JORNAL DE NEGÓCIOS
Empresas municipais proibidas de cobrar IVA na taxa do lixo
O Fisco quer uniformizar procedimentos e entende que só deve ser cobrado IVA pela taxa de recolha e tratamento de resíduos se o serviço for prestado em regime de concessão. O resultado é que há consumidores a pagar valores diferentes por serviços idênticos e as empresas queixam-se de distorções na concorrência.
As empresas municipais que se dediquem a “saneamento de águas residuais, recolha de resíduos urbanos e tratamento de resíduos em geral” não devem cobrar IVA aos consumidores sobre as taxas respeitantes a estes serviços, considerando-se que, nestes casos, se trata da prestação de um serviço não sujeito a imposto. Já se o mesmo serviço for prestado por empresas privadas, no âmbito de uma concessão, aí sim, haverá lugar a IVA à taxa reduzida de 6%. A orientação é da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) e foi divulgada através de um ofício-circulado assinado pelo diretor de serviços do IVA e datado já deste mês de maio. Surge, segundo o próprio documento, por ter “chegado ao conhecimento da Direção de Serviços do IVA a existência de desconformidades no enquadramento destas operações”.
O assunto não é novo e foi já tratado por outros ofícios-circulados, o último dos quais emitido em 2015. Porém, não é pacífico e há empresas municipais que, por entenderem que deve haver sempre liquidação de IVA, continuaram a incluir o imposto na fatura que passam aos consumidores. Segundo o Negócios apurou, a questão já chegou aos tribunais, mas não há, até ao momento, nenhuma decisão judicial. Basicamente, a AT considera que as empresas locais, como as próprias autarquias, quando são estas a assumir estes serviços, são “organismos de direito público” que atuam “na qualidade de autoridade pública” e, nesse sentido, não são sujeitos passivos de IVA. Por outro lado, estando em causa atividades que “constituem reserva dos organismos públicos, nomeadamente dos municípios, apenas podendo ser exercidas por entidades privadas mediante contrato de concessão”, fica igualmente, “salvaguardado que o exercício destas atividades não origina distorções de concorrência”, concluí o documento do Fisco.
As taxas em causa, recorde-se, são cobradas juntamente com a conta da água, sendo que em relação ao serviço público de abastecimento de água a questão é pacífica: seja qual for a entidade prestadora, haverá sempre lugar a IVA à taxa reduzida de 6%. Já quanto às restantes componentes, não é bem assim e o resultado é que há municípios onde os consumidores pagam mais IVA e outros em que isso não acontece. Ora, se para os consumidores, isso pode significar que há quem pague mais pelo mesmo serviço, para as empresas o facto de não cobrarem IVA significa que, depois, também não podem deduzir. E isso, alertam fiscalistas ouvidos pelo Negócios, pode trazer problemas de concorrência, sendo que, para os consumidores, também não é líquido que o facto de não pagarem IVA seja sempre melhor.
Problemas de distorção de concorrência
O entendimento do Fisco “vem materializar o que têm sido os pareceres vinculativos da AT e que resulta numa vantagem para os modelos das concessões, uma vez que estas podem deduzir a totalidade do IVA que suportam, o que permite obter uma estrutura de custos mais otimizada”, lamenta Rui Simões, diretor executivo da APIN – Empresa Intermunicipal de Ambiente do Pinhal Interior, constituída por capitais públicos de 11 municípios. Por outro lado, acrescenta o responsável, “o IVA não deveria estar dependente do modelo de gestão, mas sim do serviço que está a ser taxado”. Assim, acaba por ser um fator de “distorção da concorrência”, defende.
Daniel S. de Bobos-Radu, sócio da Lobo Carmona, concorda. Com este entendimento do Fisco, as empresas municipais têm “um tratamento diferenciado em relação às concessionárias que não tem justificação à luz das regras do IVA”, considera. A AT “concentra-se na figura societária”, mas “o serviço é o mesmo e as regras do IVA o que dizem é que não pode haver serviço igual com tratamento fiscal diferente”. “Há aqui um problema de concorrência que o Fisco não analisa”, remata o fiscalista. E o que significa, para os consumidores, a liquidação do IVA nestas faturas? À partida, um preço final mais elevado e “um cliente não deve ser penalizado em função de modelo de gestão implementado no seu município”, sublinha Rui Simões. E, se para as empresas o problema à partida não se coloca, porque elas próprias podem depois deduzir o IVA, o mesmo já não sucede para os particulares. “Estas empresas estão no mercado regulado, não visam o lucro e se pudessem cobrar e deduzir IVA, esse excedente [do IVA] teria de ser afetado à redução da tarifa ou à realização de mais investimento”, sublinha o responsável da APIN.
Afonso Arnaldo, “partner” da Deloitte, lembra, por outro lado, que a possibilidade de também as empresas municipais liquidarem IVA poderia não ser necessariamente negativo para os consumidores, na medida em que uma gestão financeira mais otimizada também poderia garantir preços mais baixos.
Regulador com entendimento contrário
Refira-se que o regulador do setor, a Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR), tem tido ao longo dos tempos um entendimento diferente, considerando que estão isentos de IVA os serviços prestados por serviços municipais ou municipalizados, mas se forem prestados por uma empresa municipal ou por uma empresa concessionária, então ao custo das ditas tarifas já terá de se somar o IVA à taxa reduzida. Esta posição, de resto, encontra-se nos seus guias técnicos desde 2012 e tem vindo a ser reafirmada desde então.
O que fica e o que não fica sujeito a IVA, segundo a Autoridade Tributária
Em relação às taxas do abastecimento de água é pacífico que há lugar a IVA à taxa reduzida, seja quem for o fornecedor. No que toca aos resíduos, de águas residuais e sólidos, o Fisco entende que só no caso das empresas privadas há liquidação do imposto.
Abastecimento de água
A taxa fixa de abastecimento de água destina-se a cobrir os custos de conservação e manutenção da rede pública de abastecimento, dos ramais domiciliários e outros encargos fixos que permitem disponibilizar os serviços aos utilizadores. Dessa forma, “a atividade de exploração e gestão dos sistemas de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público encontra-se sujeita à taxa reduzida” de 6% (excetuando colocação de contadores ou ramais domiciliários, que pagam 23%). Isso vale para as autarquias, associações de municípios, empresas locais e empresas privadas a quem a dita atividade tenha sido concessionada. O mesmo acontece com a taxa variável e com a taxa de recursos hídricos, que também vêm na fatura da água.
Saneamento de águas residuais
Esta tarifa destina-se a cobrir os custos de conservação e manutenção da rede pública de drenagem de águas residuais e dos ramais domiciliários, leia-se, dos esgotos. Quando exercidas pelas autarquias, associações de municípios ou empresas locais, “são consideradas fora do campo de aplicação do imposto, por se tratar de operações efetuadas no exercício dos seus poderes de autoridade”, diz a AT. Quando exercidas por entidades privadas, ficam sujeitas à taxa reduzida do imposto. O mesmo se aplica à taxa variável de saneamento e à taxa de recursos hídricos de saneamento. As operações de ligação às redes públicas de saneamento pagam 23%.
Gestão de resíduos urbanos
A tarifa fixa de saneamento de resíduos sólidos destina-se a cobrir os custos de conservação e manutenção do sistema municipal de resíduos sólidos urbanos e é cobrada mensalmente. Engloba as prestações de serviços de recolha/deposição de resíduos sólidos realizadas no âmbito de poderes de autoridade por organismos públicos, aplicando-se aqui o mesmo entendimento usado para o saneamento de águas residuais. O mesmo acontece com a taxa variável de resíduos sólidos e com a taxa de gestão de resíduos urbanos.