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As ameaças das alterações climáticas determinam a necessidade de descarbonizar a economia mundial. Por esse motivo assistiremos a uma eletrificação crescente da atividade económica, complementando-se esse movimento com a utilização crescente de recursos energéticos renováveis para a produção de eletricidade e a desclassificação progressiva de centrais termoelétricas, a começar pelas centrais de carvão.
Esse movimento está em curso, e nos próximos anos assistiremos ao fecho progressivo de todas as centrais termoelétricas a carvão na Península Ibérica. Estamos a menos de dois anos de tal se vir a concretizar, podendo inclusivamente assistir-se ao fecho antecipado deste tipo de centrais. Contudo, a descarbonização completa da sociedade e da economia de Portugal não será possível de concretizar se não recorrermos a outro vetor energético – o Hidrogénio.
Com efeito, as necessidades de produção de calor industrial, de disponibilização de uma solução eficiente e viável para a descarbonização do transporte rodoviário de longa distância, do transporte marítimo e do transporte aéreo, a que acresce o interesse em dispor de soluções alternativas para armazenamento sazonal de energia de origem renovável para garantir segurança de abastecimento no setor elétrico justificam a aposta no Hidrogénio de origem renovável – Hidrogénio verde – como vetor energético complementar à eletricidade, para assim conseguir uma descarbonização mais rápida da economia. O Hidrogénio verde será produzido a partir da eletrólise da água, utilizando eletricidade com origem em fontes de energia renovável, fundamentalmente a partir dos recursos energéticos eólico e solar.
A produção de hidrogénio pode ter lugar em sistemas de produção dedicados, onde a produção renovável alimenta diretamente os eletrolisadores, o que será até uma solução mais económica e eficiente, uma vez que utiliza a energia produzida diretamente em corrente contínua eliminando conversores DC/AC na produção de eletricidade e eliminando a etapa AC/DC para alimentação dos eletrolisadores. Há, portanto, redução de custos de investimento e redução de perdas nos andares de conversão DC/AC e AC/DC. Contudo, estas soluções ficam limitadas pela disponibilidade e variabilidade do recurso renovável local, pelo que há interesse em explorar as soluções de produção de hidrogénio a partir de eletrolisadores ligados à rede elétrica, que permitem utilizar a produção agregada de eletricidade de origem renovável disponível no sistema elétrico.
A Ibéria tem, no conjunto de Portugal e Espanha, um ambicioso plano de instalação de produção de eletricidade a partir de recursos renováveis, acompanhado da desclassificação de centrais termoelétricas (nomeadamente carvão) e nucleares. Tal conduzirá a que no futuro possam ocorrer períodos em que será necessário explorar a flexibilidade do lado da procura e promover a instalação e utilização de sistemas de armazenamento de energia (baterias e sistemas hídricos reversíveis) para encontrar colocação para essa energia, uma vez que a capacidade de interligação entre a Ibéria e a Europa central continuará a ser limitada. Mesmo assim poderão ocorrer períodos em que haverá lugar a corte de produção de eletricidade de origem renovável.
Num estudo recente realizado pelo INESC TEC sobre a evolução da produção média horária por tecnologia na Ibéria para os anos de 2020 a 2035, verifica-se um crescimento significativo da produção solar em torno das 14 horas – horas intermédias do dia, com maior irradiação – e, consequentemente, uma diminuição significativa da produção dos ciclos combinados nessas mesmas horas, sendo este padrão mais claro no ano 2030. À medida que formos avançando no tempo, verificar-se-á que a nova potência instalada em energia solar aumenta a sua produção nas horas intermédias, deslocando parcialmente a produção dos ciclos combinados. Relativamente ao excesso de produção médio (excesso de produção renovável que não pode ser acomodado no sistema) para os diferentes anos e horas do dia, verifica-se que as horas em que existe mais excesso de produção renovável serão as horas centrais do dia devido à maior produção solar. É possível também verificar que o crescimento do excesso de produção ocorre à medida que existe maior potência instalada de origem renovável no sistema, sendo notável o crescimento nos anos 2025 e 2030. Dado que se espera a desclassificação da totalidade da produção nuclear, fundamentalmente entre 2030 e 2035, e um aumento progressivo da procura de eletricidade que terá o maior crescimento em 2035, verificar-se-á primeiro um aumento (2030) e depois uma diminuição do excesso de produção de origem renovável para o ano de 2035.
Estes resultados mostram o interesse que existe em colocar eventuais excedentes de energia elétrica em novos consumos, como será o caso dos eletrolisadores, evitando assim o eventual “curtailment” de produção com origem renovável, em particular de origem solar fotovoltaica. O volume de hidrogénio que pode assim ser produzido poderá em parte ser também utilizado para disponibilizar uma solução de armazenamento sazonal de energia elétrica que pode depois ser injetada na rede através de uma abordagem Power to Power, recorrendo a pilhas de combustível de alta temperatura, desde que associadas à produção de calor em cogeração industrial para assim assegurar uma eficiência interessante ao processo de conversão substituindo a cogeração industrial com queima de combustíveis fósseis, ou ainda via Gas to Power recorrendo a turbinas a gás de ciclo combinado que utilizem gás natural com uma progressiva dopagem em hidrogénio. Esta pode ainda ser uma solução interessante a avaliar em termos da sua contribuição para a segurança de abastecimento. Assim, tendo em conta o potencial dos recursos energéticos primários renováveis que temos em Portugal, o país poderá desta forma antecipar a transição energética recorrendo também à contribuição do vetor hidrogénio “verde”, atingindo a neutralidade carbónica antes de 2050, e aproveitando para explorar ainda o potencial de exportação deste hidrogénio “verde”.
Existe, pois, uma oportunidade clara para a comunidade científica, para as empresas prestadores de serviços tecnológicos e para a indústria, no sentido de desenvolver em Portugal um cluster industrial no domínio do hidrogénio, criando riqueza, melhorando a balança de transações correntes e aumentando o emprego qualificado.
João Peças Lopes é diretor associado do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (INESC TEC) e Professor Catedrático da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. É doutorado em Engenharia Eletrotécnica e de Computadores e foi responsável por dezenas de projetos nacionais ou europeus nesta área, tais como a definição de especificações técnicas para a integração de energia eólica no Brasil. É vice-presidente da Associação Portuguesa de Veículos Elétricos.