Com a greve dos camionistas sem fim à vista o executivo decidiu accionar uma rede estratégica de 310 postos de abastecimento em todo o país. Costa e Marcelo atentos aos sinais de escalada da crise
Greve provoca efeito dominó “crítico” na economia
Bens essenciais ainda não faltam nas prateleiras dos supermercados, mas especialistas em logística dizem que tudo se pode desmoronar “numa questão de horas”. Governo accionou rede estratégica com 310 postos de abastecimento, com o público em geral a ter direito a 15 litros por veículo
É tudo uma questão de horas. A crise do abastecimento de combustível provocada pela greve dos motoristas de matérias perigosas é um assunto “demasiado sensível” para não ser resolvido com ponderação e serenidade. Mas tem implicações demasiado rápidas para que se possa arrastar no tempo. Jaime Vieira dos Santos, presidente da Comunidade Portuária de Leixões e especialista em logística, não escondeu, em declarações ao PÚBLICO, a sua preocupação face ao “momento grave” que vive o país, e prevê que “será numa questão de horas” para que as cadeias de abastecimento a toda a economia comecem a mostrar a sua fragilidade. É como um jogo de dominó, em que caiu uma peça de cada vez.
Ontem, no final do dia, o Governo avançou com a criação de uma rede de abastecimento prioritária com 310 postos de combustível “que cobrem todo o território nacional”. Os postos (não identificados no comunicado ontem emitido) da REPA-Rede Estratégica de Postos de Abastecimento, “ficam obrigados a reservar, para uso exclusivo das entidades prioritárias, uma quantidade de 10.000 litros de gasóleo, ou 20% da sua capacidade, 4000 litros de gasolina e 20001 de GPL-auto”.
Como prioritários define o executivo as Forças Armadas, as forças de segurança e os agentes de protecção civil; serviços de emergência médica e transporte de medicamentos; entidades que prestam serviços públicos (desde transportes a telecomunicações e recolha de resíduos); e o transporte de pessoas portadoras de deficiência. Para o público em geral, e fora daquele grupo prioritário, “os postos de abastecimento REPA participam no abastecimento”, fixando o Governo nos “15 litros o volume máximo de gasolina ou gasóleo que pode ser fornecido a cada veículo automóvel”.
Just in time ultrapassado
“A logística desenvolveu-se e organizou-se de tal forma que já não estamos a falar do just in time, de um determinado produto chegar a tempo. A logística esta a organizar-se para dar resposta aos consumidores que, numa era digital, procura não o just in time mas o just now. Actualmente, não há stocks de quase nada. As rupturas são praticamente automáticas, acontecem numa questão de horas”, alerta Vieira dos Santos.
Enquanto dirigente da Comunidade Portuária de Leixões, o especialista confirma que naquela estrutura portuária do Norte o impacto é quase nulo. Foi isso mesmo que fonte oficial da Administração dos Portos de Douro e Leixões (APDL) disse ao PÚBLICO – “Até agora o impacto no Porto de Leixões foi zero”. Uma informação semelhante adiantou fonte oficial do Porto de Sines, que frisou que a greve em curso não tem qualquer impacto na actividade. “Nem esperamos que venha a ter em termos operacionais”, adiantou fonte oficial da Administração do Porto de Sines. “Não tem impacto agora, mas, quando as cargas deixarem de chegar ao cais, ou quando não houver camiões para as tirar de lá, poderão continuar a dizer que o impacto é zero? Temo que não”, conclui Vieira dos Santos, que dá o exemplo das mangas, importadas do Brasil, por avião, ou por barco.
“Elas estão nas prateleiras dos supermercados todos os dias. E chegam ao porto ou ao aeroporto todos os dias, e todos os dias são distribuídas para os mercados abastecedores, para as cadeias de distribuição. Quando o modo rodoviário, que é o responsável pelo porta a porta, falhar porque não tem energia, como é que vamos fazer?”, questiona. A manga é só um exemplo, extrapolável para tudo o que é perecível e consumível.
Saúde pública prioritária
António Nabo Martins, presidente da Associação dos Transitários de Portugal (APAT), defende que a primeira preocupação das autoridades tem necessariamente de estar relacionada com a saúde pública, os acessos aos hospitais, isto é, “a mobilidade dos agentes da saúde e a mobilidade das pessoas”. Mas logo depois vêm todos os outros problemas relacionados com a economia, “problemas trazidos por cargas que não embarcam, aviões que não levantam voo, navios que não zarpam e camiões que não circulam”. “A transversalidade do impacto desta greve é muito crítica. A manter-se, vamos chegar ao ponto de faltarem bens de primeira necessidade nas prateleiras dos supermercados”, prevê Nabo Martins. Acrescenta que esta “greve não é apenas um pormenor, é antes um ‘pormaior’ que pode complicar e muito a vida dos portugueses em todos os sectores da economia”.
Se os bens essenciais ainda não falharam na prateleira dos supermercados, a verdade é que os impactos que esta greve já começa a ter nos vários sectores da economia foram sendo audíveis ao longo de todo o dia, pela voz de várias associações e empresas. Fonte oficial da Mitsubishi, que produz o modelo Canter, disse ontem à Lusa que a fábrica, “devido aos problemas de abastecimento, está a trabalhar no limite”, dando conta de uma situação insustentável a curto prazo. “Se a situação de abastecimento de gás não se normalizar rapidamente, admitimos ter de parar a produção e fechar a fábrica”, avançou a mesma fonte da unidade em Santarém.
A Apifarma – Associação Portuguesa de Indústria Farmacêutica veio a público pedir ao Governo para efectuar uma alteração ao despacho que decretou os serviços mínimos, apelando a que distribuição de medicamentos a hospitais e farmácias seja incluída. “Esta situação torna-se premente, sob pena de ser criada uma grave situação de saúde pública com a falta de medicamentos nos hospitais e farmácias durante o período de greve dos motoristas de camiões de combustíveis”, escreve a Apifarma.
Também a reclamar por ter sido negligenciada no decreto dos serviços mínimos, e no facto de não ter sido incluída na lista das entidades com acesso prioritário ao combustível, surgiu a ARAN – Associação Nacional do Ramo Automóvel, referindo-se às empresas de pronto-socorro. “É do conhecimento da ARAN de que há já várias empresas de pronto-socorro a nível nacional sem acesso a combustível para abastecer a sua frota de reboques, podendo estar na iminência uma paralisação forçada da prestação destes serviços”, alerta a associação, sublinhando o elevado risco de as empresas de pronto-socorro não poderem prestar assistência em estrada, a veículos acidentados, avariados e imobilizados devido à falta de combustível.
Turismo “em dificuldades”
Segundo a AHRESP – Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal, também os empresários do sector já estavam ontem a enfrentar “dificuldades” em assegurar o abastecimento de produtos essenciais devido à greve dos motoristas de matérias perigosas. E que o facto de tal acontecer numa época alta para a actividade turística só faz engrossar as preocupações.
Joaquim Ribeiro, vice-presidente da AHRESP, alertou para “o risco de existir uma fuga de turistas para outros destinos, com prejuízo para as unidades de alojamento turístico e restauração”. Esse risco já se confirmou no Algarve, onde as empresas de rent-a-car já tinham muitas viaturas imobilizadas, e houve mesmo algumas reservas canceladas. “Mais um dia de greve” e, dizem os hoteleiros, “a região fica paralisada”.
A Associação dos Industriais de Aluguer de Automóveis sem Condutor (ARAC) confirma que as empresas de rent-a-car já. se estão a deparar com a impossibilidade de abastecimento dos seus veículos. “Sendo o período da Páscoa uma época alta para a actividade de rent-a-car e para o turismo nacional, as empresas, ao não poderem entregar as viaturas previamente contratadas, incorrerão em prejuízos de grande dimensão para todo o sector”, alerta a associação. A ARAC recorda ainda que há turistas que já alugaram viaturas, e estão neste momento em deslocação pelo país, confrontam-se com dificuldades ou com a impossibilidade de abastecimento das mesmas. “No limite, esta situação poderá conduzir ao abandono de veículos nas estradas do país”, temem.
A Confederação Empresarial de Portugal (CIP) assumiu que já está a haver danos económicos e que estes só podem ser evitados com diálogo. “Mas este [o diálogo] não pode ocorrer numa situação em que toda a economia se encontra refém de uma situação”, escreve a CIP num comunicado em que sugere que a greve seja
Governo accionou a Rede Estratégica de Postos de Abastecimento. Cada veículo tem direito a 15 litros de combustível
Distribuição do PÚBLICO em risco
Se a situação se mantiver tal como está, a edição em papel do PÚBLICO dificilmente chegará às mãos do leitor no sábado. Toda a distribuição de jornais será afectada por esta crise energética e é possível que, em certos pontos do país, haja quebras na distribuição na sexta-feira já. “A partir de quinta-feira, não teremos capacidade de distribuição em algumas zonas do país”, afirma Paulo Proença, da VASP. A distribuição de jornais não faz parte das actividades inscritas nos “serviços mínimos”, logo se a greve continuar não haverá jornais na rua já a partir de sábado.
A transversalidade do impacto desta greve é muito crítica. A manter-se, vamos chegar ao ponto de faltarem bens de primeira necessidade nos supermercados
António Nabo Martins
Presidente da Associação dos Transitários de Portugal (APAT)
Serviços mínimos só começam a ser cumpridos ao terceiro dia
Só ao terceiro dia de greve e, um dia depois de o Governo ter avançado com a requisição civil, é que os motoristas de matérias perigosas começaram a cumprir os serviços mínimos decretados para assegurar “necessidades sociais impreteríveis ligadas ao abastecimento de combustíveis”. O Governo discutia ontem o alargamento dos serviços mínimos, mas perto das 23h a reunião com o sindicato dos motoristas e a associação que representa as respectivas entidades patronais ainda não tinha terminado. Mas antes já o ministro do Trabalho, Vieira da Silva, garantia que mesmo que não houvesse acordo avançaria para um reforço dos serviços mínimos.
Depois de no primeiro dia de greve não terem sido cumpridos os serviços mínimos, o Conselho de Ministros avançou terça-feira de manhã com a requisição civil dos motoristas de matérias perigosas, justificando, apenas a título exemplificativo, na resolução que aprovou que no primeiro dia “não se promoveu qualquer abastecimento de combustível nos aeroportos, implicando, a muito curto prazo, a paralisação dos mesmos, visto que a capacidade de armazenamento dos aeroportos é muito diminuta”. Acrescentava-se que o mesmo podia acontecer “às empresas de transportes públicos que, à falta de postos de abastecimento, são obrigadas a suspender o serviço”.
Apesar dos diplomas publicados pelo Governo sublinharem que tinham “efeitos imediatos”, o Sindicato Nacional de Motoristas de Matérias Perigosas (SNMMP) continuou a sustentar que a requisição civil só se aplicava num prazo de 48 horas. Só uma reunião promovida pelo Governo na terça-feira ao fim da tarde que envolveu o sindicato e a ANTRAM – que até aí não avançara, como lhe competia, com a designação dos trabalhadores que iriam assegurar os serviços mínimos – desbloqueou a situação. Os serviços mínimos começariam a ser respeitados a partir do meio-dia de ontem, o que veio a acontecer.
As razões do protesto prendem-se com o facto de os motoristas terem de ter uma formação especial para transportar matérias perigosas, mas a categoria profissional reconhecida ser apenas a de motorista de transportes pesados. Estes condutores reivindicam o reconhecimento da categoria profissional, uma redução do número de horas de trabalho, bem com uma revisão salarial. Exigem que o salário base, actualmente nos 630 euros seja actualizado para 1200 euros. A ANTRAM faz questão de esclarecer que o salário líquido é muito superior ao salário base, podendo chegar, no caso de um motorista que esteja 12 dias em deslocações que impliquem dormida e 10 dias com direito a ajudas de custos de pequeno-almoço e almoço um valor superior a 1400 euros.
Esta greve ocorre seis meses após a entrada em vigor do novo contrato colectivo de trabalho, acordado entre a Federação dos Sindicatos de Transportes e Comunicações (Fectrans), afecta à CGTP e a ANTRAM, antes ainda do SNMMP ter sido criado. Segundo explicou ao PÚBLICO, José Manuel Oliveira, da Fectrans, durante 20 anos não houve alteração do contrato colectivo. Uma das principais vitórias do novo contrato colectivo, diz, foi integrar um conjunto de pagamentos na remuneração. Manuel Mendes, que também é delegado sindical de um dos sindicatos que integra a Fectrans, diz que na maior parte dos casos os colegas ficaram a perder. “Trabalham 60, 70h por semana e ganham a tal isenção. Mas antes que eram pagos à hora e recebiam mais”, garante, apelidando o acordo de “vergonhoso”.
O ministro do Trabalho, Vieira da Silva, disse que mesmo sem acordo avançaria o reforço dos serviços mínimos
Governo e Marcelo atentos a sinais de escalada da crise dos combustíveis
António Costa apelou à “serenidade”. Objectivo é evitar aceleração dos efeitos da greve e possíveis contágios
Cinco ministros, o primeiro-ministro e até o Presidente da República estão envolvidos desde há três dias na crise dos combustíveis. A preocupação segue em várias frentes, não só na paralisação do país por falta de combustível, mas também por esta se poder tornar uma questão mais abrangente de segurança ou haver uma aceleração dos efeitos da greve. Existirá, entre outros factores, o receio de que a greve dos motoristas de transporte de mercadorias perigosas extrapole e contamine outros condutores de pesados.
Daí que ontem tenham existido várias reuniões, incluindo uma de urgência do Sistema de Segurança Interna, da qual saiu um comunicado a informar que a situação “está a ser acompanhada através de gabinete constituído para o efeito”, que inclui as várias forças e serviços de segurança e as “entidades que constituem o Gabinete Coordenador de Segurança”.
Para evitar uma escalada e a ruptura de serviços essenciais no país, o Presidente da República defendeu que o Governo deve intervir no conflito que está na origem da crise para garantir duas coisas: primeiro, que os serviços mínimos são efectivamente cumpridos, e depois que a questão de fundo que opõe patrões e motoristas comece a ser resolvida rapidamente. “O Governo deve fazer tudo para fomentar um acordo real, porque isto é um conflito privado mas com interesse público inegável”, afirmou Marcelo Rebelo de Sousa ao PÚBLICO. “Tem de se garantir que existe um verdadeiro acordo e não um acordo aparente”, acrescentou.
Sob pressão, o primeiro-ministro apelou ontem à tarde à “serenidade” e “bom senso” dos cidadãos na hora de abastecer e garantiu que o Governo iria “assumir a responsabilidade” de estender os serviços mínimos a todo o país, mesmo se as partes não chegassem a acordo na reunião entre a Antram e o Sindicato dos Motoristas de Matérias Perigosas (SMMP), que ainda decorria no Ministério do Trabalho e da Solidariedade à hora de fecho desta edição. A partir de Braga, António Costa afirmou esperar que a situação ficasse resolvida e que, “tão breve quanto possível”, as partes envolvidas no conflito laboral se sentem à mesa e a greve possa ser superada.
Foi a partir do momento em que o direito à greve extrapolou e resultou em incumprimento dos serviços mínimos que houve uma acção mais visível do Governo, a requisição civil de terça-feira de manhã, resultado da coordenação nessa madrugada de alguns ministérios.
Ontem, as acções mais visíveis seriam a imposição do alargamento a todo o país dos serviços mínimos de abastecimento de combustível e já durante a noite, o Governo definiu uma Rede Estratégica de Postos de Abastecimento (REPA), de 310 postos de combustível que ficam obrigados a reservar para as “entidades prioritárias”, pelo menos, uma unidade de abastecimento. Nessas bombas, o público poderá continuar a abastecer, mas limitado a 15 litros por veículo.
Do ponto de vista da acção do executivo, a narrativa que passou dentro dos gabinetes – e que foi depois enfatizada por António Costa – é que esta é uma greve “entre privados”, que os instrumentos para interferir são limitados e o Governo usou-os todos quando podia agir legalmente. Mas no Governo lembra-se que tem havido uma “inflexibilidade” total de ambas as partes. Ou seja, a Antram não aceita negociar enquanto a greve não parar e do lado dos sindicatos não aceitam parar a greve sem sinais que haja negociação.
Dentro do Governo, o assunto está a ser acompanhado por um núcleo de coordenação que integra todos os titulares das pastas sectoriais envolvidas, Ambiente, Economia, Infra-estruturas, Administração Interna e Trabalho. E rejeita-se a ideia que a presença constante de diferentes ministros cause a sensação de desorganização. Para evitar aquela percepção, o primeiro-ministro fez questão de assumir todas as responsabilidades na sua primeira aparição desde o início da “crise energética”, no debate quinzenal na Assembleia da República: “O responsável sou eu através dos ministros competentes para cada uma das áreas”, disse, em resposta à líder do CDS-PP.
Para a equipa de António Costa há vários espinhos nesta greve, a começar pelo impacto eleitoral que pode ter a paralisação do país por mais tempo. Por outro lado, tratando-se de um Governo do PS, os responsáveis apressaram-se a lembrar que é preciso “respeitar o direito à greve”, como disse o ministro do Trabalho, Vieira da Silva.
No Parlamento, o assunto escaldou o Governo logo pela manhã, com o líder parlamentar do PSD a falar num “país em sobressalto” e a presidente do CDS-PP a acusar o primeiro-ministro de “correr atrás do problema”. “Não percebo se a direita e pede soluções e isso quer dizer que acompanha a exigência de aumento salarial – o que seria uma novidade -, se está preocupada e quer acabar com o direito à greve”, ripostaria a líder do Bloco de Esquerda.
15 litros de gasolina ou gasóleo é o máximo com que os consumidores poderão atestar os seus veículos na rede de 310 postos de abastecimento criada pelo Governo
Um sindicato de homens “rijos que nem cornos” que não quer nada com políticos
Falam com orgulho da independência que dizem ter de partidos e de sindicatos tradicionais. Garantem que está apenas a ser “sustentada pelas quotas mensais dos associados”. Quem são os homens que estão a lançar a confusão no país?
Pouco mais de uma centena de homens em greve abriga-se da chuva miúda que na manhã de ontem caía sobre o viaduto com vista para a entrada do parque da Companhia Logística de Combustíveis (CLC), em Aveiras de Cima, no concelho da Azambuja. É de lá que, desde terça-feira, estão a sair os “comboios” de camiões-cisterna que garantem os serviços mínimos de abastecimento face à greve do Sindicato Nacional de Motoristas de Matérias Perigosas (SNMMP).
Os homens estão agitados, mas o ambiente é festivo. Trocam entre si risos, gargalhadas, piadas. Gritam e aplaudem sempre que chega um camião-cisterna com uma folha de papel no vidro frontal com a frase “serviços mínimos obrigatórios”. “Este é dos nossos e está a cumprir os serviços mínimos.” Sempre que interpelados pelos jornalistas, dirigentes sindicais ou simples filiados, repetem a mesma frase: “Estamos a cumprir na íntegra os serviços mínimos impostos pelo Governo.” Querem claramente que esta mensagem passe sem equívocos. “Não há qualquer violação à lei”, assegura ao PÚBLICO Pedro Henriques, que acumula as funções de advogado do sindicato com a de vice-presidente do mesmo.
Perto das 12h30 duas dezenas de militares da GNR, alguns munidos de equipamento antimotim, deixam as viaturas paradas no parque da CLC e dirigem-se para junto dos grevistas. A meia dúzia de metros dos sindicalistas, formam uma “barreira” dupla que ocupa toda a estrada e impede os grevistas de saírem do viaduto que os abriga. Do portão da companhia logística começam a sair camiões-cisterna escoltados por viaturas da GNR. Serão sete ao todo. É mais um “comboio” que vai garantir os serviços de urgência de combustíveis, nomeadamente ao Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa. Os grevistas agitam-se, mas o ambiente festivo mantém-se e o “comboio” acaba por ser aplaudido. “Olha, ninguém mandou uma pedra aos camiões”, grita um sindicalista. “Somos gente de paz que apenas luta pelos seus direitos”, acrescenta outro.
Mas afinal quem são estes motoristas de camiões de transporte de matérias perigosas, membros de um sindicato nascido apenas a 8 de Novembro de 2018, criado a partir da associação que agrupava estes motoristas formada em 2017? Quem são estes homens que desde segunda-feira causam uma enorme confusão no país?
“Somos gente de trabalho, de muito trabalho. Somos gente que há 20 anos luta pelos seus direitos, por uma vida melhor, e ninguém ouviu e a quem nunca deram nada. Somos gente de um sindicato onde a política, os políticos e os sindicatos ligados à política não entram. Somos gente de trabalho, homens rijos que nem cornos e vamos levar esta greve até ao fim, porque agora já nos ouvem”, diz entusiasmado Francisco Fidalgo, 54 anos, filiado no SNMMP e que há 20 anos conduz estes camiões.
Este afastamento do SNMMP da política, dos políticos e dos “sindicatos ligados à política”, numa referência clara à CGTP e UGT, há-de ser repetido várias vezes ao PÚBLICO numa clara manifestação de orgulho. “O segredo do sucesso desta greve é o nosso sindicato. É a sua independência. Aqui não há ninguém dos partidos, nem dos sindicatos tradicionais que nunca fizeram nada por nós. Nascemos quase com uma declaração de independência desta gente”, acrescenta Rui Pedroso, 43 anos, camionista de pesados há 22 anos e de matérias perigosas há 15.
Este profissional não esconde que “o sucesso da greve, a confusão que arranjou no país, surpreendeu muita gente” e até “muitos dos sindicalistas”. “Quando éramos uma associação, ninguém nos ouvia. Nem partidos, nem Governo, nem patrões. Passámos a sindicato, continuámos a reivindicar os nossos direitos e ninguém nos dava ouvidos. Há 15 dias dissemos que íamos fazer uma greve. Ninguém nos ligou. Agora, com os efeitos que a greve causou, todos nos querem ouvir. Confesso que não esperava uma greve tão forte, mas teve, de facto, uma grande adesão e agora têm de nos ouvir e de dar uma resposta clara às nossas justas revindicações”, acrescenta Pedroso.
Já passa da 1h30 da tarde. A chuva abrandou e muitos já deixaram o abrigo do viaduto em busca de almoço. Um homem com um colete amarelo onde nas costas está inscrita a palavra “coordenador” avança para os jornalistas e sindicalistas que por ali ainda andam. Nas mãos traz um volumoso livro. “Esta é a nossa Bíblia”, afirma, enquanto bate com a mão direita na capa do livro. A “Bíblia” dos motoristas é a regulamentação da União Europeia e nacional para o transporte de mercadorias perigosas. “Para quem acha que o nosso trabalho não é importante, este calhamaço mostra bem o que somos obrigados a cumprir e as formações que temos de fazer para cumprir o nosso trabalho”, diz António Medeiros, 51 anos, tesoureiro do SNMMP e motorista de pesados há 28 anos.
“Somos gente independente. Não dependemos do dinheiro de ninguém, nem de outros sindicatos e muito menos de políticas. Na direcção do sindicato toda a gente trabalha de borla. Todos trabalhamos para todos. Todos juntos por todos. Este lema também é a razão para a greve ter os efeitos que teve”, diz o tesoureiro.
Medeiros diz que o número de associados do SNMMP é neste momento de cerca de 700 inscritos. São os associados, garante, que “estão a pagar a organização da greve e as necessidades que alguns possam ter”. “O dinheiro vem da quotização mensal. Cada um paga 6,5 euros por mês, pouco mais de 1% do salário base de 630 euros que os camionistas ganham. Este é o único dinheiro que entra no sindicato e que garante a nossa independência”, assegura.
Pedro Henriques, 49 anos, tem-se desdobrado nos últimos dias em entrevistas aos órgãos de comunicação social. É o advogado do sindicato, seu vice-presidente e um dos principais interlocutores das associações patronais e com o Governo. Pedro Henriques concorda que o facto de o sindicato “recusar ligações a qualquer partido político ou organização sindical tradicionais deu força à greve”. “Mostrou que esta gente luta apenas pelos seus direitos que não têm resposta há 20 anos e o faz sem qualquer motivação política.”
A meio da tarde muitos homens continuavam abrigados sob o viaduto com vista para as instalações da Companhia Logística de Combustíveis e para os camiões que dali partiam e ali chegavam. Aos jornalistas iam repetindo que a greve só acaba quando as suas reivindicações forem satisfeitas. “Somos rijos que nem cornos”, haveria de repetir ao PÚBLICO o motorista Francisco Fidalgo.
A união destes homens é grande. Garantem estar a cumprir os serviços mínimos – e por isso aplaudiam sempre que saia um camião-cisterna com destino acordado
Greves a doer “deverão aumentar no futuro’
É a quarta vez no último ano que sindicatos recém-constituídos ou que se mantêm independentes trocam as voltas ao sistema pondo em causa o funcionamento de sectores essenciais e ameaçando mesmo paralisar o país. Está a suceder agora com a paralisação de 700 motoristas do sector privado, liderados por um sindicato que tem apenas quatro meses e que assume com orgulho nada ter que ver com partidos ou com as duas centrais sindicais existentes.
Antes tinha acontecido com os professores com uma greve de mais de um mês às avaliações dos alunos promovida pelo então novo sindicato Stop. Foi assim com os estivadores com uma paralisação entre Novembro e Dezembro, que fez cair as exportações.
E também com a chamada “greve cirúrgica” de enfermeiros dos blocos operatórios, uma ideia lançada por um grupo espontâneo de profissionais que entre Novembro de 2018 e Fevereiro passado levou ao cancelamento de milhares de cirurgias.
Ressalvando não querer fazer “futurologia”, o sociólogo Filipe Carreira da Silva adianta “que este tipo de reivindicação deverá aumentar no futuro, sobretudo se as estruturas sindicais tradicionais não mudarem de forma significativa”.
São greves que têm na base motivos “menos ideológicos do que laborais, já que não visam atacar o governo ou as instituições, mas antes a melhoria das condições de trabalho dos profissionais em causa”, contrariando assim a “agenda ideológica clara” que tem estado sempre subjacente às estruturas sindicais que estão no terreno há décadas, prossegue este investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
Filipe Carreira da Silva frisa que estes novos movimentos pautam-se pela “rejeição de líderes e de mediações partidárias, preferindo a acção directa, descentralizada e casuística”. “Significa isto que estarão mais abertos a acções com o maior impacto possível”, diz. “Se pararmos dois, três dias, pomos Portugal no caos. Temos perfeita noção disso”, assumiu um dos dirigentes do novo Sindicato Nacional de Motoristas de Matérias Perigosas.
Para o dirigente do Sindicato de Todos os Professores (Stop), André Pestana, trata-se de uma equação simples. “Nas greves que não fazem mossa quem se desgasta são os trabalhadores, que perdem salário para quase nada. É por isso, para não serem inócuas, que as formas de luta têm de pôr em causa o statu . É isso que está a ser feito pelos novos movimentos, diz Pestana.E deixa uma garantia: apesar de ter desaparecido dos media, o Stop continua a “inovar”, estando agora particularmente apostado em conseguir que as escolas se tornem em territórios livres de amianto.
A investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra Dora Fonseca, que tem analisado a evolução do sindicalismo e dos movimentos sociais, chama a atenção também para o facto de as greves gerais, que têm sempre “um cariz mais político”, estarem a perder terreno para paralisações sectoriais “com reivindicações mais específicas respeitantes a sectores profissionais concretos”, que têm que ver, por exemplo, com a valorização profissional ou a exigência de salários mais elevados. Por essa razão “precisam de causar algum dano para que as suas reivindicações possam vir a ser atendidas”, adianta.
Sindicalizados em queda
Dora Fonseca lembra, por outro lado, a “ligação indissociável que sempre existiu entre sindicatos e partidos políticos”, para referir que não põe de lado a hipótese de os novos movimentos serem “a expressão de uma força política mais radicalizada que pretende deste modo ganhar presença no mercado de trabalho”. Seja como for, alerta, a multiplicação de novas estruturas, que pode ser um sintoma de que as existentes “não estarão a dar as respostas necessárias”, poderá conduzir ao “enfraquecimento do movimento sindical”.
O que já é uma realidade, como mostram os dados compilados pela base ICTWSS disponibilizada pela Universidade de Amesterdão, que reúne informação sobre o movimento sindical em 48 países. Os últimos dados dizem respeito a 2014. Nesse ano, somando sector público e privado, o número de trabalhadores sindicalizados rondava os 723 mil, o que representa 18,5% dos profissionais assalariados. Em 1990, com 900 mil sindicalizados, esta proporção era de 28%.
“As sociedades e as economias têm mudado de forma acelerada e aquilo que funcionava há 50 ou 100 anos dificilmente vai ter hoje os mesmos resultados”, alerta Filipe Carreira da Silva. E deixa outro aviso decorrente deste: “O mundo do trabalho está a mudar e os sindicatos têm de acompanhar essa mudança sob pena de ficarem para trás.” É o que se passa, por exemplo, em relação ao universo em crescimento dos trabalhadores precários, que pouco acolhimento tem tido entre os sindicatos tradicionais, embora representem já 22,3% da população empregada.
Consequências das greves estão a ser mais graves