A cientista coordena um dos grupos de trabalho do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC). Em entrevista ao PÚBLICO, diz que nenhum país é exemplar na mitigação das alterações climáticas
Joana Portugal Pereira saiu de Portugal em 2008, logo depois de concluir a licenciatura em Engenharia do Ambiente no Instituto Superior Técnico. Na última década, já pisou três continentes. Viveu em Tóquio, onde fez um doutoramento, passou pela Universidade das Nações Unidas, esteve na Universidade Federal do Rio de Janeiro e foi consultora do Governo brasileiro para definir a meta do Brasil para o Acordo de Paris em 2015.
Agora, aos 36 anos, está de volta à Europa. Trabalha no Centro para a Política Ambiental na Imperial College, em Londres. É professora, especialista em modelação de sistemas energéticos e avaliação ambiental de inovações de baixo carbono e uma das cientistas seniores que coordenam o grupo de trabalho dedicado à mitigação das alterações climáticas do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, na sigla inglesa).
Em entrevista ao PÚBLICO, à margem do Encontro Ciência 2019, que decorreu em Lisboa entre 8 e 10 de Julho, fala do trabalho no IPCC – “tem sido uma experiência interessantíssima e uma grande aprendizagem”, mas “muito exigente” – e diz que colaborar com o painel era “um sonho” antigo. E deixa uma crítica à fraca participação portuguesa neste organismo: “Portugal não tem peso político nas decisões do clima. Está muito mal representado no IPCC.”
O relatório mais recente do IPCC, publicado em Outubro, lança o alerta sobre a necessidade de se tomar medidas “sem precedentes” para que a temperatura da Terra não aumente mais do que 1,5 graus Celsius em relação aos valores pré-industriais. Qual foi o seu papel no desenvolvimento deste trabalho?
Essencialmente, garantir que o relatório representa aquilo que a comunidade científica diz. Depois, asseguro que há consistência do primeiro ao último capítulo. O terceiro ponto é estabelecer as pontes e comunicação com o painel dos 195 governos que integram o IPCC.
Qual é o impacto que se espera desse relatório?
Já teve uma grande repercussão. Foi o relatório que teve mais citações nas redes sociais. Foi também o que esteve nas primeiras páginas dos jornais de todo o mundo. É um relatório que salienta a urgência das acções para as alterações climáticas. Não posso estabelecer uma relação directa, mas estou convencida de que foi o documento do IPCC que canalizou esta nova semântica [da emergência climática]. O The Guardian até criou um manifesto sobre como os jornalistas devem cobrir as alterações climáticas, e que devem falar em crise e em emergência.
E está a fazer-se o suficiente para se conseguir alcançar as recomendações que o IPCC fez?
Criámos consciência. Acredito que 90% da população esteja ciente da urgência. Infelizmente, a máquina política é muito lenta. Parece-me que ganhámos o momento, mas ainda não estamos a agir de acordo com o que é necessário.
Então o que é que é preciso?
O relatório dos 1,5 graus diz-nos que é preciso agir em todas as frentes. Temos de implementar as medidas muito rapidamente e a uma escala sem precedentes. O relatório diz-nos que temos de atingir a neutralidade carbónica até 2050. O Governo português já publicou um estudo sobre isso, e vários países, designadamente o Reino Unido, também estabeleceram essa meta. Para isso, precisamos de alterar a nossa matriz de geração de energia eléctrica, mudar a nossa mobilidade urbana, electrificar os veículos. Há que optar por mais modos não motorizados para distâncias curtas. Outra coisa que tenho vindo a focar bastante, e a que o relatório de Agosto [sobre o clima e uso do solo] vai dar muita ênfase, é a questão das dietas. O IPCC não vai dizer que temos todos de deixar de comer carne e sermos vegetarianos. Temos é de repensar os nossos padrões alimentares. Em geral, no hemisfério norte, comemos demasiados produtos derivados de carne, enquanto há outros países em vias de desenvolvimento que têm grande carência proteica.
Mora em Londres. Há diferenças na forma de mobilidade entre a capital inglesa e Lisboa?
Sem dúvida. A expansão de transportes públicos em Londres é muito mais densa. Depois as pessoas têm um estilo de vida muito mais activo. Toda a gente anda muito de bicicleta e a pé. Eu não conheço ninguém em Londres que tenha carro. Até porque a própria cidade tem uma espécie de portagem para circular na zona 1 e que agora foi alargada para a zona 2.
Já está fora de Portugal há mais de uma década. Não pondera regressar?
Sim, mas é um bocadinho frustrante entender que o meu trabalho não tem tanta visibilidade aqui. Infelizmente, Portugal não tem peso político nas decisões do clima. Está muito mal representado no IPCC. Isso é uma coisa que eu gostaria muito que viesse a mudar. A tutela do IPCC e do clima é coordenada pelo Ministério do Mar através do IPMA [Instituto Português do Mar e da Atmosfera]. Portugal nunca envia nomeações de autores para o IPCC e as pessoas só podem ser seleccionadas para fazerem parte destes relatórios quando são nomeadas. Não há representantes portugueses no bureau do painel [o órgão de gestão do IPCC] e nas negociações a que eu assisti nunca vi delegações portuguesas.
Isso é sinal de desinteresse?
Não. Até acho que é bastante contraditório. Já houve alertas de vários políticos, e estas eleições europeias tiveram claramente o peso do clima e da emergência climática. Há vontade política, estamos no momento, e a população está muito alerta para estas questões. Falta coordenação dos quadros técnicos. Os prazos são muito apertados.
Há algum país exemplar na mitigação das alterações climáticas?
Não, mas a Alemanha é um país líder. Os países escandinavos também. O Brasil, até esta viragem de governo, também era. Os avanços do Brasil na redução de taxas de desflorestamento, aumento das renováveis nas energias, eficiências de transporte.
E os Estados Unidos?
É um caso interessante. Enquanto temos uma administração federal que é como sabemos, ao nível estadual há um movimento muito forte e muito alerta a implementar estratégias muito específicas de alterações climáticas. É essa a esperança que também temos no Brasil. Apesar da mudança e reestruturação nos quadros de alto nível, as equipas técnicas de negociadores são as mesmas.
O grupo de trabalho a que pertence foca-se precisamente na mitigação das alterações climáticas, a redução da emissão de gases com efeito de estufa e a sua remoção da atmosfera. Quais as soluções mais inovadoras neste momento?
O relatório do 1,5 dá muito peso à necessidade da utilização de tecnologias de captura de carbono, quer em unidades industriais de carvão e extracção de petróleo, quer depois na base biológica através de aflorestamento, reflorestamento e expansão da área de energia. A captura e o sequestro de carbono são uma inovação. A questão de aflorestamento e reflorestamento não é. Mas as tecnologias de remoção e sequestro de dióxido de carbono terá de fazer parte do nosso portfólio, mas infelizmente temos pouquíssimas unidades piloto em funcionamento e não estão a ser canalizados os investimentos necessários para termos a implementação que a estabilização da temperatura em 1,5 graus Celsius nos indica.
Em Agosto vão apresentar o tal relatório sobre o uso do solo. É possível avançar já algumas conclusões?
Vamos apresentar questões muito específicas sobre os potenciais conflitos e sinergias entre expansão de bioenergia e captura de carbono de base biológica com o uso do solo e de serviços de ecossistema (disponibilidade de água, biodiversidade, segurança alimentar). A questão das dietas vai ser fundamental. Os perigos e a necessidade de adaptação para expansão de áreas degradadas e desertificadas e como é possível reverter a desertificação de ecossistemas também.
Voltando aos métodos de trabalho do IPCC. Como é que são produzidos estes relatórios?
Já ouvi críticas que dizem que os relatórios do IPCC são lentos e pesados. Eu própria também me perguntava isso, até ao ponto em que faço parte do processo. A um passo na ciência equivale sempre outro na política. Primeiro, é discutido o tema do relatório num plenário com os 195 países. Depois, há uma reunião com cientistas seleccionados – e é aí que não há presença portuguesa – e definimos o índice do relatório. De seguida, voltamos à plenária política para aprovar o índice. Depois, temos uma janela de cinco meses para nomeações de autores do relatório que vão reunir-se quatro vezes. Após cada um desses encontros é submetido e desenvolvido um esboço do relatório que é aberto para consulta pública mundial. Eu agora tenho em mãos 20 mil comentários do relatório do uso do solo. Depois disso, submetemos documentos finais aos governos, que normalmente nos pedem dois ou três meses para rever.
Se é um documento científico, porque é que temos de ter o parecer dos governos?
O IPCC não é politicamente prescritivo; é politicamente relevante. Não substituímos unidades nacionais de política. Agora, porque é que há influência política? Para ter impacto.
O IPCC não é politicamente prescritivo; é politicamente relevante. Não substituímos unidades nacionais de política. Agora, porque é que há influência política? Para ter impacto
“Temos feito um esforço para aumentar a representação de autoras femininas no IPCC”
Quantas pessoas trabalham na equipa do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas em que está integrada?
Temos representações para a mitigação em Londres e na índia. Em Londres somos 12 e na índia temos um número equivalente.
E de que nacionalidades?
Há pessoas do Reino Unido, mas também de outras partes do mundo. Nisso, o Reino Unido é incrível, abre portas para todas as pessoas e apoia as pessoas que têm valor e potencial, olhando para o passaporte depois – mais uma vez, estas coisas estão a mudar -, mas até então sempre foi assim. Nunca senti a mínima discriminação por ser estrangeira. No IPCC temos um excelente balanço regional. Agora, neste relatório do uso do solo, temos uma representação de 51% de países do hemisfério sul. Podíamos era trabalhar mais no balanço de género.
Então o balanço de género?
Neste relatório, temos, grosso modo, uma representação de um terço de mulheres. É pouco. Está muito aquém dos 50% desejados, mas se compararmos com o primeiro relatório de 1990, em que tínhamos 12 mulheres num universo de 200, parece-me excelente. Temos vindo a fazer um esforço muito grande para aumentar a representação de autoras femininas. A prova de que o IPCC está, de facto, alerta para essa questão é que, no ano passado, foi criado um grupo de trabalho especificamente para promover a igualdade de género no IPCC. Não só na representação de cientistas nos relatórios, mas também nos quadros do IPCC.
E estas mulheres estão em posições de liderança?
Os 30% de mulheres estão na base da pirâmide, não estão nos lugares de liderança. Há pouquíssimas mulheres (penso que 19%) que são coordenadoras dos capítulos e que, portanto, estão na liderança. Se formos pensar nos quadros políticos e técnicos do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, pela primeira vez neste ciclo temos duas mulheres. Até então nunca houve nenhuma. É minoritário, sem dúvida, mas partiu-se do nada para um número baixo.
E o facto de haver poucas mulheres representadas faz com que as propostas apresentadas sejam diferentes?
Sem dúvida. As mulheres são afectadas de forma diferente dos homens para as alterações climáticas. Depois, a nível de conteúdo do relatório, as mulheres estariam atentas a outras questões. Mas também a nível de processo e de organização, claramente as mulheres têm uma forma de cooperação e de trabalho em equipa muito diferente dos homens. Os estudos indicam que a melhor forma de se ser eficiente e produtivo é ter equipas mistas.
De que maneiras diferentes é que as mulheres são afectadas pelas alterações climáticas?
Em geral, as alterações climáticas vão afectar mais as pessoas de rendimentos mais baixos e há mais mulheres a fazer parte deste grupo. Também são as mulheres, sobretudo do hemisfério sul, que mais tempo passam em casa e que mais estão dependentes do sector primário (agricultura e floresta) – que sabemos que será um dos sectores mais afectados. Em Janeiro, saiu um artigo na revista Nature que comparava acções de revitalização de ecossistemas florestais com e sem o envolvimento de mulheres das comunidades. O resultado mostra que a participação das mulheres é benéfica.