Em entrevista, Luísa Magalhães (engenheira ambiental) e Sofia Santos (economista) explicam que um dos grandes pilares da economia circular prende-se com utilização eficiente dos recursos e das matérias-pri- mas e, por isso, urge o desenvolvimento e acompanhamento de estratégias e soluço es para a gestão de resíduos em Portugal.
P – Quais as principais políticas ambientais e estratégias que tem vindo a ser aplicadas em Portugal ao nível dos resíduos sólidos urbanos?
Luísa Magalhães – Um dos grandes pilares da economia circular prende-se com a utilização eficiente dos recursos e das matérias-primas e, por isso, urge o desenvolvimento e acompanhamento de estratégias e soluções eficientes para a gestão de resíduos em Portugal. Adicionalmente, é cada vez mais importante dissociar o crescimento económico da produção de resíduos, pelo que é fulcral incentivar a economia circular. O PERSU 2020+ constitui o ajustamento às medidas vertidas no Plano Estratégico para os Resíduos Urbanos (PERSU 2020), instrumento estratégico do setor, que apresenta a principal trajetória e o esforço na concretização das metas estabelecidas. No entanto, considera-se relevante a implementação de Planos como o PAEC, aprovado em dezembro de 2017, que promovem a circu- laridade dos diversos setores.
P – É essencial produzir menos resíduos sólidos urbanos e incentivar a reciclagem. Como é que conseguem contrapartidas em função dos resíduos que produzimos? Quais os incentivos para que se consigam atingir as metas e os objetivos associados às políticas ambientais?
LM – A produção de resíduos urbanos (RU) crescente pode estar associada ao aumento do rendimento das famílias e do turismo. Em 2018 foram produzidos cerca de 4,94 milhões de toneladas de RU, mais 4% do que em 2017, correspondendo a 1,38 kg/hab/dia. O país já apresenta infraestruturas em termos de recolha seletiva multimaterial, no entanto a recolha seletiva ainda é muito baixa, tendo sido em 2018 apenas 18,1 % .2 Ainda existe uma grande dependência do aterro, representando cerca de 50% do destino final e de Tratamentos Mecânicos e Biológicos como processos intermédios, que prejudicam a qualidade final dos resíduos produzidos. Não obstante, a taxa de deposição em aterro é muito baixa, o que desincentiva a recolha seletiva. E necessário promover a adesão da população para hábitos de consumo e separação de resíduos. Em Portugal não existe um modelo de pagamento adequado ao custo real da gestão de tratamento de RU que reflita o impacto do comportamento do cidadão. O modelo do pagamento da taxa de resíduos associada à fatura da água poderá não ser a melhor solução. A sensibilização e o incentivo do cidadão poderão ser estimuladas através de iniciativas co
mo o PAYT – Pay As You Throw.
A questão da qualidade dos resíduos é fundamental para alcançar as metas. A Associação Smart Waste Portugal, em parceria com a AEPSA, está a promover um grupo de trabalho no setor da recolha de resíduos, numa perspetiva de criar valor, tornar mais eficiente, criar negócio e contribuir para as metas. Para tal, pretende desenvolver uma proposta de Caderno de Encargos tipo para os Municípios para os novos concursos para a recolha de resíduos, com critérios diferenciadores.
P – E o que se pode vislumbrar no futuro de modo a que seja assegurada a gestão sustentável dos resíduos sólidos urbanos? As tecnologias podem ajudar? Quais são os desafios para se desenvolver a economia circular?
LM – Os desafios para o futuro passam pela alteração de paradigma linear para circular através de processos de redução, reutilização, reparação e reciclagem. No setor dos resíduos passam pelo cumprimento das metas de reciclagem, da redução da deposição em aterro e da recolha seletiva de novas fileiras como os biorresíduos, têxteis e resíduos perigosos domésticos.
Considera-se que inovação, ecodesign, capacitação e promoção de uma estratégia colaborativa são também fundamentais para a transição para a circularidade, criando assim oportunidades de negócio. O desenvolvimento de tecnologias, bem como a digitalização do setor são fulcrais, na medida que podem apoiar na recolha de dados e na tomada de decisão.
P – Os resíduos sólidos urbanos podem ser considerados recursos. Qual é o potencial económico, ambiental e social da introdução destes resíduos na economia?
Sofia Santos – Sem dúvida que os resíduos sólidos urbanos pode ser recursos. O “lixo” quando é recolhido sele ti vãmente e triado pode dar origem a matérias-primas secundárias, como fertilizantes, combustíveis, a componentes de outros produtos, a novos produtos e a energia limpa. Quando eliminados em aterro, os resíduos perdem todo o seu valor e não representam nenhuma vantagem para a economia, mas sim um potencial risco de contaminação para o ambiente.. Em 2014, a Sociedade Ponto Verde promoveu um estudo, que foi realizado pelo IST e pela 3dri- vers, que demonstrava a mais valia ambiental, económica e social da correta gestão dos resíduos urbanos. Por exemplo, este estudo concluiu que por cada tonelada de embalagem recuperada são criados 190 € de VAB, uma parte significativa da recuperação do valor dos materiais mas a maior parte porque são atividades que substituem empregos e criam empregos.
Não conheço nenhum estudo que identifique o potencial económico, social e ambiental decorrente da máxima utilização dos RSU em Portugal, mas é imediato o reconhecimento de que uma boa gestão dos RSU implicará criação de emprego (no próprio processo), produtos novos ou reaproveitados ou reciclados e que geram riqueza na economia pela sua re-entrada no mercado e pela energia limpa decorrente da queima dos resíduos que não fomos capazes de utilizar de outra forma.
P – A valorização de resíduos em Portugal ainda está abaixo da média europeia. Qual deverá ser o caminho a percorrer neste setor para uma economia mais verde e conseguirmos cumprir as metas e os objetivos?
SS – O grande esforço passa por alinhar a valorização do RU com os princípios da economia circular e com os objetivos do Roteiro
Nacional para a Neutralidade Carbónica em 2050. Assim, antes de mais, devemos fazer todos os esforços para que existam menos resíduos urbanos. Nesse sentido é necessário desenvolver ainda mais política para que uma série de materiais descartáveis, e que terminam nos caixotes do lixo das casas dos cidadãos, deixem de existir à partida. As medidas de proibição aprovadas na AR em 2019 relativamente à disponibilização de alguns plásticos descartáveis, vem precisamente contribuir para uma diminuição dos resíduos. Para que existam menos resíduos urbanos é necessário implementar e massificar as práticas de economia circular nas cidades, desenvolver modelos de negócio de logística reversa onde os resíduos passam a ter um lugar na economia e são encaminhados para a indústria os poder usar (redistribuindo, reaproveitando, remanufaturando ou reciclando). E fundamental também promover a educação dos cidadãos para aumentarem as suas práticas de consumo sustentável, para melhorarem as suas escolhas de consumo e, de certa forma, é fundamental aprendermos a consumir menos e melhor. Após conseguirmos ter a menor quantidade possível de RU, então faz sentido pensar em como valorizar os resíduos que não se conseguem evitar. Neste campo, faz sentido aumentar a proximidade da recolha seletiva aos cidadãos, abrangendo outros tipos de resíduos, como os biorresíduos, têxteis e outros bens reparáveis. Nos biorresíduos, é fundamental garantir a sua recolha mas também a sua transformação em produtos para a economia, como produtos químicos de base biológica, e não só composto. Faz sentido aposta na valorização material, ie, na recolha de papel, cartão, vidro, metal e plástico e no seu envio para os locais certos para a devida reciclagem, e no fim, valorizar energeticamente os resíduos que nos sobram, evitando que vão para aterro. A valorização energética dos resíduos é algo mais positivo do que envio para aterro, obviamente, mas deve ser vista como uma opção no final da cadeia de valor do resíduo, e não como a solução.
P – Não deveríamos pagar a fatura relativa aos resíduos que efetivamente produzimos? De que forma esta mudança de paradigma poderá ajudar na sustentabilidade da gestão dos resíduos sólidos urbanos?
SS – A transição para uma economia circular e neutra em carbono tem de ser justa. Por isso penso que deveríamos pagar a fatura relativamente aos resíduos que produzimos mas de proporciona ao poder económico que temos.
Por outro lado também sabemos que em países como a Suiça onde o pagamento sobre os resíduos sólidos urbanos já existe há muitos anos, leva a que a população tenha efetivamente um comportamento mais rigoroso com a forma como lida com os resíduos que gera. Não é de todo uma medida populista, mas faz todo o sentido ser pensada, pois é indutora de mudanças de comportamento, que podem levar à existência de uma maior preocupação do consumidor em adquirir produtos que não tenham associados materiais desnecessários e descartáveis.
P – Do seu ponto de vista quais são os maiores desafios que se colocam a este nível da gestão dos resíduos sólidos urbanos? E qual é o papel das tecnologias neste setor?
SS – O maior desafio é fazer o certo sendo complexo, versus fazer o simples e com mais retorno financeiro a curto prazo. Ou se- ja, para atingirmos as metas europeias temos de fazer todo o esforço para baixarmos os resíduos urbanos que existem; depois garantir que estes são recolhidos separadamente e que são direcionados para os locais certos de forma a poderem ser transformados e integrados nos processos produtivos de outros bens que serão adquiridos pelas pessoas; só depois é que devemos pensar em produzir energia com os resíduos que sobram. Mas é muito mais simples queimar resíduos do que evitar que eles existam. Mas esse é o caminho certo apesar de complexo. Este é o grande desafio.
Sofia Santos
É economista, especializada em financiamento verde, climático e sustentável com 23 anos de experiência profissional. Iniciou a sua carreira profissional no Merryl Lynch em Londres em 1997 no Research Department. Regressou a Portugal em 2000, tendo trabalhado em ONGs, agencias de noticias, INE e CELPA. Desde 2004 até ao presente tem-se dedicado, na maioria do tempo, a projetos de consultoria na área da sustentabilidade. Desde então alguns dos trabalhos de consultoria foram no setor bancário, setor retalho, pasta e papel, entre outros; desenvolveu também políticas de análise de risco ambiental e social para vários bancos em Cabo Verde, tendo realizado também para Cabo Verde, um levantamento dos fundos climáticos existentes a nível internacional, e o desenvolvimento da estratégia nacional de captação de recursos financeiros climáticos. Tem experiência nos processos associados ao desenvolvimento de Obrigações Verdes bem como de outros produtos financeiros sustentáveis. É membro do Comité de Investimento do Fundo para a Inovação Social. Por vezes o percurso de consultora foi interrompido para trabalhar em locais específicos. Assim, de novembro de 2018 a setembro de 2019 foi técnica especialista no Gabinete do Ministro do Ambiente e da Transição Energética, em Portugal, para os temas do financiamento sustentável e financiamento verde/climático, nomeadamente no âmbito do Roteiro para a Neutralidade Carbónica e para o Plano Nacional de Energia e Clima. Foi coordenadora do Grupo de Trabalho para o Financiamento Sustentável coordenado pelo Ministério do Ambiente e da Transição Energética em parceria com o Ministério da Economia e o Ministério das Finanças. De 2016 a 2018 foi Secretária-Geral do BCSD – Conselho Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável. Dá aulas em várias universidades. Publicou 6 livros sobre economia verde e circular, gestão sustentável e finanças sustentáveis. Tem a licenciatura em Economia pelo ISEG, Portugal (1997); um mestrado em economia pela London University (1999); e doutorado pela Middlesex University, na Inglaterra (2012), sobre como podem os bancos contribuir para o desenvolvimento sustentável.