ÁGUA&AMBIENTE
01/05/24
A colaboração entre a alta e a baixa nos resíduos pode trazer diversos benefícios. E esta questão coloca-se hoje, mais do que nunca, com a obrigatoriedade da recolha seletiva de biorresíduos.
Os benefícios apontados a uma gestão integrada e colaborativa entre a baixa e a alta, ou seja, entre os municípios e os Sistemas de Gestão de Resíduos (SGRU) são muitos. Num momento em que a recolha seletiva de biorresíduos já é obrigatória em todo o país, desde 1 de janeiro de 2024, mas muitos concelhos ainda não definiram a estratégia ou estão ainda a dar os primeiros passos, a necessidade de agilizar e articular a ação entre a baixa e a alta é uma questão premente. No entanto, este é um tema tumultuoso em Portugal, por estar enraizada uma cultura de que a gestão e recolha de resíduos em baixa é uma competência do domínio municipal e que só pode ser exercida por estes. Mas as coisas não são assim. Como esclarece José Eduardo Martins, sócio da Abreu Advogados, a Lei de Delimitação dos Setores se, por um lado, estipula que a competência para as atividades de recolha e tratamento de resíduos em baixa pertence aos municípios, também diz que lhes cabe, depois, determinar a forma de exercê-la. Os municípios podem atuar de forma direta, através dos próprios serviços, de serviços municipalizados ou intermunicipalizados, ou de associações de municípios, mediante a delegação em empresas municipais ou intermunicipais, e ainda recorrer a empresas privadas, através do estabelecimento das concessões. Também o Regime Geral de Gestão de Resíduos em vigor, que enquadra a recolha seletiva de resíduos, estabelece que cabe aos municípios, dentro das suas competências, operacionalizar as diferentes frações.
No campo dos biorresíduos, em 2019, viveu-se uma situação polémica, que veio acantonar ainda mais esta recolha nos municípios. O ministério do Ambiente e da Ação Climática, liderado por 3osé Pedro Matos Fernandes, fez um despacho que atribuía diretamente, sem recorrer a concurso público, a responsabilidade da recolha seletiva de biorresíduos aos SCRU, detidos maioritariamente pela EGF, alargando a sua concessão. Esta foi uma decisão muito contestada, nomeadamente pela ERSAR – Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos, que emitiu um parecer que defendia que “a recolha seletiva de resíduos orgânicos não integra o objeto dos contratos de concessão celebrados entre o Estado e as empresas do grupo EGF”. O regulador apresentou uma participação ao Ministério Público contra a decisão do Governo e o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República levou o ministro do Ambiente a ordenar a revogação da legislação. A visão municipalista da gestão e recolha de resíduos na baixa, a nível nacional, verifica-se ainda nos números, como denota Paulo Praça, Presidente da ESC RA-Associação para a Gestão de Resíduos. De acordo com o Relatório Anual dos Serviços de Águas e Resíduos em Portugal (RASARP 2022), existem 237 entidades gestoras em baixa, a maioria de pequena dimensão, que se restringem ao universo municipal, e que são responsáveis pela recolha indiferenciada.
Faz falta um “independente”
Aliás, em Portugal, não existia, em 2022, nenhuma concessão de âmbito municipal para a recolha e tratamento de resíduos urbanos. Além disso, analisa José Eduardo Martins, sócio da Abreu Advogados, as concessões no setor dos resíduos dizem todas respeito a sistemas multimunicipais de iniciativa estatal, atualmente atribuídas a entidades gestoras detidas maioritariamente pela EGF. “Um dos motivos que poderá explicar a tendência para a atuação direta dos municípios na ba ixa prende-se com a natureza dos serviços”, nomeadamente na recolha de indiferenciados, considera José Eduardo Martins. Outra razão, acrescenta, prende-se com o financiamento. Para o advogado, o que impede a coordenação entre a alta e a baixa não é a legislação, mas a falta de consenso quanto à valorização dos serviços de uma e outra parte, considerando ser necessário encontrar um equilíbrio em prol de melhores sistemas de recolha seletiva, sem onerar excessivamente o serviço público de recolha e tratamento de resíduos e sem perder de vista a competência originária dos municípios, a sua autonomia e diferentes realidades territoriais.
“Julgamos que para tanto seria fundamental, por um lado, aplicar a recomendação recorrente do regulador no sentido da definição de tarifas específicas para os serviços de resíduos que garantam a cobertura de gastos, e, por outro, ter um árbitro independente com competências e poderes para dirimir questões económicas, a que hoje em dia nem a CAGER nem a ERSAR estão a dar resposta”, justifica. Quanto aos biorresíduos, José Eduardo Martins lembra que a Diretiva Resíduos impõe metas para a recolha seletiva, não só de biorresíduos, mas de outras frações de resíduos, cujo incumprimento é imputável ao Estado português, ainda que as competências de recolha e tratamento de resíduos urbanos caibam aos municípios. Neste contexto, “poderia haver uma tendência para retirar estas competências, ou o seu exclusivo, aos municípios, com o objetivo meritório de garantir o cumprimento das metas”.
Ação colaborativa traria benefícios inegáveis
Para Paulo Praça, uma ação concertada e colaborativa entre os municípios e os SGRU na gestão em baixa traria benefícios inegáveis e evidentes: nomeadamente, permitiria otimizar recursos, sinergias e ganhos de escala. “Num país tão pequeno, com assimetrias tão acentuadas e com desafios tão exigentes pela frente para os quais os recursos financeiros e operacionais são escassos, ou mesmo insuficientes, é fundamental adotar as medidas necessárias e criar as condições adequadas para que o setor dos resíduos urbanos possa ter meios disponíveis para melhorar o seu desempenho através da agregação de meios e recursos, de forma a permitir ganhar escala e capacidade de atuação.” A recolha de biorresíduos irá, segundo Paulo Praça, implicar “maior exigência nas soluções”, mas também maior esforço, empenho e “coresponsabilização de todos os intervenientes na cadeia de valor “e não apenas os Sistemas de Gestão de Resíduos Urbanos e os Municípios”.
Integração das recolhas indiferenciadas e seletivas
Mais do que os impedimentos legislativos, Eduardo Marques, Presidente da Direção da AEPSA-Associação das Empresas Portuguesas do Setor do Ambiente, afirma que a gestão dos resíduos urbanos em Portugal tem sido mais condicionada “por amadorismos e preconceitos ideológicos cristalizados”. Na sua opinião, é essencial concessionar a entidades públicas ou privadas especializadas e profissionais, “ao invés de permanecer exposta aos inevitáveis constrangimentos resultantes da dimensão, capacidades e frequentes flutuações políticas municipais”. Na recolha de biorresíduos, o Presidente da Direção da AEPSA acredita ser crucial a integração sob a mesma gestão, em cada localidade, da recolha dos resíduos indiferenciados, que, a seu ver, ainda se dá, “absurdamente, com frequência diária na generalidade do país”, e das recolhas seletivas. Deste modo, poder-se-á implementar, progressivamente, a substituição dessa mesma recolha de indiferenciados por recolhas seletivas porta-a-porta de mais fluxos específicos, designadamente dos biorresíduos, e facilitar a eventual evolução para sistemas PAYT (‘Pay–as-You-Trow”).
Legislação específica para resíduos na contratação pública
Pelo facto de a recolha e tratamento de resíduos urbanos ser uma atividade com grande impacto no Orçamento dos Municípios, José Manuel Ribeiro, Presidente do Conselho de Administração da LIPOR, defende que a criação de sinergias entre a baixa e a alta é “crucial”. Quanto aos concretos benefícios dessa ação concertada, José Manuel Ribeiro elenca a possibilidade de, a montante da fase de tratamento e valorização, se alcançar uma maior qualidade de cargas, diminuindo a quantidade de refugos e rejeitados. Este é um aspeto “de primordial importância”, na medida em que permite reduzir deposição de resíduos em aterro e ainda tendo em conta a “alteração na forma de contabilizar as quantidades enviadas para reciclagem, que passaram a ser aferidas em razão das saídas e já não das entradas, nos SGRU”, fundamenta. José Manuel Ribeiro, que considera que a Lei de Delimitação dos Setores é, efetivamente, limitativa e devia ser revista, diz que a obrigatoriedade da recolha de biorresíduos vem trazer maior urgência à necessidade de “colaboração entre a alta e a baixa, acrescentando que a própria questão das concessões também devia ser objeto de revisão. “Os contratos de concessão são, muitas vezes, bastante ‘blindados’ no que concerne à inclusão de novas atividades. Tal circunstância é muito limitadora na capacidade de os municípios negociarem alterações”, por se colocarem questões ao nível da contratação pública. Para o presidente da LIPOR, devia haver uma legislação específica para os resíduos, por ser uma matéria ambiental, de saúde pública e devido ao impacto que tal atividade tem nos orçamentos municipais”.
Sem colaboração dificilmente sao cumpridas metas De acordo com a ECF, o facto de a recolha e tratamento de resíduos serem realizadas por entidades distintas não impede que exista uma ação concertada e coordenada, até porque, de modo geral, os municípios estão também fortemente envolvidos com os SGRU: “Mesmo nos sistemas da EGF, onde o capital das empresas é maioritariamente privado, os municípios são também acionistas das empresas concessionárias”, exemplifica. E reforça ainda: “Esta coordenação, entre municípios e SGRU, é fundamental, mesmo nos casos em que parte da recolha (recolha seletiva trifluxo) é realizada pelo sistema em alta, uma vez que a gestão do território, determinante, por exemplo, para a colocação de contentores na via pública, é responsabilidade dos municípios”. De acordo com a EGF, sendo essa colaboração crucial em atividades estabilizadas, é ainda mais importante no caso de atividades em crescimento, como a recolha seletiva e tratamento de biorresíduos. Até porque, sem essa colaboração, “dificilmente serão cumpridas as metas com que o país se encontra comprometido, nomeadamente a nível europeu”. E explica porquê: “A adequação da capacidade de tratamento às quantidades recolhidas é fundamental”, seja através da construção de novas instalações ou adequação das existentes, de tratamento de indiferenciados para tratamento de biorresíduos. “Sendo esta adequação facilitada no caso de recolha e tratamento ser responsabilidade da mesma entidade, no enquadramento existente, municípios e SGRU têm de definir, em conjunto, os respetivos planos de crescimento da recolha e tratamento e implementar, cada um deles, medidas corretivas para os desvios que se venham a verificar no cumprimento desses planos