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É fácil elencar os lados negativos do coronavírus – mas e os positivos? O fecho de fábricas está a ter um efeito espetacular no meio ambiente, ao ponto de caminharmos para chegar às metas estabelecidas no Tratado de Paris. Contudo, será isto o suficiente para voltarmos a viver num planeta mais saudável?
O copo meio cheio do coronavírus. Como a pandemia está a ajudar o ambiente
Com o encerramento de fábricas e a redução de viagens, o coronavírus diminuiu drasticamente a emissão de gases com efeito de estufa a nível mundial. Contudo, especialistas indicam que também existem pontos negativos.
Os procedimentos de quarentena adotados em todo o mundo para evitar a disseminação do novo coronavírus levaram, segundo dados compilados pela agência Lusa, a uma redução de pelo menos um milhão de toneladas de dióxido de carbono por dia.
No primeiro semestre do ano houve uma redução de emissões calculada em 9,6 milhões de toneladas, o equivalente a menos 1,4 vezes as emissões de Portugal em 2017.
A razão para esta queda? A quebra do consumo de combustíveis fósseis devido à pandemia de covid-19.
É estimado que, pela primeira vez desde 2009, a procura global de petróleo vá diminuir. Em causa está uma redução de cerca de cem mil barris por dias. Estes dados foram lançados num relatório da Agência Internacional de Energia (AIE),
que estima que no próximo ano se venda por dia entre 480 mil e 730 mil barris de petróleo. Para além da redução do consumo de petróleo, também se tem usado muito menos o carvão.
O site especializado Carbon Brief mostra que as emissões mundiais de CO2 podem reduzir-se este ano em cerca de 7%, um valor próximo do que o planeta devia atingir em 2020 para cumprir o Acordo de Paris sobre alterações climáticas.
Segundo um relatório do Programa das Nações Unidas para o Ambiente, para limitar o aumento da temperatura global a 1,5 °C acima da média da era pré-industrial é preciso reduzir em 7,6% por ano as emissões de gases com efeito de estufa, algo que pode ser alcançado este ano devido à pandemia.
Esta quebra deve-se essencialmente à redução da produção dos principais setores industriais da China, o maior produtor de gases com efeito de estufa do mundo.
O Carbon Brief indicou que a China reduziu em 25% as emissões de CO2, o consumo de carvão nas fábricas caiu 36%, a produção de carvão caiu 29% e a capacidade de refinar petróleo reduziu-se em 34%.
Este impacto é visível nas imagens áreas publicadas pelo NASA Earth Observatory, que monitorizam os níveis de dióxido de nitrogénio no ar. Graças às restrições impostas pelas autoridades chinesas é possível observar uma redução muito significativa da poluição do país entre janeiro e fevereiro.
O cientista da Universidade de Stanford Marshall Burke calculou os efeitos que a redução da poluição poderia ter na saúde dos residentes locais. “Estimo que 1,4 mil crianças com menos de cinco anos foram salvas e cerca de 51,7 idosos acima dos 70, apenas pelo facto de existir oxigénio em melhores condições para respirar”, escreveu no site Global Food, Environment and Economic Dynamics.
Um empurrão que pode não ser suficiente Contudo, nem todos partilham a mesma visão otimista dos benefícios da pandemia. Figuras como António Guterres, secretário-geral das Organização das Nações Unidas, e Greta Thunberg avisaram que apesar da urgência em combater este vírus, a batalha pela emergência climática não pode ser esquecida.
O especialista em alterações climáticas Filipe Duarte Santos disse ao i que apesar da “reduzida atividade económica e de os voos de avião e as deslocações estarem muito diminuídos em todo o mundo”, este cenário é apenas passageiro. “Quando a pandemia passar, como o preço do petróleo, do carvão e do gás natural está muito baixo, as pessoas vão preferir usar estes combustíveis em vez de energias renováveis. Portanto, não é certo que vá acontecer mas, provavelmente, logo a seguir a esta pandemia, as emissões vão aumentar muito acentuadamente”, explicou.
O investigador acrescentou ainda que em relação ao que será o mundo pós-coronavírus existem duas teorias polarizadoras. “Há quem defenda que depois deste vírus, as pessoas e os Governos vão ter mais atenção às questões ambientais e vai haver uma alteração para uma relação mais harmoniosa com o ambiente. Contudo, há quem pense que isto não vai acontecer. Vamos continuar a explorar os recursos naturais o mais que pudermos e continuar a produzir gases com efeito de estufa para assegurar o modelo económico que temos”.
Em declarações à agência Lusa, o presidente da associação ambientalista Zero, Francisco Ferreira, avisa que a redução no consumo de petróleo é, ainda assim, muito baixa e lembra que “é preciso uma redução de 7,6%” em cada ano. “Somando a redução mundial do consumo de petróleo e o cenário na quebra de produção na China e quebras à escala mundial, ficamos efetivamente próximos da meta da ONU para a temperatura não ultrapassar 1,5 graus”, disse. “Estas são mudanças conjunturais, e não estruturais, e com impactos que em áreas como o emprego não são também as desejáveis”.
A Quercus avisou, em comunicado, que “uma queda de 25% das emissões na China, durante duas ou três semanas, representa uma redução mundial de apenas 1%”.
“Este eventual impacto positivo não é a longo prazo. Ou se aproveita esta crise para mudar comportamentos ou, mais tarde, a recuperação económica poderá, provavelmente, ser ainda mais prejudicial”.
Mas os problemas não ficam por aqui. A associação relembrou que para os doentes tratados em casa ainda não existem canais de recolha para estes resíduos. Há falta de alternativa e todos estes objetos são tratados como lixo indiferenciado.
“A necessidade de proteção individual com máscaras e luvas levou ao consumo exponencial de materiais em plástico descartável que, após utilização (em meio hospitalar), terão necessariamente como destino final a deposição em aterro, por se tratar de um resíduo com risco biológico”.
Por fim, face à recente corrida aos hipermercados e à aquisição exagerada de bem perecíveis, a associação alerta para os perigos do aumento do desperdício alimentar.
“Esta pandemia que está a parar o mundo irá inevitavelmente servir para repensarmos os nossos comportamentos e até que ponto conseguimos mudar alguns hábitos na nossa vida, para além de poder contribuir para promover a discussão das políticas ambientais e governamentais adotadas por cada um dos países em matéria ambiental”.
Para Filipe Duarte Santos, esta é a oportunidade perfeita para percebermos que não vivemos “independentes do ambiente” e que, “apesar de vivermos numa cidade e não nos preocuparmos com a natureza, esta tem uma influência direta na economia mundial. “Penso que esta é uma oportunidade para refletirmos e fazermos alterações no nosso modo de vida, transitarmos para energias renováveis e procurarmos ter uma relação mais amigável e harmoniosa com o ambiente. Esse seria o meu desejo, mas não estou seguro de que vá acontecer”.
Novo estudo indica que poluição pode oferecer “boleia” a coronavírus
A poluição excessiva no norte de Itália pode ter acelerado a transmissão do coronavírus no país.
Um novo estudo conduzido pela Sociedade Italiana de Medicina Ambiental indica que a poluição ambiental pode ter tido um papel crucial na pandemia causada pelo novo coronavírus. A pesquisa teve em consideração dados levantados entre 10 e 29 de fevereiro e foi conduzida pelos médicos e investigadores Leonardo Setti e Gianluigi de Gennaro, das universidades italianas de Bolonha e Bari, respetivamente, e apontou uma correlação entre o número de casos de infeção pelo coronavírus e a superação dos limites legais das concentrações de PM10 e PM2,5 – dois tipos de partículas inaláveis, em forma de aerossol, com menos de 10 e 2,5 micrómetros, respetivamente, que se encontram suspensas no ar e podem provocar inúmeras doenças respiratórias quando inaladas. Os resultados desta pesquisa mostram que o excesso de partículas dessa natureza pode ter impulsionado a propagação do coronavírus.
“Altas concentrações de poeira fina no fim de fevereiro, na Planície Padana, exerceram uma aceleração anómala, em evidente coincidência, na distância de duas semanas, com as mais altas concentrações de partículas atmosféricas, que tiveram uma ação de impulsio- namento que deu força à difusão violenta da epidemia”, disse Leonardo Setti.
Não terá sido por acaso que Roma, portanto, mesmo distante da região onde os primeiros casos foram registados, tenha manifestado rapidamente casos de covid-19, antes do esperado: a capital italiana apresenta uma grande concentração de poluição atmosférica. Da mesma forma, o epicentro da pandemia em Itália é talvez a sua região mais poluída, a zona norte, onde se situam Milão, Bréscia, Bérgamo, etc. Essa quantidade exagerada de partículas terá facilitado as infeções.
O investigador e especialista em alterações climáticas Filipe Duarte Santos disse ao i que no que respeita à transmissão da verdade, este artigo tem “um fundamento verdadeiro” e que “pode
existir uma correlação entre a elevada poluição da China e a rápida propagação do vírus, assim como no norte de Itália”.
“O vírus transmite-se mais facilmente numa zona do mundo onde existe uma maior poluição industrial, que é má para a saúde, do que, por exemplo, nos Açores, onde a poluição é muito baixa”, comentou o investigador português.
Não é novidade para a comunidade médica que a presença de partículas PM10 e PM2.5 causem o aumento de infeções virulentas. Este caso já se tinha observado com outras doenças, nomeadamente a pneumonia e o sarampo. Com o coronavírus, funcionaria da mesma forma: as partículas serviriam como uma espécie de transportador do vírus para dentro do sistema respiratório. “Quanto mais partículas finas existem, mais caminhos são criados para as infeções. As emissões de poluentes precisam ser minimizadas”, disse Gianluigi de Gennaro.
“Os dois maiores poluentes à escala mundial são as partículas finas e o N02 [dióxido de nitrogénio]. Um reduz a imunidade, o outro causa problemas respiratórios”, explicou ao i Francisco Ferreira, ambientalista e presidente da associação Zero. “Se pensar que tenho pessoas em ambientes com elevadas concentrações destes dois poluentes, obviamente, essas pessoas estarão mais suscetí- veis ao vírus”.
No entanto, Francisco Ferreira identificou alguns problemas na tese proposta pelos investigadores italianos. “Eles identificam uma relação entre a concentração de partículas e a propagação do vírus com base no facto de nas cidades onde havia essa maior concentração ter havido essa maior propagação”, começou por clarificar. “Acho que isso deve ser visto de forma bastante cautelosa Por vezes temos relações entre variáveis, mas há outros fatores que coincidem. Por isso, deve haver sempre alguma precaução em relação a esses estudos”.
“Não estou a dizer que isto é mentira, o que estou a dizer é que é um período pequeno. Basicamente, olharam para 20 dias e para o caso de Itália e, se calhar, deviam ter olhado também para a China e para outros locais, para perceber se essa relação existe ou não”, concluiu.