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Em entrevista ao Expresso, Maria da Graça Carvalho, ministra do Ambiente e da Energia, fala sobre o acordo de repartição da água assinado esta semana com Espanha. E diz que a pior herança que recebeu tem a ver com o problema dos resíduos
Há seis meses à frente do Ministério do Ambiente e da Energia, Maria da Graça Carvalho tem uma pasta vasta entre mãos. Na primeira entrevista de fundo dada ao Expresso defende o acordo de repartição da água dos rios Tejo e Guadiana, assinado esta semana com Espanha, e diz que “não houve um perdão a Espanha [pela água captada ilegalmente durante 20 anos] porque nunca apresentámos a conta”. Perante os anúncios de novas infraestruturas para a água, assegura que “não se farão transvases” do Minho para o Algarve, mas equaciona levar água do Alqueva para a barragem de Santa Clara, no Litoral alentejano. O não cumprimento de metas no sector dos resíduos e o aumento da deposição em aterro são “a pior herança” que recebeu e a área dos transportes é a que lhe causa “maior preocupação”.
O que salienta do acordo com Espanha sobre os rios agora assinado?
Acordámos uma adenda à Convenção de Albufeira que define um caudal mínimo diário para o Tejo, e não apenas semanal ou mensal, porque as barragens no lado espanhol por vezes lançavam o caudal num ou dois dias, deixando os outros sem água em alturas de seca. Agora vão dividir-se os sete hectómetros cúbicos (hm3) semanais pelos sete dias. Em relação a Pomarão [localidade junto ao Guadiana onde será construída uma estação elevatória], tanto Espanha como Portugal podem retirar água em partes iguais até ao máximo de 60 hm3 por ano.
Espanha tem tirado mais do que isso nos últimos 20 anos sem pagar. Porque é que Portugal perdoou essa dívida, que se estima em €40 milhões?
Espanha não vai poder tirar mais a partir de agora e só tira esta quantidade desde que haja caudal. Não houve um perdão porque nós não atuámos, não registámos, nunca fizemos pressão, nunca apresentámos a conta. Não há como cobrar. Portanto, começamos a contabilizar a água consumida pelos espanhóis a partir de agora e esperemos que corra bem.
Como se aprovou a obra de transferência de água de Pomarão para a barragem de Odeleite, no Algarve, sem enquadrar estas quantidades e os impactos cumulativos?
Do Pomarão não vão tirar mais de 30 hm3 para Odeleite e outros 30 hm3 ficam no Alqueva, o que é outra grande notícia.
Isso vai alimentar mais irrigação agrícola em redor?
Vamos ver, isso é uma negociação interna. O meu objetivo é fazer uma ligação à barragem de Santa Clara, em Odemira, numa das regiões com maiores problemas de água. Tem que se reduzir a ineficiência e depois fornecer água à barragem. Temos que fazer os estudos de impacte ambiental para avançar com essa transferência.
Não somos nós que estamos a aumentar os consumos, é a própria sociedade
Há água no Alqueva para tudo?
Sim, com os 30 hm3 que ficam no Alqueva. Temos agora um financiamento total de €366 milhões para a resiliência hídrica do Algarve e do Alentejo, contando com o que estava previsto no PRR, mais os €103 milhões que vieram do POSEUR.
O Pomarão e a dessalinizadora no Algarve são obras garantidas, tendo em conta os processos judiciais que têm ou vão ter em cima?
Nós aprovámos em Conselho de Ministros um decreto-lei que impede as providências cautelares de parar as obras nos projetos do PRR. Senão era muito difícil acabá-las.
O primeiro-ministro falou no domingo em investimentos em infraestruturas da água de diferentes dimensões. Inclui transvases de água de Norte para Sul?
Não vamos fazer nenhum transvase, não precisamos. Estão a ser estudadas soluções locais na região do Tejo, na Lezíria, na região de Viseu. Há um projeto do PRR já adjudicado para a obra do Pisão, que o Alto Alentejo espera há 57 anos.
Na altura não se falava em impactes ambientais nem em alterações climáticas.
Tem alguns impactos, mas os benefícios são superiores aos impactos do meu ponto de vista. Já tem todas as autorizações e medidas de remediação e mitigação. A barragem do Pisão vai transformar o Alto Alentejo como o Alqueva transformou o Baixo Alentejo.
Continuamos sempre a pensar na oferta de água em barragens. E se não chover?
Também vamos ter a dessalinizadora em Albufeira, estão a acelerar as obras para diminuir drasticamente as perdas nas redes. A nossa prioridade é gastar menos água no Algarve.
O Orçamento do Estado para 2025 está em contraciclo com os compromissos nacionais na área climática ao prever aumentar o consumo de combustíveis fósseis e as emissões?
Não somos nós que estamos a aumentar os consumos, é a própria sociedade. A taxa de carbono foi descongelada e é uma medida de luta contra as alterações climáticas, um desincentivo à utilização de viatura própria com motor de combustão interna. Estamos a investir na descarbonização dos transportes e na ferrovia, mas não é no próximo ano que o sistema de transportes fica descarbonizado. Vamos investir muito nos metros do Porto e de Lisboa, no metro de superfície de Coimbra, na ferrovia, em novas locomotivas, nos navios elétricos da Transtejo. Tivemos do PRR um grande concurso para 300 autocarros elétricos para todo o país.
Aumentámos a deposição em aterro para 59%. A pior herança que tive foi esta dos resíduos
Temos metas de descarbonização nos transportes para 2030 que não vamos cumprir e onde estão os planos para incrementar a mobilidade suave?
A área dos transportes é a que nos causa maior preocupação, cerca de 38% das emissões são dos transportes, enquanto a meta é não chegar a 30%. Vamos abrir verbas do Fundo Ambiental para ciclovias e já foram financiadas imensas ciclovias no passado.
A descarbonização dos transportes vai ser mais difícil do que a da indústria e dos edifícios?
Do que a da indústria certamente. A indústria é mais localizada e já fez muito. Em relação aos edifícios, há mais dificuldade devido à dispersão, ao nosso tecido social, ao investimento necessário. Mas não é só uma questão de financiamento, é uma questão de capacitação, de resposta a todos estes desafios.
Aumentámos a percentagem da deposição de lixo em aterro e continuamos a não cumprir as metas dos resíduos. Como é isto possível?
Aumentámos a deposição em aterro, eram 57% dos resíduos e passámos para 59% em 2023, quando temos que chegar a 10% em 2035. A pior herança que eu tive foi esta dos resíduos.
O que é que está a falhar?
É muito cultural. A nossa estratégia, para já, é fazer uma grande campanha para reduzir a produção de resíduos e implementar a economia circular.
No OE não há nada sobre taxas novas sobre embalagens. Que medidas estão a tomar junto dos produtores de embalagens?
Emendámos o decreto-lei do sistema de depósito e reembolso e vai demorar um ano a pôr as máquinas em todo o país para as pessoas depositarem as latas, as embalagens e recolherem um valor. É uma medida do PRR que estava atrasadíssima. O que não for possível reciclar ou reduzir temos de preparar para composto ou para valorização energética.
Porque é que saem do Orçamento os €205,6 milhões para pagar à Comissão Europeia (CE) pelo facto de não reciclarmos todo o plástico e não se cobra a quem coloca as embalagens no mercado?
Porque eu penso que as multas são sobre o Estado. Mas é algo para analisar. Há aqui muito a fazer, não é fácil. Vamos apresentar até ao fim do ano uma estratégia para os resíduos.
A biodiversidade continua a ser o parente pobre neste ministério?
Tenho diretamente a tutela do restauro, do clima e da biodiversidade. O lince é visto a nível internacional como um grande caso de sucesso.
Houve um recente revés com o fim da proteção do lobo a nível europeu. Espanha votou contra. Porque é que Portugal votou a favor?
Foi essencialmente a solidariedade com países que estão a ter problemas muito graves. Mas fizemos uma declaração de voto de que não íamos mudar a nossa política.
“Agência do Clima a funcionar até final do ano”
A nova Agência do Clima, uma estrutura com capacidade para gerir mais de €2 mil milhões oriundos do Fundo Ambiental (€1,2 mil milhões), do Plano de Recuperação e Resiliência (€800 milhões para área ambiental) e de outros fundos e programas (como o POSEUR e o Fundo do Clima Social) deverá estar “a funcionar até ao fim do ano”. Esta é a expectativa de Maria da Graça Carvalho, que lamenta a lentidão e ineficiências do atual funcionamento do Fundo Ambiental, por ter “uma equipa muito reduzida que pertence à Secretaria-Geral sem uma estrutura dedicada”. A nova estrutura contará com mais pessoas.
Uma multa de €8 milhões que se quer evitar pagar
Portugal enfrenta uma multa de 8 milhões de euros de Bruxelas por incumprimento da diretiva Habitats ao não estarem aprovados os 61 planos de gestão dos sítios da Rede Natura 2000. A ministra admite que “vamos com 32 anos de atraso e esta desconformidade atravessou 12 Governos”. Garante que “têm sido tomadas medidas para regularizar a situação”, que “temos 28 dos 61 planos prontos” e tem “a expectativa de que a transposição esteja concluída antes da concretização da aplicação de eventuais multas”. Os 28 planos prontos constavam da pasta de transição em março e há 19 em análise. Para já, assegura: “Não pagámos nada.”
Nova área marinha protegida na AML em 2025
Parente a falta de planos de ação e uma estratégia para a biodiversidade atualizados, a ministra adianta que há trabalho em curso para cumprir as metas de ter 30% do mar português protegido. “Proteger 30% do mar dos Açores corresponde a proteger 16% do Mar Nacional”, diz a ministra. E adianta que o Governo “está a trabalhar com Mafra, Cascais e Sintra e estão a decorrer trabalhos científicos, para fazer uma área marinha protegida (AMP) com uma dimensão considerável” ao largo destes concelhos da Área Metropolitana de Lisboa (AML). A iniciativa é liderada pelos municípios e deverá estar concluída “em outubro de 2025”.