A gestora do Global Water Fund da seguradora Allianz reconhece que existem indícios de que os padrões climáticos estão a mudar, o que tem consequências nos recursos hídricos disponíveis. Ainda sem investimentos em empresas portuguesas, Alina Donets recomenda alterar hábitos de consumo e a via da dessanilização.
O Global Water Fund (GWF) é um dos fundos abertos geridos pela seguradora alemã Allianz. É um dos maiores a nível mundial, apresentando um investimento em Utilities de água que representam 30% a 40% da carteira, cujo portefólio de ativos está avaliado em cerca de 600 milhões de euros, com presença pouco expressiva no mercado nacional. Ainda assim, a gestora do GWF, Alina Donets, passou por Portugal e o Jornal Económico aproveitou para saber a sua visão sobre questões como as alterações climáticas ou a escassez crescente no acesso à água.
Qual é a atual dimensão do Global Water Fund em termos de portefólio de ativos e qual tem sido a sua evolução?
O fundo investe em empresas públicas que operam no âmbito da água – compramos ações de companhias cotadas e, como tal, permanecemos acionistas minoritários. Investimos em Utilities de água, que constituem em média 30 a 40% da carteira, sendo o restante composto principalmente por empresas industriais que produzem bens ou serviços que visam melhorar o fornecimento, a eficiência ou a qualidade da água em todo o seu ciclo de água – a partir do ambiente natural, embora utilizado pelas famílias, aos processos industriais e à geração de energia, e até atividades agrícolas. Portanto, não podemos chegar efetivamente a uma única medida da população servida ou da água distribuída, já que somos acionistas minoritários e a maioria das empresas no fundo não fornece serviços de água. O que podemos dizer é que 37% dos nossos ativos sob gestão de 670 milhões de dólares estão atualmente investidos em empresas de serviços de água que servem as pessoas através de Utilities de água e saneamento. Por exemplo, a nossa maior quota é na American Water Works, a maior concessionária de água nos Estados Unidos, servindo mais de 14 milhões de pessoas e planeando investir mais de oito mil milhões de dólares nos próximos cinco anos na manutenção e melhoria da rede de água e saneamento.
Quais são as perspetivas de desenvolvimento do GWF e qual o seu posicionamento atual e futuro no conjunto da Allianz GI e do Grupo Allianz?
Somos um fundo aberto e, como tal, os investidores podem participar e entrar no fundo a qualquer momento. Na AllianzGI fazemos parte da oferta temática, enquanto categorização no âmbito da filosofia de investimento. Mas o mais importante é que caímos também no leque de soluções sustentáveis onde a AllianzGI está a crescer proativamente. Isso decorre do nosso foco em recursos hídricos e investimentos em empresas que criam soluções destinadas a aliviar uma série de problemas hídricos, desde a escassez física, passando pela poluição e até à gestão do recurso à luz das mudanças climáticas e dos alterados padrões históricos de água. E justo dizer que, apesar da idade do próprio tema, continua a ser bastante – se não ainda mais – relevante e, portanto, extremamente apoiado pelo grupo AllianzGI.
Qual é a presença do GWF em Portugal?
Estando limitados ao investimento em empresas cotadas publicamente, atualmente não investimos em nenhuma empresa portuguesa. Enquanto investidores em vários produtores de tecnologia hídrica, podemos ter uma exposição incremental ao mercado português, já que é altamente provável que essas empresas forneçam tecnologia a concessionários portugueses ou a operadores industriais na região. A exposição, no entanto, é provavelmente muito pequena, dado o tamanho relativo de Portugal no contexto global.
Como gestora de um dos mais importantes fundos internacionais do setor das águas, considera que as alterações climáticas existem ou são uma falácia? E porquê?
Não somos cientistas e as nossas opiniões sobre a natureza ou as fontes de alterações climáticas são tão subjetivas quanto a de qualquer outro cidadão. No entanto, o que é muito claro na perspetiva da água é que o seu ciclo e os padrões climáticos estão a mudar. Ambos têm um impacto significativo nos recursos hídricos, na disponibilização de água e na sustentabilidade deste recurso. Por exemplo, em muitos estados dos Estados Unidos as Utilities de água dependem de poços de água como fonte de abastecimento – e, nos últimos anos, a salinidade da água nos poços começou a aumentar em resultado do aumento do nível do mar. As secas prolongadas são outra mudança nos padrões climáticos, trazendo ao Brasil, à Califórnia ou à Cidade do Cabo crises substanciais na água. A infraestrutura e as redes de água foram incapazes de lidar com os acontecimentos, pois foram construídas para operar num ciclo hídrico diferente e, portanto, muitas vezes carecem de planeamento suficiente para atender a novas e desafiadoras circunstâncias. Portanto, sim, as mudanças climáticas estão a afetar os recursos hídricos e exigem ajustes em toda a economia para as novas realidades.
Quais são as grandes oportunidades e ameaças que um gestor de um fundo desta dimensão nesta área de atuação prevê para o futuro próximo e para o médio prazo?
Há três questões-chave que devem ser abordadas: fornecimento, qualidade e eficiência da água. As necessidades de investimento continuam a crescer em todas as três categorias. A medida que a população cresce, mais pessoas precisam do acesso à água. Hoje, alguns países ou regiões têm uma penetração de acesso à água tão baixa quanto 50% – incluindo algumas áreas rurais em Portugal. Com o crescimento da população e a falta de investimento, essa lacuna pode aumentar, representando assim uma oportunidade de investimento. Essa população precisa de ser alimentada, o que faz com que o setor agrícola cresça, trazendo consigo necessidades acrescidas de irrigação. O setor agrícola consome cerca de 70% do uso total de água em todo o mundo e é um dos utilizadores menos eficientes, sendo grande o potencial para a introdução de novas tecnologias em eficiência hídrica. A industrialização dos países emergentes impulsiona igualmente a procura pelo uso de água em processos industriais e na produção de energia. Existem, também aqui, grandes oportunidades para o aumento da eficiência no uso da água e diminuição da poluição da água. Ao mesmo tempo, as alterações climáticas continuam a representar uma ameaça à distribuição de água – no curto prazo, isso representa uma ameaça, pois, por exemplo, as concessionárias brasileiras ou californianas têm lutado para atender os clientes nos períodos de escassez. Porém, a longo prazo, essas ameaças estão a aumentar os investimentos para melhor planeamento, resiliência da rede ou eficiência da água no ponto do utilizador. Por exemplo, a Califórnia introduziu um programa de racionamento durante a seca, pedindo aos consumidores para reduzirem o uso de água em 20% – a longo prazo, este só pode ser alcançado pelo uso de tecnologias mais eficientes no uso da água em descargas de sanitários ou na irrigação do relvado.
De que forma a atividade de fundos de investimento como o GWF pode minorar os efeitos da previsível crescente escassez de água potável para consumo humano?
Investir na eficiência da água, uma das três dimensões do fundo, tem tudo a ver com melhorar a eficiência do uso entre os atores domésticos, industriais ou agrícolas. Uma irrigação por pivot mais eficiente pode tradu- zir-se em 30% de eficiência hídrica junto dos agricultores. A medição da água pode reduzir o consumo e as fugas de água sem receita em dezenas de pontos percentuais, evitando perdas desnecessárias nas redes hídricas. A eficiência no uso de água pela atividade industrial pode ser conseguida através da introdução de sistemas em circuito fechado dentro de um processo de fabricação, reduzindo substancialmente a necessidade de captação de água. Todas estas questões abordam os problemas de escassez.
Por que é que o GWF tem tão pouca presença, pelo menos em termos de escritórios de representação à escala global, em Africa e na América Latina, onde os problemas de escassez de água se sentem de forma mais acentuada? Investimos em empresas de capital cotadas e temos acesso a investimentos globalmente. Infelizmente, isso também implica que estamos limitados nalguns casos, como o do investimento direto em gestores de água em África. No entanto, por meio de investimentos em alguns fornecedores globais de tecnologia, temos um acesso incremental a esse mercado no nosso portefólio. Na América Latina detemos ações de uma concessionária brasileira de água, empresa com grandes necessidades e perspetivas de investimento.
Num país como Portugal, que além de ser extremamente dependente de combustíveis sólidos, tem apresentado de forma cada vez mais intensa uma exposição acrescida a situações de seca em quase todo o território, quais são as recomendações que faz aos decisores públicos e políticos, e aos consumidores em geral, para tentar inverter essa situação?
Geralmente, a regulamentação da água é um tópico político muito sensível, pois é necessário um equilíbrio entre os investimentos (que precisam ser recuperados/financiados pelos utilizadores; isto é, as faturas cobradas às populações servidas) e o acesso a uma necessidade básica (a água é uma social commodity, com todos a terem direito ao acesso a água potável e a serviços de saneamento acessíveis). E difícil debater uma solução fácil e única para esse equilíbrio. Existe um grande sentimento negativo em torno da privatização dos ativos hídricos, pois está frequentemente associado à inflação nas contas de água – resultado inevitável do aumento do investimento. Pela nossa experiência, contudo, os proprietários privados tendem a ter melhor acesso a mais capital, o que significa maior capacidade de melhoria no estado das redes de água. Ao mesmo tempo, porém, a regulamentação deve ser estabelecida de forma eficaz. Primeiro, precisa compensar esses investidores pelo capex [investimento] para garantir investimento suficiente. Em simultâneo, precisa também de incentivar efetivamente o investimento, para tratar as principais questões das redes: seja a penetração das ligações de água e esgoto, o estado dos sistemas de tubagens, a resi- liência às alterações climáticas, a resolução dos problemas de poluição ou, talvez, a redução do custo das operações e fugas de água – um outro equilíbrio sensível. Enquanto recomendação, e de forma abrangente, diríamos que é importante não inibir a participação do mercado privado, mas igualmente garantir que a regulamentação direciona as empresas para os investimentos certos e compensa-os por fazê-lo.
Qual poderá ser o contributo específico do GWF para tentar superar este estado de coisas, no caso especifico de Portugal e a nível global?
Como acionista, oferecemos às empresas acesso a capital flexível que pode ser usado para investimentos. Envolvemo-nos também com as empresas em que investimos, com o objetivo de comunicar claramente as raízes do nosso apetite por estes investimentos, que são as melhorias na gestão de recursos hídricos e os resultados positivos ambientais e sociais subsequentes. Isso é importante, pois acreditamos que os nossos investimentos não levam só à alocação de capital nas empresas que fornecem as soluções, mas também transmitem uma mensagem sobre aquilo que valorizamos enquanto acionista nas propostas das empresas, contribuindo para moldar o foco e a estratégia de negócios de maneira diferente a longo prazo.
Portugal tem rios internacionais com caudais quase secos, devido à crescente prática de transvases por parte de Espanha, único país que divide rios com Portugal. Como é que o GWF encara esta prática de transvases de cursos de rios a nível internacional?
Novamente, tal como acontece com a regulamentação, não existe uma solução única para os problemas da água, e a situação de cada país e de cada concessionária precisa ser avaliada individualmente. O nosso objetivo é apoiar negócios que permitam a resolução usando diferentes tecnologias e soluções, atendendo às necessidades de vários países, Utilities, atores industriais ou comunidades. Estamos a investir em empresas que estão a desenvolver soluções inovadoras no espaço da ‘água inteligente’ e que, entre outras, ajudam as concessionárias de água a gerir a redistribuição da água na rede através de plataformas de software. E importante otimizar a rede de serviços públicos, para garantir que a água está disponível onde é necessária. Em muitas situações, também é necessário desviar as fontes de água para garantir acesso suficiente ao recurso. No entanto, este é um assunto delicado, já que esse projeto pode ser desafiante em termos de biodiversidade e de outros riscos ambientais e sociais associados. Para países com acesso restrito a fontes de água doce, a dessalinização ou a reciclagem de água geralmente podem servir como solução alternativa. Por exemplo, Singapura é reconhecida como líder na gestão de recursos hídricos, não tendo acesso a recursos diretos de água doce. A dessalinização e a reutilização de água são duas estratégias credíveis e que podem ajudar o país a atender às necessidades de água. Investimos em empresas que criam e fornecem soluções de dessalinização ou opções de tratamento para reutilização de água. Por exemplo, a Xylem tem grande reputação no fornecimento de soluções de tratamento à medida para empresas de serviços públicos em todo o mundo, incluindo as instalações em Singapura ou noutros sítios no mundo, que permitem que empresas de serviços públicos reciclem as suas águas residuais num sistema de circuito fechado. A Xylem representa um investimento de 7% no nosso fundo. Obviamente, todas as soluções alternativas precisam de regulamentação eficaz e com uma visão de longo prazo, exigindo ainda grandes investimentos. Assim, em cada caso, a adequação precisa ser avaliada cuidadosamente.