Água & Ambiente
A partir de outubro, há novas regras e prazos a cumprir pelas entidades gestoras na lavagem de contentores ou na recolha de resíduos. Em caso de falha, utilizadores podem reclamar compensações.
O novo regulamento de qualidade do serviço prestado ao utilizador vincula as entidades gestoras de resíduos urbanos a cumprir requisitos mínimos em várias áreas, desde a lavagem de contentores à realização de recolhas dedicadas, dando ao utilizador a possibilidade de exigir compensações em caso de falha. O objetivo do regulamento da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR), publicado em abril, que entra em vigor em outubro, é harmonizar a qualidade da prestação deste serviço em todo o país, mas exige a adaptação dos serviços num prazo difícil de cumprir para várias entidades gestoras e deverá contribuir para elevar os custos operacionais. O regulamento, que se aplica também aos serviços de águas, estabelece regras e prazos para o início e restabelecimento da prestação do serviço, prestação de informação aos consumidores, disponibilização de meios de atendimento ou gestão de reclamações.
Mas há também normas específicas para o serviço de gestão de resíduos urbanos. Os contentores de recolha seletiva e indiferenciada devem estar a uma distância inferior a 100 metros dos edifícios nas freguesias predominantemente urbanas e a 200 metros nas restantes freguesias. Para incentivar a deposição seletiva, colocou-se o mesmo nível de exigência para as duas formas de recolhas, mas o regulador entendeu “nesta fase, não prever uma compensação” em caso de falha, segundo o relatório da consulta pública, dado que o cumprimento deste nível de serviço não depende apenas das entidades em baixa. O mesmo não sucede com outros requisitos definidos para a prestação do serviço.
A frequência de recolha deverá ser definida pela entidade gestora, mas para o fluxo de bio resíduos não deve ultrapassar uma semana. Se houver uma reclamação por haver resíduos acumulados na via pública junto aos contentores, a entidade gestora tem dois dias úteis para fazer a recolha ou cinco dias se forem resíduos volumosos ou verdes. Para a lavagem de contentores, determina-se um mínimo de lavagens por ano: 4 a 28 lavagens, em média, para os contentores de indiferenciados ou bio resíduos e 1 a 6 lavagens anuais para os de recolha seletiva.
No entanto, caso haja uma reclamação dos utilizadores por evidências de falta de higiene, as entidades gestoras terão de promover a lavagem ou a substituição dos contentores no prazo máximo de 5 dias úteis. Em qualquer destes casos, os utilizadores podem exigir compensações se os prazos não forem cumpridos. De uma forma geral, a publicação de um regulamento desta natureza é encarada como uma novidade positiva. “É fundamental que exista uma harmonização dos níveis mínimos de qualidade dos serviços de águas e resíduos, por parte das entidades gestoras, para que o serviço seja sempre de boa qualidade”, sublinha a Associação Nacional de Municípios Portugueses.
Para a DECO PROteste, o cumprimento de requisitos mínimos de acessibilidade física, frequência de recolha e de lavagem de contentores são aspetos “cruciais” para mobilizar as pessoas a aderir à separação de resíduos. “Ao nível da limpeza e lavagem dos contentores, verifica-se que, caso não seja efetuado devidamente, pode levar a que o consumidor acabe por não aderir à colocação dos bio resíduos no sítio certo e das outras f rações de resíduos”, nota Antonieta Duarte, especialista da DECO PROteste. E há ampla margem para melhorar nestas frentes.
“De acordo com os últimos dados de ERSAR, existem bastantes entidades gestoras sem recolha de biorresíduos”, realça, e “ao nível da lavagem dos contentores, 55% das entidades têm uma qualidade insatisfatória”. “A comunicação junto dos consumidores também é importantíssima”, salienta ainda, não só no que respeita à localização dos contentores e frequência de recolha, mas também quanto aos tarifários aplicáveis.
Operacionalização complexa e custos acrescidos
No entanto, há questões que ainda preocupam as entidades gestoras e associações do setor. Para Paulo Rodrigues, Chefe da Divisão de Ambiente da Câmara Municipal de Matosinhos, as exigências colocadas ao nível da lavagem de contentores e da recolha de resíduos volumosos “são os dois pontos críticos” do novo regulamento, que se justificam “pela salubridade e higiene pública”, mas cuja “operacionalização é muito complexa”. Desde logo, porque muitas entidades gestoras, como sucede com o município de Matosinhos, têm este serviço entregue a um operador privado e terão de “perceber como é que isto se enquadra na atual prestação de serviços”.
Por outro lado, porque exige “capacidade de resposta” dos serviços, mas também um reforço “na parte da fiscalização”. Algumas disposições do regulamento introduzem também uma dimensão de imprevisibilidade, que dificulta a gestão dos contratos. “Eu tenho previsto um conjunto de lavagens [de contentores], alinhadas com as recomendações da avaliação da qualidade do serviço [da ERSAR], mas agora, se eu tiver queixas dos munícipes, vou ter de aumentar essas lavagens e isso tem custos acrescidos, que não estão previstos em caderno de encargos”, ilustra. “Isto tem impactos fortes na logística e no custo do serviço, que depois tem de ser refletido na tarifa final”, sublinha.
A AEPSA-Associação das Empresas Portuguesas para o Setor do Ambiente, que reúne na associação operadores privados que prestam serviços às entidades gestoras, “subscreve totalmente a necessidade da definição de níveis mínimos de serviço, ou dos requisitos base dos contratos de serviços, de modo que sejam desenvolvidos e afinados em função das características de cada município”. Uma “parte significativa” das exigências patentes no novo regulamento já integram muitos dos contratos de recolha e transporte de resíduos urbanos estabelecidos entre câmaras municipais e operadores privados, mas Eduardo Marques, Presidente da Direção da AEPSA, antecipa, com a entrada em vigor do diploma, um “incremento do esforço de realização dos serviços e inevitável aumento dos custos operacionais, que, consequentemente, se irão refletir nas tarifas aos utilizadores finais”.
O facto de o regulamento não se aplicar aos serviços em alta também gera perplexidade, dado que, em muitos municípios, são os sistemas multimunicipais ou intermunicipais que estão responsáveis pela recolha seletiva. “É inadmissível que este articulado deixe de fora as entidades em alta, contribuindo para a ideia de que existem dois pesos e duas medidas na regulação”, sublinha Carlos Rabaçal, presidente do Conselho de Administração dos Serviços Municipalizados de Setúbal (SMS), dado que o serviço prestado pelo sistema em alta — que, no caso de Setúbal, é responsável pela colocação, recolha e limpeza de contentores para deposição multimaterial — “tem um forte impacto na perceção da qualidade do serviço dos resíduos em geral”.
A AEPSA também entende que o regulamento deveria abranger os serviços em alta, “que impactam diretamente a qualidade dos serviços em baixa”. Apesar de o eventual pagamento de compensações aos utilizadores só se aplicar às entidades em baixa, está contemplada no diploma a possibilidade de direito de regresso, quando existem contratos de prestação de serviços com entidades terceiras,
A AEPSA salienta ainda outros aspetos negativos que subsistem na versão final do diploma, em particular, o facto de o ónus da prova “recair exclusivamente na entidade gestora” e a obrigatoriedade de esta manter “um muito significativo e complexo número de registos”. “Este ónus só será mitigado pela implementação de sistemas de informação que recolham e façam o tratamento estatístico das diferentes métricas em causa, o que implicará, em muitas entidades, ao reforço obrigatório dos meios humanos, de modo a permitir que sejam cumpridos os prazos definidos”, explica Eduardo Marques.
Seis meses para muito trabalho
O reforço de recursos humanos e a alteração de procedimentos significa, para várias entidades municipais, que os l8O dias dados para a entrada em vigor do diploma serão insuficientes. Paulo Rodrigues salienta que a operacionalização de um regulamento desta natureza exige a articulação de vários departamentos para a definição de procedimentos comuns, a aquisição de ferramentas informáticas, a atualização de regulamentos municipais, bem como a contratação e formação de recursos humanos que não se coaduna com um prazo de seis meses, com férias de verão pelo meio, em que as equipas não estão a funcionar em pleno.
“Compreendo o caminho que a entidade reguladora quer adotar e bem”, observa, mas, em alguns aspetos, “não tiveram em consideração o que é a estrutura municipal”. E dado que “a grande maioria das autarquias tem uma estrutura muito limitada, do ponto de vista de recursos”, o que antecipa é que nem todas as entidades consigam avançar “à mesma velocidade”. Ainda mais, numa altura em que muitos municípios estão ainda a concluir os seus pianos de ação para cumprir as metas do PERSU 2030 e a preparar candidaturas às linhas de financiamento do Portugal 2030, “Temos de ter um pouco mais de tempo para nos prepararmos”, reforça. Carlos Rabaçal considera mesmo o prazo “impossível de cumprir”.
“O documento enferma de vários problemas ao não considerar a capacidade de investimento das entidades gestoras, de captar recursos humanos devidamente capacitados, nem das vicissitudes associadas aos processos de contratação pública, a que a maior parte destas entidades gestoras estão sujeitas”, observa o presidente do Conselho de Administração dos SMS. Paulo Rodrigues nota também que não foram dadas orientações pelo regulador para a comunicação do regulamento junto dos utilizadores, de uma forma harmonizada a nível nacional.
“Não podemos ter um município que comunica de uma maneira e outro que comunica de outra, porque o regulamento é para o país”, argumenta. O seu receio é que a entrada em vigor de um regulamento destes sem a articulação de todas estas componentes contribua para “uma enchente de reclamações e uma descredibilização do próprio sistema”. “Numa altura em que precisamos de credibilizar [o sistema], para que as pessoas acreditem e participem, lançar um regulamento sem este planeamento devido pode não correr bem”, avisa. lá do lado de quem defende os direitos dos utilizadores, os tempos para a entrada em vigor do diploma e do modelo de compensações são até excessivos. “Deveria ter havido uma preparação das entidades gestoras e não eram necessários estes prazos tão dilatados”, defende Antonieta Duarte,
Várias destas preocupações foram levantadas durante os dois processos muito participados de auscultação aos setores da água e dos resíduos que o regulador promoveu em 2020 e 2023. No entanto, a ERSAR reiterava, no relatório da última consulta pública, que não antecipava que o regulamento impusesse “custos significativos” às entidades gestoras, “por se esperar um nível elevado de cumprimento”, O regulador realça que muitas das obrigações inscritas no regulamento resultam de disposições legais já em vigor e que já são exigidas obrigações de registo no âmbito da avaliação da qualidade de serviço. “Quanto às demais, pretende-se promover boas práticas no relacionamento entre as entidades gestoras e os utilizadores finais, tendo-se procurado definir níveis compatíveis com as legítimas expetativas dos utilizadores em matéria de qualidade de serviço e ao mesmo tempo exequíveis para as entidades gestoras”, pode ler-se.
Compensações avançam em 2025
A possibilidade de os utilizadores exigirem compensações quando os níveis mínimos de serviço não são atingidos é uma das novidades do diploma, ainda que esta componente só entre em vigor em abril de 2025. Os valores das compensações serão idênticos para todas entidades, mas diferenciados em função da gravidade e duração do incumprimento, variando entre 5, 10 ou 15 euros, valores que podem ser agravados quando a falha é continuada ou os atrasos mais longos. Trata-se de um modelo harmonizado que contrasta com o das primeiras versões do regulamento em que o valor das compensações era fixado em função do tarifário de cada entidade gestora.
“A AEPSA sempre defendeu que deveria ser estabelecido um valor único de compensação, que tenha em conta o efetivo prejuízo”, sublinha Eduardo Marques, por questões de equidade. “A adoção de um leque reduzido de valores para as compensações, para os diferentes incumprimentos, justifica-se por razões de igualdade de tratamento de utilizadores, simplicidade de procedimentos e eficiência”, acrescenta. Além disso, os valores de compensação “ajustados em baixa”, que integram o diploma final, são “mais adequados à realidade das diferentes entidades, reduzindo, seguramente, a conflitualidade e litigância relativamente a esta matéria”.
O novo modelo de compensações também agrada à DECO. “Creio que atingimos um regulamento que traz valor e trata os consumidores a nível nacional, independentemente da região, de uma forma igual”, resume Antonieta Duarte. No entanto, “continuamos a defender que as compensações deviam ser automáticas”, acrescenta, e não depender da apresentação de reclamações escritas por parte dos utilizadores, como previsto. O prazo de 120 dias para o ressarcimento dos utilizadores também é “muito dilatado”. “Deveria ser mais expedito o pagamento das devidas compensações ao utilizador”, defende. O presidente dos 5M5 faz uma leitura diferente.
“Todo o documento está imbuído de um carácter amplamente punitivo para as entidades gestoras, com uma abrangência de tipos de incumprimentos excessiva mente vasta e minuciosa, e a consequente obrigação de pagar compensações aos utilizadores dos serviços, retirando qualquer responsabilidade por parte dos utilizadores desses serviços”, contrapõe Carlos Rabaçal. O regime sancionatório é também “manifestamente desequilibrado e desproporcional no que respeita ao cálculo das compensações a atribuir”, acrescenta, antevendo “a criação de um ambiente marcado pelo aumento das reclamações, da litigância e da complexidade burocrática”.