Jornal de Negócios
A água foi o último tema das Conferências de Outono, recentemente realizadas no Cineteatro de Anadia, onde se debateu aspetos como distribuição, barragens, perdas, tarifas, salinização e cooperação internacional em bacias hidrográficas partilhadas.
A água, recurso essencial para a vida e para o desenvolvimento socioeconómico, tem-se tornado cada vez mais escasso e irregular no tempo, pelo que a sua gestão é, hoje, um exercício incontornável e imperioso, que exige atenção e rigor total aos responsáveis políticos e administrativos. “Há alternativas para o petróleo, mas não temos alternativas para a água”, comentou Luís Mira Amaral, atual presidente dos Conselhos da Indústria e Energia da CIP e ex-ministro da Indústria e Energia, na última sessão da segunda edição das Conferências de Outono, que decorreu no Cineteatro de Anadia, justificando, o facto de este ser um dos recursos mais críticos. E um recurso que enfrenta uma clara dualidade: o problema das cheias e inundações e, do lado oposto, a escassez e seca. Pelo meio existe ainda o desafio da água poluída. “Em termos de gestão de recursos hídricos, geralmente não é a normalidade que nos preocupa”, situação que, de resto, “ocorre cada vez com menos frequência”, salientou António Carmona Rodrigues, ex-ministro das Obras Públicas e ex-presidente da Câmara Municipal de Lisboa. “Costumo dizer que em Portugal passamos de uma seca para uma cheia com uma gota de água”.
O impacto da demografia na gestão da água
O engenheiro salientou o repto que a demografia tem vindo a representar no contexto da gestão da água, até pelo facto de, atualmente, o planeta acomodar mais de oito mil milhões de pessoas, quando “ainda há não muito tempo éramos seis mil milhões”. A questão mais relevante, segundo o ex-ministro é como prever o futuro, quando existem previsões como a de Hans Rosling, médico e estatístico sueco, que apontam para que no final do século XXI atingiremos um patamar de 11 mil milhões de pessoas. “É quase o dobro que era há 20 anos. Quanto mais pessoas mais necessidade de água, não só para abastecimento, mas para a produção de alimentos, de energia… tudo isso tem de ser uma preocupação”.
António Carmona Rodrigues abordou o facto de em Portugal a demografia não ter vindo particularmente a crescer – muitas vezes ajustada pelo fenómeno da emigração –, logo diferenciando-se de outras geografias mundiais. No entanto, há um elemento comum: a centrifugação da população, entendido como o fenómeno da fixação das pessoas nos grandes centros urbanos e numa faixa mais litoral, onde reside 80% da população portuguesa, segundo dados disponibilizados pelo ex-ministro das Obras Públicas. “Tanto a demografia como a situação económica global são duas questões marcantes para o que podem vir a ser os grandes problemas que vão afetar milhões de pessoas”.
Na sua apresentação, António Carmona Rodrigues abordou que, normalmente, quando se aborda o denominado stress hídrico, fala-se da diminuição da oferta de água, seja por transvaso ou desvio de rios, exploração sucessiva de águas subterrâneas ou mesmo a deterioração da qualidade da água e alterações climáticas. “Há ainda o aumento da procura”, que relega uma mais vez para a questão do aumento da demografia e consequentes necessidades que lhe estão associadas. Neste caso, a Cidade do México, com os seus brutais índices de crescimento, é um claro exemplo. O engenheiro mencionou ainda as limitações e erros na gestão da água.
Os efeitos da procura e oferta da água
Pedro Cunha Serra, ex-presidente da ADP – Águas de Portugal, traçou o cenário nacional, com a certeza de que o homem tem vindo a ter comportamentos com particular impacto nas alterações climáticas e, desde logo, na disponibilidade da água. Do lado da procura, o especialista defende a redução do volume de água captado na natureza, “não permitindo o aumento desregrado do regadio. Mais de 90 mil hectares em 10 anos é muita agricultura regada”, enfatizou na sua apresentação, admitindo que, ao mesmo tempo, esta agricultura permite a criação de riqueza e a redução da importação de determinados bens e aumento da exportação de outros. “Importávamos azeite e hoje exportamos. A curto prazo, vamos ser o maior exportador de amêndoa, que veio para Portugal da Califórnia precisamente porque já não havia água”. Pedro Cunha Serra falou ainda na “necessidade de reduzir as perdas de água e aumentar a eficiência no seu uso.”
Já do lado da oferta, as soluções pairam sobre a construção de mais barragens, a reutilização das águas residuais tratadas ou recorrer à dessalinização. “Todas estas soluções estão a ser implementadas, principalmente nas zonas onde os recursos são mais escassos”. O ex-presidente da ADP salientou que Portugal absorve cinco mil milhões de metros cúbicos de água na agricultura e 600 milhões no abastecimento às populações. “Se destes 600 milhões reutilizarmos 30% – hoje estamos em 1,2% – estaremos a reutilizar qualquer coisa como 180 milhões de metros cúbicos, que comparados com os cinco mil milhões de necessidades de água no regadio, apesar de tudo é uma gota de água”.
A dessalinização, que segundo o técnico está a avançar, poderá constituir uma solução para o Algarve e Sines, por exemplo, mas que se tornaria bastante mais complicada para resolver o problema de abastecimento em Viseu, já que seria necessária uma elevação da ordem das centenas de metros para levar a água desde a costa até ao maciço central. “Tenho algumas dúvidas em relação a isso”, objeta Pedro Cunha Serra, que focou ainda as limitações na reutilização da água. “Podemos falar dessa solução para as lavagens, rega de jardins, campos de golfe… agora para abastecimento às populações? Duvido que queiram consumir água residual tratada. Tenho as maiores dúvidas”. Esta situação verifica-se, por exemplo, em cidades como Singapura, mas que importa 100% da sua água, não lhe restando por isso muitas alternativas. “Mas Portugal tem um potencial de recursos naturais que está longe de estar esgotado, ao contrário do que acontece nestas parcelas do território mundial onde a água para reutilização já é servida na torneira aos consumidores finais”.
O futuro passa por uma melhor gestão
O caminho passa então, na visão do ex-presidente da ADP, por melhorar o conhecimento dos recursos e dos usos e envolver as partes interessadas, como sejam as empresas e cidadãos. “Para isso, a figura das associações de utilizadores, que já está prevista na lei 58/2005, deveria avançar. Não há ainda uma associação criada”, mencionou. Outro aspeto referido por António Carmona Rodrigues é a necessidade de reconhecer a natureza do bem económico da água. “Ainda vivemos na convicção de que a água é um bem livre. Já não é em grandes parcelas do território: é um bem económico”. Mobilizar recursos económicos para o setor, preservar a biodiversidade e melhorar a gestão – desburocratizar e empresarializar – foram ainda sugestões apontadas pelo especialista.
Neste evento – que contou ainda com José Furtado, presidente da ADP – Águas de Portugal, que apresentou a posição do grupo relativamente à gestão da água –, ficou mais do que patente que seja no plano político, económico, saúde pública ou gestão governativa, autárquica e até gestão familiar, a água é e será sempre um assunto a debater. Lino Pintado, vereador da Câmara Municipal de Anadia, uma das entidades organizadoras das conferências, salientou que aos dias de hoje, “o município de Anadia tem optado por não concessionar a gestão da água, nomeadamente a sua captação e fornecimento. Não obstante as várias abordagens e convites que temos para aderir a outros tipos de sistemas, ainda não fomos convencidos”.
À conferência, José Manuel Ribeiro, da FNWAY Consulting, trouxe dados do setor, salientando que entre 1993 e 2019 houve um investimento total de 13,2 milhões de euros na gestão de água. “Aqui percebe-se o esforço financeiro que o País tem tido na matéria, seja no abastecimento de água ou no saneamento das águas residuais, com impacto na saúde pública”. A materializar este investimento está o indicador da evolução da Hepatite A: em 1993 era de 680 casos e em 2021 os valores eram já residuais. Este evento não só lançou luz sobre as complexidades da gestão da água, mas também sublinhou a urgência de uma ação coordenada e sustentável para garantir que este recurso essencial continue a sustentar a vida e o crescimento no futuro.