciado em Relações Internacionais e Pós-graduado em Comunicação e Marketing Político, em Ciência Política, e em Tecnologias e Gestão da Água. Executive MBA do IESE/AESE. Doutorando em Políticas Públicas no ISCTE-IUL. Foi presidente da União das Freguesias de Oeiras, Paço de Arcos e Caxias, administrador dos SMAS de Oeiras e Amadora e chefe de gabinete do Ministro do Ambiente, Isaltino Morais. Exerceu, ainda, funções de vogal do Conselho de Gerência da Habitágua, E.M. Foi titular do cargo de Diretor Delegado dos SIMAS de Oeiras e Amadora, até ao final de janeiro de 2020, é membro da Comissão Especializada de Inovação da APDA e Senior Business Partner da Mundi Consulting.