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Ainda não têm força de lei, mas muitas das medidas fiscais contidas no Orçamento do Estado para 2020, que entra em vigor a 1 de abril, foram ultrapassadas pela realidade em que o país luta contra a pandemia de covid-19. Possibilidade de descida do IVA na eletricidade para alguns consumidores, agravamento dos impostos no alojamento local e no imobiliário, mais Imposto do Selo no crédito ao consumo, bem como a criação de uma taxa nas embalagens de plástico descartáveis, muito usadas no take-away dos restaurantes, são exemplos de mudanças cuja pertinência se questiona face ao panorama atual
Ainda não têm força de lei, mas muitas das medidas fiscais contidas no Orçamento do Estado para 2020, que entra em vigor a 1 de abril, foram ultrapassadas pela realidade em que o país luta contra a pandemia de covid-19. Possibilidade de descida do IVA na eletricidade para alguns consumidores, agravamento dos impostos no alojamento local e no imobiliário, mais Imposto do Selo no crédito ao consumo, bem como a criação de uma taxa nas embalagens de plástico descartáveis, muito usadas no take-away dos restaurantes, são exemplos de mudanças cuja pertinência se questiona face ao panorama atual Entram em vigor a 1 de abril, mas antes de se tornarem lei, muitas das medidas fiscais previstas no Orçamento do Estado para 2020 (OE2020) já estão ultrapassadas pelo estado de emergência em que o país, entretanto, mergulhou por força da pandemia de Covid-19. Agravamento da tributação para o alojamento local, possibilidade de redução do IVA na eletricidade e no gás natural, diminuição dos prazos para recuperar o IVA em créditos em atraso ou considerados incobráveis, agravamento do Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT), mais Imposto do Selo nos empréstimos para consumo, contribuição extraordinária para o sector dos dispositivos médicos e cobrança de uma taxa nas embalagens de plástico de uso único são algumas das mudanças fiscais que estão contempladas no OE2020. Faz sentido permanecerem tal como foram votadas e aprovadas? Na opinião dos fiscalistas ouvidos pelo Expresso há mudanças que estão completamente desfasadas das necessidades atuais e outras até podiam ir mais além. IVA na eletricidade e no gás natural Vejamos o caso do IVA na eletricidade que tanta polémica gerou no Parlamento durante a discussão do OE2020 e cuja taxa acabou por se manter nos 23% depois do chumbo da descida para 6% em que o Governo dispõe de uma autorização legislativa, que inclui o gás natural, para baixar o imposto em determinados volumes de consumo. “Num momento em que tantas famílias estão a trabalhar em casa e em que os consumos dos privados dispararão, o uso desta autorização legislativa e a concretização de taxas de IVA variáveis em função do consumo apresentar-se-ia como uma medida positiva de apoio às famílias”, considera Serena Cabrita Neto, sócia co-coordenadora da área de fiscal da PLMJ, fazendo notar, porém, que “a implementação técnica desta medida está sob apreciação do Comité do IVA da Comissão Europeia” e que, por isso, “é improvável que venha a ser concretizada em tempo útil para fazer face à crise em curso”. Para a Deloitte, “representando a receita do IVA sobre a eletricidade e o gás natural várias centenas de milhões de euros, esta será uma daquelas medidas emblemáticas, na área fiscal, na opção a seguir pelo Governo no combate à crise: agravar impostos para suportar a receita, ou reduzir os mesmos, para aliviar os cidadãos”, menciona fonte da consultora, que recorda que “em 2011, quando a taxa de IVA sobre a eletricidade e gás natural subiu de 6% para 23% surgiu como uma medida de combate à crise, pelo lado da receita”. Alojamento local Já o agravamento de 0,35 para 0,50 do coeficiente aplicado no apuramento do rendimento tributável do alojamento local (AL), para moradias ou apartamentos que estejam localizados em áreas de contenção, não faz sentido aos olhos dos especialistas tendo em conta o forte impacto que a crise pandémica está a ter no sector do turismo. António Pedro Braga, sócio de fiscal da Morais Leitão, sinaliza que, nesta fase, dificilmente os operadores conseguem gerar negócio para suportar tal aumento. “Ainda que as áreas de contenção possam ser as mais fortes em termos de AL, não vejo, com esta crise, como poderão os operadores obter margens reais superiores a 0,50 em 2020. A manutenção de um coeficiente único de 0,35 reduziria a pressão para a redução de gastos, nomeadamente com recursos humanos”, sustenta. “O contexto em que esta medida foi inserida no OE2020 redução da atividade de alojamento local em determinadas áreas das cidades especialmente impactadas pelo excesso de estabelecimentos , assume agora uma consequência demasiado gravosa para quem viu a sua atividade reduzida a zero de forma tão repentina”, acrescenta Joana Cunha dAlmeida, sócia coordenadora do departamento fiscal da Antas da Cunha ECIJA. No entanto, para Jorge Carrapiço, consultor da Ordem dos Contabilistas Certificados, “após passar este momento especial pelo qual o mundo está a passar, e prevendo a manutenção do mesmo nível de turismo nas principais cidades de Portugal, parece fazer sentido manter a criação destas áreas de contenção, e aplicar desincentivos fiscais, como o agravamento do valor de rendimento líquido (matéria coletável) a ser tributado em termos de IRC”. Dispositivos médicos Outra alteração que devia ser repensada na opinião dos fiscalistas ouvidos pelo Expresso, é a contribuição extraordinária sobre os fornecedores da indústria de dispositivos médicos do Serviço Nacional de Saúde (SNS). “Poderá ter como efeito um aumento dos preços a pagar pelo Estado”, sinaliza a Deloitte, numa opinião corroborada por Bruno Santiago, sócio de fiscal da Morais Leitão, que considera tratar-se de mais uma outra medida legislativa “que foi ultrapassada pela realidade e deverá ser suspensa ou revogada”. “Agora, mais do que nunca, os fornecimentos ao SNS não devem ser dificultados ou desincentivados pela imposição de tributos acrescidos ou acordos forçados. É altura de tratar dos doentes e não de criar entropias nas cadeias de fornecimento pela necessidade de cumprimento de obrigações acrescidas associadas a novos tributos”, salienta o advogado da Morais Leitão. Joana Cunha dAlmeida concorda e reforça que tendo em conta “a especial relevância que a área da saúde assume num cenário de pandemia, não é concebível que se avance com uma qualquer medida suscetível de fragilizar o sistema, desde logo considerando os avisos dos fornecedores de que tal contribuição extraordinária conduziria a um inevitável aumento de preços e inclusivamente descontinuidade de produtos”. Prazos para recuperar IVA nos créditos incobráveis Fonte da Deloitte chama também a atenção para a diminuição para metade de vários prazos para se efetuar a recuperação do IVA contido em créditos em atraso ou considerados incobráveis, naquilo que avalia como “positivo”, mas que atendendo aos desafios atuais a medida devia ser mais ambiciosa. Hoje, por exemplo, apenas após 24 meses de mora é que um contribuinte podia iniciar o processo de recuperação do IVA. “Com o OE2020, os sujeitos passam a poder recuperar o IVA em causa após 12 meses de mora do crédito. Por outro lado, onde a Autoridade Tributária e Aduaneira dispunha de um prazo de oito meses para dar resposta aos processos, passa a dispor de quatro meses para o efeito, o que se revela também bastante positivo”. Face ao momento atual, a consultora sugere que “excecionalmente” estes prazos (e o procedimento administrativo) sejam “ainda mais reduzidos”. Embalagens de plástico Numa altura em que os restaurantes só podem vender as refeições em sistema de entrega ao domicílio ou em take-away, pode-se questionar também a pertinência da criação de uma taxa sobre as embalagens de plástico descartáveis. “Não obstante as atendíveis e muito relevantes preocupações ambientais subjacentes a esta contribuição, esta autorização legislativa revela-se desajustada face ao contexto atual, em que foi imposto o encerramento temporário dos espaços físicos de restauração e em que os regimes de take away e plataformas digitais de entrega de refeições prontas a consumir são apontados como uma das reduzidas possibilidades de manutenção da atividade económica do sector da restauração”, enquadra Serena Cabrita Neto, acrescentando que “seria expectável ou recomendável que, pelo menos para já”, o Governo não legisle neste sentido. Imposto do Selo no crédito ao consumo Onerar mais o crédito ao consumo também não é desejável nesta fase, indica a Deloitte, já que a perda de rendimentos tornou-se uma realidade para muitos portugueses e haverá casos de pessoas que terão de recorrer a empréstimos bancários para sobreviver. O OE2020 prevê um agravamento do Imposto do Selo sobre os créditos ao consumo em que “não só as taxas neste tipo de operações de crédito foram aumentadas em aproximadamente 10%, nos diferentes prazos, como se manteve o agravamento do imposto em 50%, para as novas operações”, lembra fonte da consultora, salientando que “num cenário de alteração de circunstâncias, em que as novas operações de crédito ao consumo e a liquidez que as mesmas permitem se destinarão à satisfação de necessidades mais básicas, o agravamento deste tipo de tributação poderá ter o efeito contrário ao que neste momento seria recomendável”. IMT no património de elevado valor A paragem no imobiliário também desaconselha a aumentos da carga fiscal aplicada ao sector, considera a maioria dos especialistas. A partir de 1 de abril é introduzida uma nova taxa de IMT de 7,5% na compra de imóveis para habitação com um valor acima de um milhão de euros. “Embora a presente medida tenha sido concebida de forma a afetar apenas parte da população portuguesa, a mesma constitui mais um obstáculo a uma rápida renovação da atividade imobiliária, sector que se estima que seja afetado de forma muito relevante e também de forma imediata”, aponta Joana Cunha dAlmeida. Já Jorge Carrapiço discorda. “Esta medida parece continuar a fazer sentido face à realidade atual, uma vez que o seu âmbito é limitado a adquirentes de imóveis com capacidade financeira para a aquisição de imóveis de preço elevado”, defende. Golden Visa e residentes não habituais Por sua vez, João Magalhães Ramalho, sócio coordenador da equipa de Fiscal da Telles, diz que “a única medida que desconsideraria seria o fim dos Golden Visa em Lisboa e no Porto. Dar-se-ia um sinal claro ao mercado e aos investidores”. E, “talvez, acrescentasse a clarificação de um aspeto prático e que respeita ao enquadramento fiscal das pessoas que tenham ficado retidas em Portugal e que não devem ser consideradas como residentes fiscais em Portugal”. É que, lembra o fiscalista, à luz da lei, se alguém permanecer em Portugal durante 183 dias seguidos ou interpolados, deve ser considerado como residente.