24.07.2019
A AEPSA debateu recentemente os desafios da eficiência e da regulação no setor da água e apresentou um estudo da Deloitte que faz uma avaliação globalmente positiva ao papel dos operadores privados. O estudo é interessante e concordo com as 5 oportunidades de melhoria finais. Mas seria mais convincente se fizesse uma abordagem alargada e identificasse também os pontos fracos endógenos, propondo medidas corretivas.
De qualquer forma, também eu faço, como tenho afirmado frequentemente, uma avaliação globalmente positiva da entrada dos operadores privados no setor, que se reiniciou há 25 anos. Essa convicção resulta da minha vivência profissional, nomeadamente de 12 anos como regulador.
É importante relembrar que os operadores privados vieram permitir a introdução da concorrência no momento concursal, num mercado tipicamente monopolista. Deram muito mais relevo à preocupação com a melhoria da eficiência dos serviços, nomeadamente para reduzirem custos. Permitiram um maior potencial na utilização continuada do benchmarking, pois mostraram ao sector como era possível melhorar, e foram os primeiros a desenvolver internamente indicadores complementares. Trouxeram uma nova visão e cultura empresarial ao setor. Os operadores privados estrangeiros permitiram a incorporação de conhecimento externo e de experiências de sucesso, enquanto que os operadores privados nacionais vieram promover o desenvolvimento de conhecimento endógeno e foram criando também experiências de sucesso. O que há de errado nestas mais valias? Ou será, por exemplo, que a cultura empresarial é pecado?
É também importante deixar claro que os operadores privados têm feito o caminho das pedras, por vezes debaixo de vitupérios gratuitos, resultantes frequentemente de manipulação, de visões ideológicas extremadas e mesmo de ignorância. Eles merecem ser tratados com respeito e equidade, à semelhança de todos os outros operadores, nomeadamente pelo poder político e pelo regulador, o que infelizmente nem sempre tem acontecido.
Tomemos como exemplo a questão tarifária. Como é sabido, contrariamente ao que se passa no setor privado, grande parte das entidades gestoras públicas não tem cobertura total de custos, sendo fortemente subsidiada pelos orçamentos municipais, nacional e europeu, o que contaria o princípio do utilizador/pagador. Esta questão tarifária é um dos maiores problemas do setor e corresponde a um dos poucos casos de insucesso do setor em Portugal, sem prejuízo de algumas melhorias conseguidas pelos municípios mais esclarecidos e corajosos. A insuficiência tarifária contribui dramaticamente para a insustentabilidade crónica do sector e põe despudoradamente em causa as gerações vindouras.
A questão tarifária é um bom exemplo da enorme injustiça entre operadores privados e públicos. Os operadores privados praticam tarifas realistas resultantes de um processo público concursal. Mas um número ainda significativo de operadores públicos pratica tarifas irrealisticamente baixas e insustentáveis e, o que é também lamentável, têm a desfaçatez de afirmar publicamente que o seu serviço é mais barato, quando obviamente essa comparação é falseada. Esta situação alimenta a demagogia na discussão das opções entre gestão pública e privada. Alimenta também uma hostilidade potencial da opinião pública face ao setor privado.
O atraso de 5 anos na aprovação do regulamento tarifário não ajuda a resolver a questão tarifária. Efetivamente, continuando a existir uma injustificada disparidade das tarifas dos serviços de águas aplicadas aos utilizadores finais nos vários municípios e uma indesejável falta de condições de sustentabilidade em muitas entidades gestoras, onde aparentemente falta a coragem política para assumir essa necessidade, o regulamento tarifário teima em não ser aprovado.
Sendo certo que o setor privado tem competências, sabe procurar a eficiência e tem capacidade de financiamento, porque se criou um ambiente em que os concursos de concessão têm estado estagnados? O que deve ser feito para inverter a situação? Como poderá ser melhor aproveitado este valor pelo País?
No mercado nacional, isso depende da efetiva vontade política de participação do setor privado. Depende também de uma postura regulatória de tratamento equitativo de todos os tipos de operadores e de estabilidade regulatória. Depende da capacidade de tornar as regras e os procedimentos mais claros na contratação de privados. Depende da seriedade que se consiga inserir na discussão pública sobre o papel dos privados. Depende da continuidade de produção de informação credível que permita o benchmarking sério entre operadores públicos e privados. Depende do reforço de capacidade das entidades públicas para gerirem concessões, com contratos naturalmente complexos, sejam elas as entidades titulares dos serviços ou as autoridades do setor. Em vez de esbracejarem, algumas entidades deveriam investir as energias e o dinheiro de todos nós no reforço de competências nessas áreas. Por exemplo, deviam trabalhar numa melhor partilha de riscos e de benefícios.
No mercado internacional, a internacionalização é uma oportunidade e em alguns casos uma realidade, num sector que é uma prioridade em quase todas as regiões do mundo. É o setor privado que tem a flexibilidade de atuação necessária num mercado internacional competitivo e que adquiriu experiência num contexto que nunca lhe foi fácil. A estratégia deverá ser bem pensada e combinada, com uma abordagem de mercados bottom-up, a cargo das empresas, e outra top down, a cargo do Governo, nomeadamente da Secretaria de Estado da Internacionalização.
Contudo, o setor privado tem também as suas culpas. Para vingar, tem que mostrar não apenas competência, mas também uma postura ética irrepreensível e responsabilidade social. Tem que rejeitar comportamentos oportunistas e não se envolver em situações de corrupção, que são transversais à sociedade. Tem que entender que comportamentos inaceitáveis de alguns mancham facilmente a reputação de todos. Tem que ser um dos maiores interessados em regras e procedimentos claros.
Nunca trabalhei no setor privado de gestão de serviços nem tenho planos para isso. Limito-me a pensar pela minha cabeça no que julgo melhor para o meu país. Os operadores estatais e municipais são e serão agentes importantes do sector. Mas o eventual, felizmente não espectável, desaparecimento da participação do setor privado na gestão dos sistemas de águas em Portugal seria, a meu ver, uma perda clara para o setor, um verdadeiro retrocesso.
A AEPSA, a meu ver, pode e deve ter um papel ainda mais ativo neste processo.
Jaime Melo Baptista, engenheiro civil especializado em engenharia sanitária, é Investigador-Coordenador do LNEC, Coordenador do Lisbon International Centre for Water (LIS-Water), vogal do CNADS e Presidente do Conselho Estratégico da PPA e foi Comissário de Portugal ao Fórum Mundial da Água 2018. Integrou o conselho de administração e o conselho estratégico da IWA. Foi presidente da ERSAR (2003-2015), dirigiu o Departamento de Hidráulica (1990-2000) e o Núcleo de Hidráulica Sanitária (1980-1989) do LNEC, foi diretor da revista Ambiente 21 (2001-2003) e consultor. Foi distinguido com o IWA Award for Outstanding Contribution to Water Management and Science.