Ambiente Magazine
É notória a evolução do setor da água ao longo das últimas décadas em Portugal. Mas esta evolução exige um investimento constante e depara-se com desafios que também eles têm mudado ao longo dos tempos. Ambiente Magazine ouviu alguns players do setor, nomeadamente a ERSAR, a AEPSA, a ZERO, e empresas como a Acciona ou a Indaqua, para saber como analisam este setor e quais os desafios que consideram ser mais prementes. Leia aqui a segunda parte deste trabalho, publicado na edição 104 da nossa revista.
Mas, se é verdade que a gestão é hoje um desafio, e Pedro Perdigão, CEO do Grupo Indaqua , não tem dúvidas de que “falhámos na qualidade da gestão”, também é verdade que, no que diz respeito à qualidade da água, é “inegável a evolução” das duas últimas décadas. “O que chega ao consumidor é, genericamente, de excelente qualidade” sublinha Pedro Perdigão, mas “os processos que o permitem não são, em regra, eficientes nem apresentam a resiliência que a criticidade destes serviços justifica”.
O gestor lembra que, em 1993, apenas 50% da água era considerada segura em Portugal e hoje estamos perto dos 100% de nível de segurança médio (98,8%). “É uma conquista civilizacional, até apelidada como «milagre português», e alcançada com investimentos fortes na expansão da rede de abastecimento e saneamento, suportada por uma concertação de ações e vontades entre entidades gestoras, governos, regulador e financiamento europeu”, explica. Porém não deixa de apontar o dedo ao facto de o país não ter sabido aproveitar este “milagre”, dizendo que “a evolução não teve continuidade e não se transformou em modernização, digitalização, produtividade e eficiência”.
Também o managing director da Acciona Água – Portugal, Emanuel Correia , concorda que Portugal evoluiu muito nos últimos anos no que diz respeito à disponibilização de água potável de qualidade nas torneiras, uma situação que é generalizada de norte a sul do país. Mas não esquece que “há que renovar e melhorar as infraestruturas, especialmente as mais antigas”. Já Eduardo Marques, presidente da AEPSA , chama a atenção que, apesar das infraestruturas em alta e em baixa serem hoje adequadas em todo o país, garantindo água em qualidade suficiente e com qualidade excelente nas redes públicas, existem ainda situações pontuais.
É o caso da região de Viseu, aponta, que “em alturas de seca prolongada, tem demonstrado falta de resiliência”, obrigando a abastecimentos alternativos de emergência. “Estas situações obrigam necessariamente à execução de investimentos urgentes e bem planeados, para não se repetir o que se verificou num passado recente”, defende. E, claro, acrescenta, o principal problema a nível de escassez hídrica encontra-se na região do Algarve, que apresenta problemas recorrentes a nível da distribuição e do consumo humano ou para infraestruturas turísticas, bem como o setor agrícola.
Por isso, apela a uma melhoria “urgente” da eficiência hídrica das redes de abastecimento que, na sua opinião, ” ainda apresentam níveis inaceitáveis e injustificáveis de perdas de água”. Eduardo Marques lembra alternativas como a dessalinização, a reutilização de águas residuais ou mesmo os transvases, eventualmente, do Alqueva, que poderão ser equacionadas a médio prazo. Mas para o dirigente associativo “o mais urgente é fazer um planeamento global sério, a médio e longo prazo, por especialistas e não medidas avulsas, que se traduzem muitas vezes em “despejar” dinheiro para os problemas sem os resolver”.
Por outro lado, a AEPSA frisa que “é incorreto e enganoso referir-se que nas torneiras dos portugueses a água é 99% segura, já que cerca de 25% dos alojamentos são servidos por água proveniente de fontes alternativas (furos ou poço)”, fontes estas que, na sua maioria, são impróprias para consumo humano. Já Sara Correia, da Zero , considera que a gestão sustentável das fontes de água em Portugal – incluindo rios, aquíferos e reservatórios – é “essencial para garantir o fornecimento contínuo”. E, neste momento, também admite que a situação mais crítica reside no Algarve. Já no que se refere aos investimentos no sistema de abastecimento e distribuição, admite serem “necessários e urgentes ao nível da manutenção e reabilitação das redes para fazer face às perdas, relativamente às quais a evolução ao longo da última década tem sido quase nula, mantendo-se em valores que rondam os 30%”.
No que toca ao tratamento da água e à segurança do abastecimento, a project officer da Zero não nega que Portugal tem níveis de água segura considerados de excelência mas lembra que a remoção de poluentes, como pesticidas e produtos farmacêuticos e microplásticos será um desafio crescente e “exigirá investimentos muito significativos a curto prazo para atualizar as estações de tratamento de água, adotar tecnologias avançadas de tratamento e melhorar a monitorização da qualidade da água”. Por fim, no que diz respeito ao armazenamento, a Zero tem defendido que os investimentos prioritários devem ser a procura de soluções descentralizadas de aproveitamento de águas pluviais e a eficiência do uso da água através da reutilização, assim como uma “gestão mais eficiente por parte do setor agrícola, que concentra a maior percentagem de consumos de água em Portugal (perto dos 70%)”.
Os investimentos necessários e os incentivos exigidos
O último Relatório Anual dos Serviços de Águas e Resíduos (RASARP 2023 – vol.2) diz que a água da torneira fornecida pelos sistemas de abastecimento público em Portugal continental é segura, de acordo com o indicador água segura, diz-nos Vera Eiró, presidente do Conselho de Administração da ERSAR. Este indicador reflete o controlo da qualidade da água e, em 2022, situava-se nos 98,88%, “confirmando a manutenção da excelência na qualidade da água para consumo humano, que se mantém desde 2015 nos 99%”, refere a responsável. Mas lembra que a qualidade da água na torneira depende da adesão dos consumidores ao sistema de distribuição de água pública e da garantia que a utilização indevida e ilícita de furos privados não contamina a rede pública.
Esta adesão, admite, é “ainda muito insatisfatória” em zonas como o Centro e o Norte do país, onde “existe rede pública disponível mas os consumidores não aderem à rede”. A responsável da ERSAR explica que o PENSAARP 2030 prevê, no cenário recomendado, necessidades totais de investimento no setor da água na ordem dos 5500 milhões de euros, representando a parcela de reabilitação das infraestruturas cerca de metade do valor total. Ou seja, “terá que ser mantido o esforço de investimento realizado nas últimas décadas se se pretender manter as infraestruturas em bom funcionamento”, aponta. Num contexto de alterações climáticas, Vera Eiró defende que “a eficiência hídrica é cada vez mais crucial para assegurar a resiliência dos sistemas de abastecimento”.
E esclarece que as tipologias de investimento relacionadas com a maior resiliência, a modernização e descarbonização destes setores têm um peso importante de cerca de 1/4 do total de investimentos. Para que este volume de investimento se materialize, a responsável não hesita em indicar a necessidade de surgirem incentivos económicos, financeiros, fiscais e legais/regulamentares, uma responsabilidade que atribui, na grande maioria, ao governo e, pontualmente, às autoridades de gestão dos programas regionais, à entidade reguladora do setor e às entidades gestoras estatais.
O PENSAARP 2030 prevê que as ações prioritárias devem favorecer investimentos que contribuam para a eficiência dos serviços, incluindo a melhoria da organização do setor e da organização, modernização e digitalização das entidades gestoras, da eficiência hídrica, da eficiência energética e da descarbonização. Devem ainda ser priorizados os investimentos que contribuam para a eficácia dos serviços, incluindo acessibilidade física, continuidade e fiabilidade, qualidade das águas distribuídas e rejeitadas, e segurança, resiliência e ação climática. Assim como os investimentos que contribuam para a sustentabilidade e para a valorização ambiental e territorial dos serviços.
Por fim, o Plano dá prioridade a ações transversais de incentivo e estímulo à melhoria do setor, como programas de formação e capacitação que garantam uma atualização dos conteúdos formativos, disponibilizando aos recursos humanos do setor o conhecimento e as condições propícias à materialização do próprio PENSAARP 2030. Vera Eiró reconhece que um dos principais desafios do setor se prende com a redução das assimetrias na prestação dos serviços e “a existência de um país a duas velocidades: por um lado, temos entidades que se situam ao nível das melhores entidades gestoras a nível mundial, com níveis de desempenho de excelência, e por outro, temos entidades que, devido à sua reduzida dimensão, à insuficiente capacitação técnica, à impossibilidade de obtenção de financiamento em condições vantajosas ou, simplesmente, menor capacidade ou inconsistência de gestão, têm demonstrado dificuldades em conseguir melhorar os serviços prestados às populações”.
Lembra ainda as grandes assimetrias associadas à disponibilidade hídrica, com uma divisão entre o norte e o sul do país, bem como à população por quem se repartem os custos da rede de abastecimento de água e/ ou de saneamento. ” Estes aspetos preocupam e ocupam muito a ERSAR já que os consumidores, destinatários últimos da atividade do setor, devem ter todos os mesmos direitos a serviços de qualidade, a preços economicamente acessíveis e que tenham a sustentabilidade assegurada para as futuras gerações”, resume Vera Eiró.
De acordo com os dados da ERSAR, numa avaliação da qualidade do serviço prestado aos utilizadores, no que diz respeito às perdas reais de água, o aumento da eficiência surge da ação das entidades com melhores desempenhos. Mas a responsável aponta o dedo a “um universo de entidades com práticas menos eficazes a este nível” o que “ilustra a realidade de um setor da água a duas velocidades”, com entidades que registam perdas com resultados ao nível das melhores entidades gestoras de países de referência, e um conjunto significativo de entidades cujas ações são “incipientes ou mesmo inexistentes nos últimos anos”.
Já no que se refere à água não faturada – perdas reais nos sistemas de abastecimento, erros de medição, usos não autorizados ou consumos não faturados medidos e não medidos – trata-se de um indicador que com uma evolução positiva nos últimos anos mas, alerta a responsável, ainda existem muitas entidades com valores de água não faturada superiores a 30%, um valor considerado como “insatisfatório” pela ERSAR. Na reabilitação de condutas, Vera Eiró recorda que estas redes apresentam um período de vida que pode ir dos 50 aos 100 anos, exigindo uma manutenção contínua, e a sua renovação deveria ocorrer a uma taxa de 1,5% a 4% ao ano, “o que não tem sucedido”, situando-se, em média, nos 0,6%.
Contudo, admite haver entidades que têm feito um esforço por assegurar uma reabilitação adequada, contrapondo-se com muitas outras com níveis de reabilitação muito baixos ou inexistentes, “algo que terá de ser revisto sob pena de colocarem em risco a sustentabilidade infraestrutural dos respetivos sistemas de abastecimento”, defende. Por fim, no indicador da cobertura de gastos, que permite avaliar a sustentabilidade da gestão do serviço a nível económico-financeiro, a ERSAR diz que a maioria das entidades gestoras que não recupera os gastos com a prestação do serviço de água e resíduos opera em regime de gestão direta (serviços municipais, municipalizados e associações de municípios), sendo esta questão mais evidente no setor em baixa da gestão de resíduos urbanos.
Perante este cenário, a ERSAR tem desenvolvido iniciativas de capacitação para que as entidades gestoras com piores desempenhos consigam melhorar, procurando também promover a agregação de sistemas que facilite a introdução de modelos e práticas de gestão que melhorem a eficiência estrutural dos sistemas através de economias de escala. Além disso, todos os anos promove a atribuição de Prémios de Excelência e Selos de Qualidade às entidades gestoras que podem servir de exemplo para as restantes.
“Importa reduzir as «barreiras» à transferência de conhecimento entre entidades porque só essa partilha de conhecimento e de boas práticas permitirá uma evolução mais homogénea de todo o setor e ganhos de eficiência generalizados”, sublinha a presidente da ERSAR. E acrescenta que é também fundamental que exista “vontade política para partilhar, para capacitar, para aprender e para criar compromissos e transparência das entidades entre si, mas, sobretudo, entre as entidades e as populações”.