As atenções estão viradas para os escapes dos carros, para as centrais a carvão, para a refinação de petróleo, para o piástico, até para a carne. E o setor do cimento vai passando pelos pingos da chuva – apesar de ser dos maiores poluidores do mundo
Se a indústria de cimento fosse um país, seria o terceiro maior emissor de gases com efeito de estufa do mundo, atrás da China e dos EUA e à frente da índia – um Estado com 1,3 mil milhões de pessoas. Emite seis vezes mais do que toda a aviação internacional e pouco menos do que o conjunto dos 28 países que constituem a União Europeia. Os 2,8 milhões de toneladas de dióxido de carbono (CQ2) expelido pela produção de cimento correspondem a 8% de todas as emissões da atividade humana.
Nos últimos anos, pressionada pela necessidade de tomar medidas para combater (ou minimizar…) as alterações climáticas, a indústria tem apostado em métodos, técnicas e materiais mais amigos do ambiente, que permitam baixar as emissões. Ainda assim, por cada tonelada de cimento fabricado, são emitidos em média 800 quilos de C02.
Não é fácil reduzir os gases com efeito de estufa: metade ocorrem no processo químico de produção de clínquer, a base do cimento; 40% têm origem nos combustíveis fósseis usados na produção de eletricidade para fazer os fornos funcionarem, e é aqui que será mais realista cortar emissões, recorrendo a fontes renováveis.
Segundo o Acordo de Paris, de 2016, assinado por 195 países, as emissões anuais da indústria de cimento têm de baixar pelo menos 16% até 2030. Isto enquanto continua a crescer a procura de material. Um relatório da organização não governamental britânica Chatham House (uma das mais conceituadas e influentes do mundo) diz que a produção de cimento vai passar de 4 mil milhões de toneladas anuais para 5 mil milhões, nos próximos 10 anos.
É praticamente garantido que as metas globais serão ultrapassadas. O esforço que o setor tem feito (sobretudo na Europa) não chega para compensar o crescimento da procura de cimento. E até há boas notícias, no que diz respeito ao ambiente: o abrandamento da economia chinesa. A China é responsável por 75% do cimento produzido em todo o mundo
nos últimos 30 anos, e aplicou mais cimento em três anos (2011, 2012 e 2013), no pico do investimento em construção, do que os EUA usaram em todo o século XX.
No entanto, outros países estão agora a apanhar o comboio do desenvolvimento baseado no betão. A índia é o mais preocupante, no sentido estritamente ecológico, com a Indonésia a seguir-se – e depois há todo um continente, África, em que o setor da construção está a explodir.
A CAMINHO DO PRIMEIRO LUGAR
“Quando fecharem as centrais térmicas do Pego e de Sines, o cimento será o maior emissor de gases com efeito de estufa em Portugal”, diz Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista ZERO. Atualmente, acrescenta, “o setor é responsável por cerca de 7,5% das emissões líquidas nacionais de gases com efeito de estufa”.
Segundo os dados do Sistema de Licenças de Emissão da União Europeia, a produção de clínquer lançou, no ano passado, 3,972 milhões de toneladas de CÕ2 equivalente (unidade de medição de gases com efeito de estufa), o que representa 40% de todas as emissões da indústria. Como comparação, diga-se que a pasta de papel emitiu dez vezes menos e a aviação, pouco mais de um terço. Só a refinação de combustíveis fósseis se aproximou (3,2 milhões de toneladas). O primeiro lugar foi ocupado, de forma destacada, pela queima de combustíveis, com 16 mil milhões de toneladas de C02. Esta comparação, da Agência Ambiental Europeia, abrange apenas os setores com instalações estacionárias e as companhias aéreas – ficam de fora a agricultura e os transportes terrestres.
Após o fecho das centrais a carvão de produção de eletricidade (a de Sines deverá encerrar ou mudar para um combustível alternativo, como biomassa, daqui a seis anos; a do Pego, daqui a onze), o cimento será efe- tivamente o maior emissor de C02 do País.
Ironicamente, uma das soluções para melhorar o desempenho ambiental da produção de cimento é a incorporação no processo de cinzas das centrais a carvão. Como estas vão desaparecer, pelo menos nos moldes atuais, até 2030, o setor fica sem uma das maté- rias-primas que lhe possibilitariam reduzir as emissões.
“A indústria tem procurado substituir a incorporação de clínquer por outros materiais que permitem diminuir as emissões de processo. Mas essa redução implica sempre alterações na qualidade do cimento, e portanto é limitada”, explica Francisco Ferreira.
Há outras técnicas com potencial, adianta. “A substituição de clínquer por diferentes materiais, o aproveitamento do calor residual do processo, a substituição de coque de petróleo (sobras da refinação) por resíduos de biomassa. E, a longo prazo, captura de C02.”
A captura e sequestro de dióxido de carbono (CCS, na sigla internacional) é uma das grandes apostas do setor para diminuir a sua pegada ecológica. Se os preços descerem, enterrar o C02 pode ser solução. Um relatório recente da Chatham House aponta também nessa direção (juntamente com um investimento em energias renováveis, mais eficiência energética e a utilização de substitutos do clínquer). Aliás, em Portugal, a CCS só faz sentido na indústria cimenteira, a única com uma quantidade de emissões que justifique esta opção.
Mesmo assim, pode não chegar para um investimento deste nível. “A dimensão da indústria cimenteira poderá não ser suficiente para tornar esta alternativa custo-eficaz”, diz o presidente da ZERO.
A RESPOSTA DA INDÚSTRIA
Gonçalo Salazar Leite, presidente da ATIC
-Associação Técnica da Indústria do Cimento em Portugal, assegura que a CCS será, no futuro, uma das formas de minimizar os impactos da produção. “Em Portugal, a indústria tem dimensão para a utilizar”, confirma. “Mas, atualmente, a tecnologia de CCS ainda não é suficientemente madura para ser rentável. É preciso apostar em investigação e desenvolvimento.”
O também presidente da Cembureau
-Associação Europeia do Cimento garante que o setor, na Europa, está a fazer a sua parte, recordando o compromisso da indústria de reduzir as emissões em 80% até 2050, em linha com os objetivos do Acordo de Paris, que tenta limitar o aumento do aquecimento global a 2°C. Entre as medidas que já estão a ser postas em prática, Salazar Leite salienta a eficiência energética e o coprocessamen- to (uso de combustíveis e matérias-primas alternativos com origem em resíduos, em substituição de combustíveis fósseis ou matérias-primas convencionais).
“A indústria cimenteira nacional já substituiu 45% dos combustíveis fósseis por materiais de coprocessamento. Sem problemas, podemos chegar aos 65%; e com algum esforço, 90 por cento. A única barreira é a disponibilidade de resíduos. Já a nível europeu, se 60% dos combustíveis forem derivados dos resíduos, isso significa menos 25 milhões de toneladas de gases com efeito de estufa.” De acordo com um estudo publicado em dezembro pela empresa AVE – Gestão Ambiental e Valorização Energética, o coprocessamento permitiu evitar a emissão de 2,8 milhões de toneladas de C02 nos últimos 13 anos, em Portugal – uma média de 212 mil de toneladas por ano.
O representante da indústria nacional e europeia deixa, no entanto, um alerta: o custo do investimento em tecnologias e materiais mais ecológicos não é partilhado pelo resto do mundo. “Temos um grau de exigência que não existe em mais lado nenhum. E evidente que torna o cimento europeu menos competitivo e pode levar à deslocalização da indústria. Seria bom que todos estivessem sujeitos às mesmas regras”, apela, lembrando os 160 mil postos de trabalho diretos e indiretos do setor dos materiais de construção em Portugal (20 mil deles do cimento e betão).
Gonçalo Salazar Leite recusa o papel de
mau da fita que se atribui ao cimento e cha- ma-lhe “um bem útil”. “É insubstituível”, diz. “É por haver cimento que há saneamento básico e estradas. E é fundamental para nos adaptarmos às alterações climáticas.” O presidente da Associação Europeia de Cimento refere-se a efeitos como a subida do nível do mar e a erosão costeira, para os quais o betão será uma proteção essencial.
“O CONSUMIDOR NÃO LIGA”
Com todas as limitações na redução da intensidade carbónica do cimento, outro caminho seria a construção encontrar alternativas mais ecológicas. Em alguns casos, têm sido incorporados materiais como madeira, ferro e aço (não incluídos no betão). No entanto, o balanço não é claro. Uma estrutura que tenha um tempo de vida muito mais curto, ou feita de madeira com origem em florestas não certificadas, pode facilmente revelar-se menos ecológica do que o cimento.
A pouca sensibilidade do setor da construção para a necessidade de reduzir as emissões é outro obstáculo, aponta a arquiteta Aline Guerreiro Delgado, coordenadora do Portal da Construção Sustentável. “As empresas sabem que o consumidor ainda prefere este sistema estrutural a alternativos, pelo que enquanto puderem continuar a usar o betão e cimento irão fazê-lo. Não lhes interessa informar o consumidor de que usam técnicas menos poluentes ou se preocupam com o consumo de energia e redução de emissões, porque sabem que o consumidor não liga nenhuma a isso.”
Apesar de tudo, tem havido um progresso assinalável. “Muitas empresas começam a utilizar fontes de energia renovável, produção de biomassa, incorporação de resíduos… As cimenteiras, por exemplo, uniram-se para implementar técnicas mais eficazes na queima de combustíveis.” Uma marca portuguesa, lembra, comercializa “um betão mais sustentável, com menos água e introdução de reciclados na mistura de betão”.
O futuro, contudo, passa pela reabilitação, em vez da nova construção, “reaproveitando e reutilizando os materiais existentes”. E há mais, destaca Aline Guerreiro Delgado. “A indústria precisa de apoiar o desenvolvimento de novos tipos de cimento. Quase todos os dias me deparo com investigações nesta área que não saem do laboratório das universidades… Estudos de cimentos de baixo carbono e outros ‘cimentos novos’, que pode
riam eliminar completamente a necessidade de produzir o clínquer.”
O OUTRO LADO DO CIMENTO
Apesar das dificuldades técnicas, tem havido uma evolução positiva na indústria. Por um lado, nas últimas décadas, as emissões médias de C02 por tonelada de cimento baixaram 18 por cento. Por outro, as fontes alternativas de energia devem triplicar, dos atuais 6% para 18%, até 2030, de acordo com o Cenário de Desenvolvimento Sustentável da Agência Internacional de Energia (no âmbito do Acordo de Paris).
E as emissões do cimento são apenas uma parte da questão – a utilização de recursos para fazer betão é outra. Os 10 mil milhões de toneladas fabricadas anualmente fazem deste material o segundo mais usado no mundo, depois da água. Água essa que é, a propósito, um dos recursos mais consumidos pela construção: 10% da que é usada em toda a indústria serve para produzir betão, muitas vezes em zonas do mundo afetadas por secas.
A mineração de areia é outra fenda na sustentabilidade do betão. Além de ser uma ati- vidade controlada por grupos criminosos em várias regiões, está a transformar-se num grave problema ambiental, segundo um relatório do Programa Ambiental das Nações Unidas. “Areia e cascalho representam o maior volume de material sólido extraído globalmente. Formados por processos erosivos ao longo de milhares de anos, estes materiais estão agora a ser extraídos a uma velocidade muito maior do que se conseguem renovar. [Essa atividade] está a ter um grande impacto em rios, deltas e ecossistemas costeiros e marinhos, resultando na perda de terra por erosão fluvial ou costeira e redução do lençol freático.”
Apesar dos impactos, o uso de betão não será atenuado tão cedo. Até 2060, mesmo com o abrandamento da China, a área de solo ocupado por cimento deverá duplicar, impulsionada pela construção na índia, Indonésia e boa parte de África.
Há um lado positivo nesta evolução – mais betão é sinal de maior desenvolvimento, incluindo ganhos assinaláveis na saúde. Vaclav Smil, um investigador checo-canadiano especializado em ambiente e população, calcula que a substituição de soalhos de lama por cimento nas casas de zonas subdesenvolvidas, durante os próximos 40 anos, diminua em quase 80% a incidência de doenças causadas por parasitas. A discussão torna-se quase filosófica: que moral têm os países mais ricos, que enriqueceram à boleia da poluição durante mais de 200 anos, para dizerem aos mais pobres, que começam finalmente a ter uma oportunidade de saírem da miséria, para pararem de se desenvolver – e de darem melhores condições aos seus povos – porque o mundo não aguenta?
ENTRE OS PIORES DA EUROPA
Segundo a Comissão Europeia, Portugal tem uma taxa estimada de reutilização ou reciclagem de resíduos de construção e demolição (RCD) de 5%; descontados os seis países que não disponibilizaram dados, apenas o Chipre está pior, com 1%; a Grécia tem os mesmos 5%; a Espanha, o segundo pior, situa-se nos 14% – quase o triplo de Portugal. Na Holanda, por seu lado, a taxa de reutilização ou reciclagem é praticamente total: 98 por cento. Além da questão ambiental óbvia, há outra boa razão para Portugal melhorar nesta matéria: existe uma diretiva europeia que impõe uma meta de 70% de valorização de RCD… para 2020. Ou seja, daqui a seis meses. Pelos critérios da APA – Agência Portuguesa do Ambiente (diferentes da metodologia da Comissão Europeia), o nosso país “valoriza” 34% dos seus resíduos de construção e demolição. Ainda assim, mesmo que fossem aceites os cálculos da APA, é dado como impossível atingir os 70% exigidos. No entanto, o Estado português defende que a “recuperação paisagística de pedreiras” deve ser considerada valorização de RCD. Ou seja, que tapar buracos em pedreiras tenha o mesmo valor que reutilizar ou reciclar os materiais.