Indústria & Ambiente
O processo de revisão da DARU
Ana Margarida Luís | Presidente Executiva, AdP Valor
As conclusões de uma análise levada a cabo pela Comissão Europeia em 2019 sobre a adequação da Diretiva de Águas Residuais Urbanas (DARU), em vigor desde 1991, aos tempos atuais, evidenciaram a necessidade de revisão da mesma. Esta revisão foi guiada por dois objetivos principais e dois objetivos complementares, desdobrando-se, cada um deles, em sub-objetivos, conforme figura 1. Assim, em outubro de 2022, a Comissão Europeia (CE) apresentou a sua proposta de revisão da DARU, que incidia sobretudo sobre as questões relacionadas com a Qualidade da Água, a Circularidade, a Simplificação e digitalização dos processos administrativos e a Vigilância Epidemiológica.
Ao longo de um ano, as alterações propostas foram debatidas com os diversos Estados–Membros, e igualmente analisadas pelo Conselho Europeu e pelo Parlamento Europeu. E porque desde logo ficou patente que nem todas as alterações apresentadas concorriam para os objetivos definidos de igual forma nos diversos Estados-Membros – nalguns casos chegavam mesmo a ser contraproducentes -, esse período, que decorreu entre outubro de 2022 e outubro de 2023, foi muito participado por todos os intervenientes acima referidos, bem como por parte de entidades diversas.
No caso de Portugal, a APA (Agência Portuguesa do Ambiente) e a REPER (Representação Permanente de Portugal junto da União Europeia) apresentaram contrapropostas às alterações da DARU, quer em reuniões com a CE para discussão dos artigos, quer organizando um workshop sobre a abordagem de análise de risco ou mesmo numa reunião com o Deputy Head of Unit DG ENV, responsável pela preparação da nova versão da DARU. Estas contrapropostas foram trabalhadas por um Grupo de Trabalho que envolveu o grupo Águas de Portugal (AdP), a ERSAR, os governos das regiões autónomas da Madeira e dos Açores e três peritos nacionais – os professores Saldanha Matos, Ramiro Neves e Pedro Mano.
Em paralelo, enquanto responsável pelo dossier “DARU” na Water Europe, pude também deixar algumas destas preocupações materializadas na posição oficial daquela entidade, a qual foi enviada por escrito e apresentada em diversos fóruns, nomeadamente num encontro no Parlamento Europeu. Por outro lado, a ERSAR, apoiada tecnicamente pela AdP no que respeita ao potencial impacto das alterações nas tarifas, demonstrou igualmente algumas destas preocupações na WA-REG, entidade que também fez chegar a sua posição à CE.
Em outubro de 2023 foram então conhecidas as propostas de alteração à revisão da DARU, quer por parte do Parlamento Europeu (mais próxima da versão inicial da Comissão Europeia), quer por parte do Conselho Europeu (mais alinhada com as preocupações de Portugal).
Iniciou-se então a fase de triálogo entre as três instituições europeias, tendo o texto final de revisão da DARU sido aprovado em abril de 2024. No passado dia 05 de novembro, o texto foi aprovado em reunião do Conselho Europeu e, à data de elaboração deste artigo, aguarda publicação no Official Journal of the European Union.
Não tendo todas as pretensões de Portugal saído “vencedoras”, pode dizer-se que, ainda assim, o resultado final alcançado é bastante mais ajustado ao caso nacional do que o associado à primeira versão apresentada pela CE em 2022. Refira-se, a título de exemplo, que foram revistos em alta os limites de remoção de Azoto e Fósforo, que o número de ETAR com obrigatoriedade de efetuar tratamento quaternário baixou de 30 para 17, e que os prazos relativos à implementação dos diversos artigos foram, no geral, prolongados.
Principais alterações à versão ainda em vigor
As grandes mudanças introduzidas pela nova DARU prendem-se com os quatro objetivos / sub-objetivos atrás referidos. Assim, em termos de salvaguarda da Qualidade das Águas Residuais: a DARU passou a abranger aglomerados com mais de 1000 h.e. em vez dos 2000 h.e., o nível de tratamento mínimo passou a ser o secundário, os níveis de tratamento terciário e quaternário passaram a ser obrigatórios em ETAR que tratam mais de 150 000 h.e., independentemente das características do meio re-cetor, e, decorrente dos resultados de uma análise de risco, poderão ser também obrigatórios em ETAR que tratam o efluente de entre 10 000 e 150 000 habitantes, de notar que, na versão final aprovada, passaram a estar excecionadas do tratamento terciário as frações de água residual tratada que forem reutilizadas na agricultura (uma das alterações propostas e defendidas por Portugal), os limites de remoção de Azoto e Fósforo passaram a ser mais exigentes: Azoto total: 8 ou 10 mg/l e Fósforo Total: 0,5 ou 0,7 mg/l, no caso de ETAR associadas a mais ou menos de 150 000 h.e., respetivamente, associados a cada sistema de drenagem deverão ser elaborados Planos Integrados de Gestão de Águas Residuais Urbanas, que minimizem a ocorrência e os efeitos de descargas de efluente não tratado aquando de descargas de tempestade. Estes planos são obrigatórios para sistemas que servem mais de 100 000 h.e. e também para sistemas associados a mais de 10 000 h.e. que constem de uma lista a elaborar com base numa série de critérios inerentes ao risco para o ambiente e para a saúde pública.
Já quanto à Transparência e Governação, as grandes mudanças prendem-se com: o aumento significativo de exigências a nível de monitorização, não só pela introdução de novos parâmetros de Qualidade da Água (que incluem substâncias prioritárias, PFAS e microplásticos), mas também pela nova exigência associada à monitorização de GEE, da energia produzida e consumida, de lamas (se forem utilizadas na agricultura), de água para reutilização, de indicadores associados a vigilância epidemiológica e a Resistência Antimicrobiana, e de descargas de tempestade ou de escoamento urbano, a obrigatoriedade de disponibilizar informação ao cidadão sobre a gestão do sistema de águas residuais urbanas, incluindo identificação da autoridade competente, da Entidade Gestora, dados sobre a qualidade da água tratada, os investimentos planeados, etc., a possibilidade de serem revogadas ou reformuladas licenças de descarga de águas residuais não urbanas (indústria, pecuária, …) que descarreguem para sistemas de águas residuais urbanas, caso essas afluências coloquem em causa o bom funcionamento dos mesmos, ou caso as ETAR passem a fornecer Água para Reutilização ou Lamas para agricultura, a implementação de um esquema de Responsabilidade Alargada do Produtor (RAP), abrangendo as indústrias farmacêutica e cosmética, por serem as maiores contribuintes de PFAS e microplásticos, como tal, essas indústrias deverão associar-se e financiar pelo menos 80 % dos custos de investimento e operacionais associados ao tratamento quaternário que as entidades gestoras terão de implementar para remoção desses poluentes.
Tendo por base o objetivo da transição para a neutralidade climática e economia circular, as principais alterações prendem-se com: é encorajada a reutilização de água residual tratada, especialmente em zonas de stress hídrico, devendo salvaguardar-se um “caudal ecológico” nos meios recetores, é encorajada a utilização de lamas na agricultura, é encorajada a recuperação de fósforo de lamas e água residual tratada (que não seja reutilizada em rega agrícola), o estabelecimento do objetivo de atingir a neutralidade energética no setor (a nível nacional), através de medidas que promovam a redução do consumo e a produção de energia renovável on ou off site, a identificar através da realização de auditorias energéticas, o objetivo é ter 100 % da energia consumida a ser produzida pelo setor em 2045 a partir de fontes renováveis, sendo que até 35 % poderá ser adquirida a terceiros desde que provenha de fontes não-fósseis e que seja demonstrado pelas auditorias energéticas que as entidades já implementaram todas as medidas possíveis.
Por último, no que respeita à utilização das águas residuais urbanas como veículo para melhorar a saúde pública, destaca-se a obrigação de os Estados-Membros implementarem um sistema nacional de coordenação entre as autoridades de saúde e as entidades gestoras de saneamento, com partilha de responsabilidades e de custos, com vista a: assegurar a vigilância das águas residuais urbanas à entrada das ETAR, para o vírus SARS-CoV-2 e suas variantes, o poliovírus, o vírus da gripe, agentes patogénicos emergentes e outros parâmetros de saúde pública que as autoridades competentes considerem relevantes para efeitos de monitorização, em situação de declaração de emergência de saúde pública, assegurar a monitorização dos parâmetros relevantes, numa distribuição representativa da população nacional, nos sistemas que servem mais de 100 000 h.e., assegurar a monitorização de resistência antimicrobiana.
Na figura 2 apresentam-se os prazos associados às principais exigências atrás apontadas. Está ainda previsto um conjunto de atos de implementação e de atos delegados referentes, essencialmente, a metodologias e requisitos relativos a uma série de aspetos da Diretiva.
Desafios e oportunidades para as entidades gestoras
São muitos os desafios colocados pela nova DARU. Em termos de cumprimento das novas exigências, destacaria:
os novos níveis de tratamento, que irão obrigar, à partida, a remodelar 1/3 das ETAR do Grupo AdP, incluindo as de maior dimensão, para além de outras que só após serem conhecidos os critérios para avaliação do risco se poderão identificar, por outro lado, o próprio processo de tratamento quaternário é ainda pouco conhecido, o objetivo indicativo não vinculativo associado aos planos integrados de saneamento urbano e pluvial, que será muito difícil de cumprir num país com o nosso regime de precipitação (torrencial em muitos casos), a neutralidade energética: embora o grupo AdP tenha em curso um Plano Corporativo para atingir a neutralidade energética (Plano Zero), as novas exigências de tratamento irão induzir um acréscimo de necessidades de consumo, a obrigação de ligar aglomerados com 1 000 h.e. a sistemas centralizados será desafiante, tendo em conta a dispersão territorial nas zonas rurais e a previsão de decréscimo populacional, contudo, está prevista a derrogação desta obrigação sempre que a mesma acarretar custos desproporcionados, os novos sistemas individuais de tratamento (fossas séticas) que venham a ser construídos, terão de assegurar um nível mínimo de tratamento equivalente a secundário.
Transversalmente, constituem grandes desafios o financiamento e a própria execução dos grandes investimentos que terão de ser efetuados, o reforço dos laboratórios de análises e dos meios humanos para recolha de amostras, bem como a coordenação entre as entidades gestoras e as autoridades competentes ambientais, de saúde pública, e as associações das indústrias farmacêutica e cosmética no âmbito do esquema da RAP. Em termos de oportunidades, é incontornável referir o papel que a DARU irá ter como impulsionadora: da Economia Circular (nomeadamente em termos de Água para Reutilização, em especial tendo em conta a derrogação do tratamento terciário em fins agrícolas, e da utilização de lamas na agricultura), da Digitalização, nomeadamente a nível de processos de reporte e de informação ao público, do combate às Afluências Indevidas Pluviais e Industriais.
Considerações finais
Para além das Entidades Gestoras, a DARU traz também grandes desafios para as autoridades nacionais, nomeadamente no que respeita à contabilização e reporte da energia renovável, à implementação do regime de RAP, às análises de risco para diferentes fins, etc.
Em termos de próximos passos, o final do 30° mês da entrada em vigor da revisão da diretiva marcará o termo da antiga DARU (embora, em alguns casos, alguns artigos manter-se-ão válidos até mais tarde), bem como a data-limite para a transposição da nova diretiva para o direito nacional. Por sua vez, esta nova versão da Diretiva entrará em vigor no 20° dia após a sua publicação no Official Journal of the European Union, que expectavelmente ocorrerá ainda em 2024. Os Estados-Membros terão depois até três anos para apresentar à CE um plano de implementação da nova DARU, incluindo estimativa de custos e identificação de possíveis fontes de financiamento.
Termino fazendo um exercício retrospetivo e outro prospetivo: Portugal está hoje um país muito diferente em termos de saneamento face ao que era há 30 anos atrás (quando apareceu a DARU), se olharmos para daqui a 30 anos, veremos, com a adoção da nova DARU, um setor mais capaz, mais digital, mais avançado tecnologicamente, e mais consistente com o paradigma vigente (esperemos) no âmbito da neutralidade climática e economia circular – fica a dúvida: apesar dos avultados investimentos em perspetiva e dos novos mecanismos a estabelecer, será o “salto” em Portugal, em termos ambientais, tão significativo e disruptivo como o que ocorreu com a primeira DARU?