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A monitorização das águas residuais para alertar precocemente para a presença do vírus SARS-CoV-2 foi feita, através de vários projectos, durante a pandemia
A vigilância epidemiológica será obrigatória para as águas residuais em Portugal, com esta obrigatoriedade a ser introduzida na revisão da directiva das águas residuais, cuja publicação se prevê até ao final deste ano, revelou ao PÚBLICO o Ministério do Ambiente e Energia. A monitorização das águas residuais como forma de alertar precocemente para a presença do vírus SARS-CoV-2 foi uma realidade durante a pandemia de covid-19, tendo existido vários projectos em Portugal cujo objectivo passava por contribuir para melhorar a resposta face a eventuais novos surtos da doença.
Numa altura em que muitas pessoas já não fazem o despiste da covid-19 – ou, pelo menos, não o reportam às autoridades de saúde pública -, há médicos que defendem que deveria ser criado um sistema integrado de vigilância das águas residuais que permita monitorizar o aparecimento de novas ondas da doença e alertar a população.
Questionado pelo PÚBLICO sobre se tenciona encetar contactos com a empresa Águas de Portugal e com alguma outra entidade para montar um sistema de vigilância, o Ministério do Ambiente e Energia destacou que “Portugal está a participar numa acção comum (EU-WISH) no âmbito do programa EU4Health, que apoia a prioridade política de reforçar a capacidade da União Europeia [UE] para prevenir, preparar e responder rapidamente a ameaças sanitárias transfronteiriças graves”.
Essa participação, acrescentou o ministério, é coordenada ao nível nacional pelo Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (Insa), contando também com o contributo da Águas de Portugal e da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), esta última como “elemento observador”. Neste sentido, o Ministério do Ambiente e Energia revelou que “a revisão da directiva das águas residuais urbanas, cuja publicação se prevê até ao final do presente ano, irá introduzir a obrigatoriedade de implementação e programas de vigilância epidemiológica”.
A APA confirmou que “a revisão da directiva das águas residuais urbanas, cuja publicação se prevê efectivamente até ao final do presente ano, irá introduzir a implementação de programas de vigilância epidemiológica”. E salientou que, “em conformidade com a versão acordada entre os co-legisladores, preconiza-se que os Estados-membros devam estabelecer um sistema nacional de coordenação e diálogo entre as autoridades competentes responsáveis pela saúde pública e as autoridades competentes responsáveis pela gestão de águas residuais urbanas”.
“Os moldes dos programas de monitorização, designadamente a selecção de parâmetros, terão de ser definidos em conformidade com as recomendações que venham a ficar disponíveis, nomeadamente, do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças [ECDC], da Autoridade de Preparação e Resposta a Emergências Sanitárias [HERA] e da Organização Mundial da Saúde [OMS]”, acrescentou a APA.
A amostragem, segundo a APA, “deverá ocorrer à entrada das estações de tratamento de águas residuais [ETAR] urbanas, sendo que a selecção destas, a periodicidade da amostragem e a análise das águas residuais urbanas para cada parâmetro de saúde pública que venha a ser identificado em função das recomendações acima indicadas deverão ter conta os dados de saúde disponíveis à data, as necessidades no que concerne a dados de saúde pública e, quando se justifique, as situações epidemiológicas locais”. A APA faz notar ainda que não existia antes algo semelhante implantado de uma forma sistemática no país, salientando que “a vigilância epidemiológica através de águas residuais, apesar dos avanços observados no decorrer da pandemia por SARS-CoV-2, ainda é uma área em desenvolvimento”.
Uma taxa adicional?
Mónica Cunha, professora da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL) e investigadora do Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais (cE3c), acredita que a monitorização das águas residuais “é importante do ponto de vista da saúde pública”. No entanto, crê que “trará vários constrangimentos às entidades gestoras do sistema de saneamento, nomeadamente pela questão financeira, porque terá um custo associado”. Neste sentido, a investigadora prevê que esse custo possa, “de alguma maneira, implicar um aumento das tarifas dos serviços [para o utilizador final] que são prestados por essas entidades externas que fazem a gestão dos reguladores e das próprias ETAR”.
Além disso, Mónica Cunha destaca a “questão da capacitação científica”. “Possivelmente, muitas destas entidades de gestão de saneamento não têm instalada essa capacidade técnico-científica para fazer a monitorização daquilo que a directiva prevê e, portanto, terão de recorrer a outsour-cing [contratação de serviços externos]”, afirma.
A professora da FCUL defende que, “do ponto de vista conceptual, esta monitorização das águas residuais tem, de facto, valor”. “Obviamente que não dispensa outro tipo de vigilância epidemiológica que está instituída, mas pode ser muito útil. Contudo, acho que tem muitas implicações e que para as entidades gestoras traz complexidade”, nomeadamente no que diz respeito a “toda a regulamentação e implementação associada”.
Questionada sobre se esta obrigatoriedade de monitorização das águas residuais a promover irá realmente implicar o aumento de alguma tarifa (ou até uma taxa adicional) para os consumidores, a APA referiu que “a proposta de directiva preconiza a necessidade de vir a ser estabelecida a repartição de funções, responsabilidades e custos entre as entidades gestoras e as autoridades competentes pertinentes, incluindo a amostragem e a análise de parâmetros”.
Os agentes patogénicos a serem monitorizados, frisou a APA, “serão os que resultarem das recomendações do ECDC, da HERA e da OMS, designadamente as que vierem a ser disponibilizadas em função da evolução temporal de dados de saúde”. Significa isto que “a proposta de directiva não prevê uma lista fixa de parâmetros a monitorizar, mas a selecção dos mesmos em função dos dados de saúde pública”.
“A referida lista poderá incluir -mas não obrigatoriamente – o vírus SARS-CoV-2 e suas variantes, polioví-rus, vírus da gripe, agentes patogéni-cos emergentes ou quaisquer outros parâmetros de saúde pública que as autoridades competentes dos Esta-dos-membros venham a considerar relevantes para efeitos de monitorização”, conclui a APA.
Mónica Cunha lamenta que “não haja uma perspectiva integradora das várias instituições que, na verdade, foram pioneiras nesta temática”. “Parece que temos de recomeçar tudo de novo. Se olharmos para outros países na Europa, eles implementaram projectos-piloto [durante a pandemia de covid-19], mas esses projectos não pararam mais e acho que aí há uma maior optimização dos recursos materiais, humanos, científicos e da capacitação tecnológica.”
Em relação a este ponto, a APA frisa que “os projectos levados a cabo durante a pandemia tiveram por objectivo o estudo de metodologias de detecção, interpretação de resultados e avaliação de potenciais locais de amostragem representativos, designadamente com vista à implementação de futuros programas oficiais de monitorização”.
Embora não haja ainda uma monitorização das águas residuais sistemática e integrada em Portugal, há alguns programas em andamento. Segundo a Águas de Portugal, está em curso um “estudo de caracterização das águas residuais hospitalares” afluentes às ETAR e Fábricas de Água no Município de Lisboa, liderado pela Águas do Tejo Atlântico – empresa do Grupo Águas de Portugal “responsável pela gestão e exploração do sistema multimunicipal de saneamento de águas residuais da Grande Lisboa e Oeste”.
Este estudo, acrescentou a Águas de Portugal, decorre no âmbito do Plano de Acção AgIR da Águas do Tejo Atlântico, desde o início de 2023, quando a empresa assinou um protocolo de cooperação com diversas unidades hospitalares da região de Lisboa. O programa é liderado pela Águas do Tejo Atlântico, numa equipa que integra o Insa, o Instituto Superior Técnico (IST), a Câmara Municipal de Lisboa e a Empresa Portuguesa das Águas Livres (EPAL). Em 2023, realizaram-se três campanhas no âmbito deste projecto. Outra campanha foi realizada em Maio deste ano, estando prevista uma outra para Setembro.
A Águas de Portugal salientou ainda que “neste estudo são monitorizados mais de 20 parâmetros, entre eles o vírus SARS-CoV-2, em 13 unidades hospitalares e em três ETAR/Fábricas de Água em Lisboa”.
A Direcção-Geral da Saúde (DGS) lembrou, por sua vez, que entre 2022 e 2024, em colaboração com a APA, a AdP Valor – Grupo Águas de Portugal, a FCUL e o IST, “implementaram um projecto de vigilância de SARS-CoV-2 nas águas residuais, em Portugal, com integração no Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica [Sinave]”. “Este projecto, que envolveu 14 ETAR, com 11 meses de monitorização, evidenciou que as principais linhagens de SARS-CoV-2 nas águas residuais mostraram tendências semelhantes às da vigilância epidemiológica a partir dos casos humanos”, realçou.
Em resposta ao PÚBLICO por email, a DGS salientou também que, “embora a vigilância das águas residuais possa constituir um complemento importante para a vigilância em saúde pública, é necessária uma maior investigação no âmbito da análise e interpretação dos dados, bem como uma melhor compreensão das limitações que este tipo de vigilância apresenta”.
Na sequência do projecto acima mencionado, a DGS disse ter integrado com o Insa e a AdP Valor -Grupo Águas de Portu gal o tal projecto euro peu EU-WISH, que “tem como objectivo melhorar as capacidades nacionais de vigilância das águas residuais para fins de saúde pública, designadamente vigilância de mais agentes patogénicos, substâncias químicas e outros biomarcadores relacionados com a saúde, além da covid-19”. “Estas três instituições encontram-se, assim, a estudar a implementação e institucionalização desta vigilância em águas residuais em Portugal e a sua integração no sistema nacional de vigilância epidemiológica, incluindo a vigilância de SARS-CoV-2”, referiu a DGS.
Por sua vez, Elisabete Valério, investigadora do Departamento de Saúde Ambiental do Insa e especialista em microbiologia molecular ambiental, frisa que “o foco da acção conjunta EU-WISH é apoiar actividades para melhorar, ampliar e consolidar a vigilância de águas residuais para a saúde pública”.
“A EU-WISH pretende ajudar a melhorar as capacidades nacionais de vigilância de águas residuais de saúde pública dos vários Estados-membros participantes, fortalecendo a troca de conhecimento e partilha de boas práticas baseadas em evidência científica. A EU-WISH ajudará a alinhar métodos epidemiológicos e técnicos para uma série de alvos da vigilância de águas residuais”, acrescenta a investigadora do Insa.
Elisabete Valério diz ainda que “têm vindo a decorrer algumas actividades de vigilância de águas residuais” no país, de que são exemplo o projecto levado a cabo entre 2022 e 2024 já mencionado pela DGS e as acções durante a Jornada Mundial da Juventude. Actualmente, frisa a investigadora, encontra-se a decorrer o projecto AgIR.
Questionada sobre que tipo de pesquisas estão previstas no âmbito do EU-WISH, Elisabete Valério afirmou que “serão definidos os alvos de vigilância para vírus respiratórios, resistência antimicrobiana (RAM), polio-vírus e enterovírus não-poliovírus, agentes patogénicos emergentes e substâncias químicas, bem como outros biomarcadores relacionados com a saúde”. Neste projecto, acrescentou, estão envolvidos 26 países da União Europeia.
Mónica Cunha – que não está, neste momento, envolvida em nenhum projecto financiado – destaca que, durante a pandemia de covid-19, houve o projecto CovidDetect, “um pro-jecto-piloto que tinha como objectivo implementar a monitorização das águas residuais na perspectiva de antecipar os surtos de covid-19”. “Monitorizámos cinco estações de tratamento de águas residuais, que estavam distribuídas nas regiões metropolitanas de Lisboa e do Porto, e monitorizámos também dois hospitais. Nessa altura, desenvolvemos métodos para detecção e sequencia-ção do genoma do SARS-CoV-2 nas águas residuais. Conseguimos estabelecer uma metodologia que nos permitia perceber a diversidade genética do SARS-CoV-2 nas comunidades que estavam a ser servidas por aquelas ETAR”, explica.
Depois, houve também um segundo projecto em que a FCUL esteve envolvida, o SARS Control, cujo objectivo principal estava relacionado com a “análise da eficiência da remissão do vírus nos diferentes esquemas de tratamento que diferentes ETAR têm”, numa perspectiva mais ambiental, tendo sido também monitorizados outros microorganismos. Nestes dois projectos (CovidDetect e SARS Control), as equipas estiveram sempre em colaboração com o Centro Comum de Investigação, da Comissão Europeia, tendo estado envolvidas “na redacção de uma recomendação que previa a monitorização nos países da UE, sobretudo nos aglomerados com mais de 100 mil habitantes”.
Na altura, segundo Mónica Cunha, “houve um financiamento da Comissão Europeia para que os países da UE pudessem monitorizar as águas residuais e que isto passasse a ser institucionalizado, ou seja, que passasse a haver uma capacitação dos países para implementarem estas metodologias de uma forma regular e não esporádica sujeita a financiamentos limitados no tempo”. “Esse financiamento da Comissão Europeia previu a monitorização dos tais aglomerados populacionais com mais de 100 mil habitantes e, no caso de Portugal, estiveram também envolvidas a DGS, a APA e os parceiros académicos que já tinham gerado e transferido o conhecimento, a FCUL e o IST.”
Durante um ano, de acordo com a professora da FCUL, foram monitorizadas 14 ETAR com uma representação de 35% da população de Portugal continental. “Fizemos não só a identificação e a quantificação da carga viral do SARS-CoV-2, como também a sequenciação do genoma do SARS-CoV-2 – nessa altura, havia já uma grande diversificação da linhagem Ómicron. Através dessa abordagem de sequenciação directamente a partir da amostra de água residual, conseguimos mostrar que essa sequenciação é complementar à sequenciação, por exemplo, com as amostras clínicas”, diz Mónica Cunha.
A investigadora garante que conseguiram, assim, “identificar algumas mutações [do vírus] que não tinham sido ainda detectadas em Portugal, mas que já eram detectadas noutras regiões do mundo”. “Tem que ver com o volume de amostras – por exemplo, uma estação de tratamento de águas residuais como a de Alcântara [em Lisboa] pode representar 700 mil habitantes. Nestes 700 mil habitantes podemos ter centenas ou alguns milhares [de infectados] e essa diversidade genética acaba por ser capturada ao sequenciarmos a amostra de água residual.”
Mónica Cunha diz que “Portugal foi pioneiro, porque, numa fase muito precoce da pandemia, criaram-se as condições [para a monitorização das águas residuais] e houve uma agregação não só de instituições académicas, mas também de entidades gestoras e um apoio do Governo”. “Tivemos uma dinâmica de cooperação grande que foi crescendo à medida que tivemos outros projectos. Houve uma grande capacitação do país.” A importância e utilidade da monitorização das águas residuais não está, portanto, em questão para Mónica Cunha. Até porque, conclui, há “muitos indicadores de saúde pública que podem ser relevantes para as autoridades de saúde para implementar políticas na área da prevenção e do controlo de doenças”.