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O Governo apresentou ontem a estratégia “Água que Une”, um plano de cinco mil milhões de euros a investir até 2030 para garantir a gestão sustentável da agua no país. A meta é reduzir perdas em 35%, aumentar o armazenamento e reforçar o regadio em 30%, além da construção de novas barragens. Para o primeiro- ministro, está em causa “uma transformação estratégica e estrutural do país”
Governo quer construir barragens e reduzir perdas de água em 35%
Primeiro-ministro apresentou plano de cinco mil milhões de euros até 2030: visa aumento de 30% de água para o regadio
“Não temos tempo a perder. Sobram-nos menos de cinco anos para cumprir os objectivos até 2030”. Foram várias as vezes que o primeiro-ministro, Luís Montenegro, repetiu esta frase ontem, em Coimbra, onde presidiu à apresentação da Estratégia Nacional “Água que Une”, que o Governo considera “um compromisso de longo prazo para garantir a gestão sustentável dos recursos hídricos”. Quase tantas vezes como repetiu a ideia de solidariedade entre autarquias, como forma de conseguir a tão almejada coesão territorial, agora orientada para os recursos hídricos.
Escusando-se a falar de outras crises, Montenegro limitou-se à crise hídrica e climática, perante uma sala repleta (apesar de a sessão ter sido anunciada apenas no dia anterior) de dirigentes partidários e autarcas do PSD que não deixava esquecer o momento político actual, num sinal de apoio ao líder. A estratégia “Água que Une”, explicou o chefe de Governo, partiu de “uma velha questão” com a qual foi confrontado “quando andava a percorrer o país”: a gestão da água. Em muitas ocasiões foi interpelado sobre “o que falta fazer”, como se a água fosse o princípio, meio e fim para “inverter a tendência de abandono do território por falta de actividade económica, fomentada pela falta de recursos hídricos”.
“Em Portugal não há um problema de falta de água, há um problema de falta de capacidade de gestão de água”, notou o primeiro-ministro, certo de que “temos uma disponibilidade de recurso da qual só utilizamos 10%”. Uma vez no Governo, foi tempo de juntar um grupo de trabalho coordenado pelo presidente da Águas de Portugal, António Carmona Rodrigues. Ao seu lado estiveram ainda o presidente da Agência Portuguesa do Ambiente, José Pimenta Machado, o director-geral da Direcção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural, Rogério Ferreira e o presidente da Empresa de Desenvolvimento e Infraestruturas do Alqueva (EDIA), José Pedro Salema.
“O desafio que lançámos a este grupo de trabalho foi exigente”, afirmou Luís Montenegro. Reconheceu que “não partimos do zero, havia muitas coisas que já estavam projectadas”, mas insistiu que o trabalho foi concretizado “num tempo recorde, não só para recuperar o tempo perdido, como para aproveitar o financiamento, que está disponível até 2030”. E esse é de um volume inédito: cinco mil milhões de euros, até 2030. O primeiro-ministro considera que está em causa “uma transformação estratégica e estrutural do nosso país”, que permitirá, nas próximas décadas, “ter capacidade para lutar contra os efeitos negativos das alterações climáticas, que possa aproveitar ao máximo os recursos” – desaguando tudo, afinal, numa melhor utilização da água.
E essa é uma das questões centrais desta estratégia, assente em três eixos de actuação: eficiência, resiliência e inteligência. O projecto foi estruturado para contribuir para “uma governança ágil e eficaz da água” e “garantir o abastecimento às populações, à agricultura e aos restantes sectores económicos”. O objectivo é “prevenir o impacto das secas, das cheias e das alterações climáticas, evitando crises e custos acrescidos”, em especial nos territórios com maior stress hídrico.
Apesar das disponibilidades de água em Portugal continental “serem superiores às necessidades”, o Governo realça que “há variações significativas: existem situações de escassez sobretudo nas regiões do Alentejo e Algarve”. Os elevados níveis de armazenamento de águas nas albufeiras nacionais – 81% no início de Março, que tem ajudado no reforço das áreas regadas – acabam por ser um fenómeno enganador, que não esconde a escassez que pontua o resto do ano. Foi o ponto de partida para o Governo ao assumir a necessidade de elaborar esta estratégia, que dá também “suporte” à revisão do Plano Nacional de Água e à actualização da Estratégia para o Regadio Público, através do Plano Rega (ainda por elaborar).
Aumentar armazenamento
A diminuição das perdas de água e a respectiva reutilização dominam o plano de intenções desta estratégia, que estima uma poupança a esse nível na área dos 35%. Poupar água, reduzir perdas nas redes de abastecimento e de rega, reabilitar reservatórios, aproveitar águas residuais tratadas, tudo isso faz parte dela. Mas também a ideia de reforçar o armazenamento. Durante a apresentação, tanto a ministra do Ambiente e Energia, Maria da Graça Carvalho, como o ministro da Agricultura, José Manuel Fernandes, reforçaram a ideia.
“Com esta estratégia ficaremos mais preparados para o futuro”, acredita a ministra do Ambiente. “Só existe uma água, e essa verdade é inegável. Temos que olhar para a água doce, para a água salgada, para o armazenamento, para a distribuição”, afirmou. A velha questão da barragem de Girabolhos – cuja construção a Câmara de Coimbra tem vindo a defender desde há muito – é assumida como importante, embora sem estar orçamentada.
Tanto a ministra como o presidente da Câmara, José Manuel Silva, celebraram a medida. Em 2019, a secção regional do Centro da Ordem dos Engenheiros chegou a defender que, sem a construção da barragem de Girabolhos, cancelada em 2016, seria “muito difícil” travar a repetição de cheias no Mondego.
Conciliar interesses
O ministro da Agricultura e Pescas considerou estar perante “uma estratégia transformadora”. José Manuel Fernandes lembrou que os trabalhos começaram em Julho, e que “em fins de Dezembro estava pronta”, enfatizando a defesa da biodiversidade e o lado conciliador que acarreta. “Finalmente temos uma ministra que sabe que a agricultura e os agricultores não são inimigos do ambiente e têm andado de mãos dadas. Não são os vilões que muitos tentaram colar à sua acção”, disse.
José Manuel Fernandes explicou ainda o slogan da estratégia: “Uma água que une, e que trará um aumento de 30% para o regadio”. Para o governante, o maior desafio será “a capacidade para executar os projectos, e decidir rapidamente, para que as barragens não demorem anos a ser construídas”. “Este é um investimento para o futuro, que se pagará a si mesmo. Numa primeira fase até 2030, numa segunda até 2040”, lembrou.
O presidente da Águas de Portugal, António Carmona Rodrigues, desaguou o discurso com uma nota local: “Estamos em Coimbra, no coração da maior bacia hidrográfica do país, a do rio Mondego, que desde há 300 anos enfrenta desafios ligados ao assoreamento, ao abastecimento de água, ao controlo de cheias. Não há nada no controlo da água que não esteja na bacia do rio Mondego”, afirmou, antevendo o prolongamento do plano de financiamento até 2050. Conhecedor de todos os meandros e caudais, insistiu também no eixo da eficiência, “que nos vai permitir ganhar água, controlo e redução das perdas.”
Além de reduzir perdas, há uma aposta na utilização de água residual tratada estão entre as prioridades da estratégia para gerir a escassez que vai acentuar-se no futuro próximo. A construção de barragens e um aumento da capacidade de armazenamento das existentes, as unidades de dessalinização, a regularização da captação de água e, em último recurso, a interligação entre bacias hidrográficas completam a proposta do Governo.
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Eis o plano: reutilizar, reduzir perdas, construir barragens, ligar bacias
Carlos Dias
A escassez de água vai acentuar-se no futuro próximo em Portugal e é por isso que o Governo propõe investir cerca de cinco mil milhões de euros até 2030 nesta estratégia. Para contrapor a cenários críticos de escassez de recursos hídricos, a estratégia “Água que Une” contempla perto de 300 medidas, a desenvolver ao longo dos próximos 15 anos, que têm o potencial para acrescentar mais de mil milhões de metros cúbicos de água para todos os usos. Eis alguns dos principais pontos.
Reaproveitar águas residuais
A intenção é ser mais exigente no aproveitamento das águas residuais tratadas: o plano prevê a produção de 116 hm3 de águas residuais em 315 Estações de Águas Residuais (ETAR) até 2040, num investimento de 137 milhões de euros.
Reduzir perdas de água em 35%
O documento realça os números referentes aos valores médios de água não facturada no abastecimento urbano, em alta, que é de 5%, enquanto a água não facturada no abastecimento urbano de água atinge os 27,1%. Para contrariar este cenário, “é fundamental promover a eficiência hídrica” através da reabilitação e optimização das infraestruturas, reduzindo as perdas de água, que actualmente atingem uma média anual de 81 hm3, em até 35%. Haverá 1476 milhões de euros para esse efeito, sendo para região Norte, 448 milhões de euros; região do Vouga, Mondego e Lis, 267 milhões de euros; região do Tejo e Ribeiras do Oeste, 479 milhões de euros; região do Alentejo, 156 milhões de euros e região do Algarve, 126 milhões de euros.
Interligar bacias e ampliar barragens
Está previsto construir novas barragens e a interligação entre bacias hidrográficas, charcas e reservatórios de água. O projecto de maior envergadura é o da construção, entre 2025-2035, da barragem do Alvito, no rio Ocreza, na bacia do Tejo. Estão ainda programados projectos para o aumento do armazenamento das barragens da Meimoa e da Idanha, também na bacia do Tejo. Será feito o estudo de viabilidade da ligação das bacias do Tejo e do Guadiana, através da adução Nisa-Caia e a interligação Alqueva-Mira. A garantia de água no troço internacional do rio Guadiana a partir do Pomarão será estudada com vista à construção de infraestruturas de regularização de caudais ecológicos nos afluentes do Guadiana, a jusante de Alqueva.
Modernizar aproveitamentos agrícolas
Para o Alentejo, o Governo prevê a modernização e reabilitação do aproveitamento hidroagrícola do Mira, para reduzir as perdas de água através da reabilitação integral do sistema adutor de Santa Clara e nos blocos de rega, além do alteamento das barragens de Pedrógão e do Lucefécit. A região algarvia irá beneficiar da modernização dos Blocos de Silves (2 e 3), do aproveitamento hidroagrícola de Silves, Lagoa e Portimão, assim como a modernização do aproveitamento hidroagrícola do Alvor. Está ainda previsto o estudo da viabilidade da construção das barragens da Fou-pana e do Alportel, para utilização do sector agrícola e controlo de cheias de Tavira.
Prevenir redução da disponibilidade
Até 2040, as projecções apontam para uma redução das disponibilidades nacionais em 6%, acompanhada de um aumento dos consumos que pode chegar a 26%. Esta disparidade expressa-se em particular no sector agrícola, que actualmente consome 3175 hm3, mas num futuro próximo chegará aos 4093 hm3. Também no consumo urbano haverá uma significativa subida dos 795 hm3 actuais para quase 1000 hm3.. O documento adianta que o índice de escassez “tenderá a agravar-se” sob o efeito conjugado das alterações climáticas e do aumento das necessidades de água futuras, num contexto em que “muitos dos sistemas existentes” já necessitam de intervenções profundas.